segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Dancin' Days 2: Jawhol!



Hoje iremos passear um pouquinho pela Alemanha e começaremos, bem obviamente, pela allemande, apesar de os primeiros exemplos que sobreviveram serem franceses.

A allemande (allemanda, almand, almain, etc...) existe em três versões: uma em compasso binário (dois tempos, a mais antiga), outra em quaternário (mais comum, derivada da primeira, e basicamente a mesma coisa), ambas em andamento moderado, e uma terceira, em compasso ternário (três tempos), mas que não tem parentesco algum com a allemande original, sendo mais (relativamente) recente e mais parecida com o ländler e a valsa alemães.

Allemande renascentista:


Não podemos nos esquecer de que a Alemanha, até Heinrich Schütz (século XVII), não era nada, em termos de música clássica, e a allemande alemã, mesmo em 1600, era ainda muito mais simples, em termos musicais, que as danças francesas:


Esta dança logo dá as caras em outros lugares da Europa, incluindo aquele país logo abaixo da Alemanha - a Itália. Claro que, já que italianos são italianos, a allemande, ali, não mais se limita a ser uma dança relativamente lenta. Corelli, por exemplo, ainda escreve allemandes lentas (mas você vai ter que procurar bastante para encontrá-las), porém as em andamentos rápidos parecem ser suas preferidas:

(A allemande começa em 1:15)

(A allemande começa em 3:41)

Quando esta dança chegou à França, porém, rapidamente perdeu seu caráter "camponês" (ainda evidente em Corelli, apesar do primor técnico) e se tornou muito mais estilizada, totalmente inapropriada para ser dançada:




É essa allemande "chique" que é exportada de volta para o resto da europa:




E que acaba voltando para sua terra natal, rendendo, nas mãos do Jotaésse Bach, exemplos como esses:




Simplesmente deslumbrante, e mais um alerta para aquelas pessoas (sim, conheço várias) que acham que as Suítes Francesas (essa allemande é da Suíte nº 2) não estão à altura das Suítes Inglesas ou das Partitas.

Quer mais um exemplo disso? Que tal a Suíte Francesa nº 6? Acho que é a minha favorita (a allemande é a primeira peça da suíte):


Ainda sobreviveu, por um tempo, um outro tipo de allemande '"dançável", a allemande-courante, mais rápida que a original...



... mas que também não durou muito tempo, e logo todas as allemandes "originais" (em compasso binário ou quaternário) foram esquecidas e sumiram do repertório. A "nova" allemande, em compasso ternário, parece ter dado as caras na época de Mozart e Beethoven. Tá certo que Mozart ainda escreve allemandes em compasso quaternário, mas qualquer semelhança com a allemande original parece ter desaparecido, principalmente devidos às síncopes (deslocamento de acentos) constantes, totalmente alheias ao espírito dessa dança:

(Allemande em 4:23)

Muito mais comum, nessa época, é a "nova" allemande:







Para todos os efeitos, allemande agora significa apenas "alemã", e, para meus ouvidos ao menos, allemande, valsa e ländler entram todas no mesmo balaio:







Musicalmente a valsa e o lândler são muito parecidos, porém a maneira de dançá-los é completamente diferente!

Ländler:



Valsa:






Claro que qualquer um pode dançar qualquer música de qualquer jeito, e generalizações desse tipo nunca servem para muita coisa... Se você quiser, pode dançar até um missa:


De qualquer modo, essa dança originalmente camponesa e "indecente" (Sim, a valsa era considerada indecente! Onde já se viu dançar desse jeito, agarradinhos, com o homem se esfregando na mulher, perninhas encostando, peitinhos coladinhos? Indecente demais! Até parece forró!) que vai conquistar o mundo inteiro, a partir do final do século XVII:


Acabou se tornando a dança mais popular do planeta! Todo mundo compunha e todo mundo continuava a dançá-las. Claro que nem todas as valsas eram dançadas:


Mas a maioria podia (e era!):





A mesma, agora dançada por gente "normal":


Não vou perder meu tempo procurando (nem o seu, ouvindo) muitos exemplos de valsas "populares", pois, de novelas:


... a filmes:


... passando por musicais:


... desenhos animados:


... cantigas de roda:


... jazz:


... rock:


.... TODO MUNDO escreve, compõe, toca, canta, dança valsas! Ouviremos, então, apenas algumas das minhas valsas preferidas (das que eu consigo me lembrar agora, já que, obviamente, há bilhões...). Primeiro de todos, Carl Maria von Weber, o primeiro (dizem) a se aventurar a escrever uma valsa que não era para ser dançada:


Essa "versão" para piano do Convite à Dança é uma daquelas que fazem ouvintes "esclarecidos" reclamarem, pois acham que o original é esse aqui, orquestrado por Berlioz:


Mais outro Chopin:


A ópera do "rei" da valsa, Johann Strauss II, Die Fledermaus (O Morcego), que, como qualquer um é capaz de imaginar, é pouco mais que uma coletânea de valsas - mas eu gosto!:


E, claro, não podemos nos esquecer de La Traviata:


E Offenbach...


E Debussy...


E Ravel...


E Scriabin:


E Schulhoff...


(A suíte inteira, Cinco Peças para Quarteto de Cordas:)


E Kurt Weill...


E Philip Glass...



E as valsas brasileiras que, estas sim, parecem que jamais perderão seu caráter popular (e isto não é uma crítica!):










Então chega, né?, ou passaremos séculos só ouvindo valsas!



domingo, 6 de dezembro de 2015

Post-It: L'amour est un oiseau rebelle


Você sabia que a famosa Habanera, da ópera Carmen, do Georges Bizet, não é dele? Poizé... À época de sua composição, um dos músicos populares mais famosos da Espanha era o Sebastián Yradier (ou, originalmente, Iradier). "Famoso quem?", você deve estar se perguntando, mas tenho certeza de que você conhece pelo menos uma de suas canções (além da Habanera "do Bizet"), como La Paloma, gravada à exaustão por milhares de cantores (e milhões de não-cantores) nos últimos 150 anos:












Tá bom ou ainda quer mais?


E agora, com vocês, a Habanera "de verdade":


Há duas histórias diferentes sobre o porquê de o Bizet incluir El Arreglito em sua ópera:

1) Assim como muitas e muitas pessoas acham, atualmente, que La Paloma é música tradicional, folclórica, sem autor conhecido, Bizet cometeu o mesmo erro e achou que El Arreglito também era uma canção folclórica espanhola, e a enfiou (com alterações) no meio de sua ópera, só depois descobrindo que existia um compositor certo - ainda e vivo, o que era muito pior!

2) Bizet já conhecia o Yradier, e, após a estréia de Carmen (que foi um fracasso de crítica e de público), a emperatriz Eugénie de Montijo (esposa de Napoleão III) sugeriu a Bizet que incluísse a famosa El Arreglito em sua ópera.

Não sei se acredito na primeira versão da história, pois me parece difícil imaginar que Bizet não conhecesse um compositor que fazia tanto sucesso, e que em certa época morou em Paris e era amigo de Rossini e Stendhal, e também amigo de uma das cantora líricas mais famosas da época, Pauline Viardot. Como se isso não bastasse, El Arreglito era frequentadora assídua dos café-concerts de Paris...

Também não sei se acredito na segunda versão, pois nunca ouvi falar que Carmen houvesse estreado sem a Habanera. Claro que isso pode ser apenas ignorância minha, mas até eu conseguir uma edição da partitura utilizada na estreia não poderei dar uma resposta definitiva... Há, porém, ao menos um ponto a favor dessa versão: Yradier era professor de canto de Eugénie de Montijo, confirmando que ele não era, definitivamente, um personagem obscuro e desconhecido.

Independentemente de qual versão seja a verdadeira (se é que não existe uma terceira, perdida por aí), numa coisa quase todos parecem concordar: Bizet aparentemente escreveu, na partitura vocal de "sua" Habanera, a fonte original da melodia. Aparentemente, também, ninguém mais se preocupou em tomar o cuidado que o próprio Bizet tomou... Vá perguntar para qualquer cantor quem é o compositor de "L'amour est un oiseau rebelle", se duvidar de mim!


sábado, 5 de dezembro de 2015

Dancin' Days 1: para ouvir e dormir


Há "literalmente" milhares de anos minha mais assídua única leitora pediu-me para escrever um post sobre danças. Ainda bem que ela me pediu para falar "apenas" de danças na música clássica, então podemos deixar de lado milhões de anos de história da dança e começaremos por onde a música clássica viva realmente começa: na Renascença.

Claro que antes disso as pessoas também dançavam, mas o que sobreviveu são apenas manuais de instruções, como o S'ensuit l'art et instruction de bien dancer. Ensinava a dançar, mas o que eles dançavam é um mistério!


Para completar, as danças se dividiam entre danças aristocráticas e danças populares, e sobre essas últimas, então, é que não se sabe quase nada...

Uma das danças mais antigas que sobreviveram em música é justamente uma das mais aristocráticas e "chiques", a bassedanse, de origem medieval (lentíssima, mais um desfile de cortesões que uma dança "de verdade"). Era, também, mais uma categoria de dança que uma dança específica: bassedanse (basse danse, bassedanze) significava que era uma "dança baixa" (dããã...), ou seja, não se tiravam os pés do chão para dançar, ao contrário da haute danse

Uma de suas formas mais comuns (embora eu duvide que se possa generalizar quando há tão poucos exemplos que sobreviveram à passagem do tempo) era aquela em compasso ternário (três tempos, cada um dividido em dois) ou em binário composto (dois tempos, cada um dividido em três). Traduzindo: podia ser 2 + 2 + 2 ou 3 + 3 tempos, e a mudança de um tipo para o outro não era nada difícil de acontecer no meio da música, já que a soma dos tratores não alterava o viaduto, e ninguém iria se perder na contagem dos passos!

Esse tipo de alternância entre compassos sobreviveu durante vários séculos em outra dança (a courante) e até em Bach ainda podemos encontrá-la, se você procurar direito (pois ela aparece disfarçada), como na courante da Suíte francesa nº 3, em si menor. Esta courante é notada em 6/4 (6 colcheias + 6 colcheias em cada compasso = 12), mas a melodia às vezes "escorrega" para 4 + 4 + 4 (também = 12, claro...). Talvez seja difícil descobrir onde é que acontece a mudança de compasso (dica: a mais óbvia - ou menos escondida - acontece bem no finalzinho da primeira parte, antes da repetição), mas se não conseguir ouvir, não se preocupe: pode acreditar em mim!


Isso posto, vamos voltar ao assunto e ouvir três dancinhas baixas, sendo que a primeira muda três vezes de tipo de compasso! Já a segunda é sempre em compasso ternário, mas as divisões e acentos dentro de cada compasso nunca são muito estáveis... (veja se consegue notar essa "instabilidade"):


E agora, uma dança baixa dançada baixamente, bem mais "estável" que essas daí de cima:


Mais outra, e nesta aqui, se você contar os tempos como se fosse uma valsa rápida (1, 2, 3; 1, 2, 3...), você irá notar (espero!) as "inconsistências" passageiras, principalmente na primeira parte:


A bassedanse é uma das minhas danças favoritas, talvez pelo fato de ser uma dança para quem odeia dançar! Outra dança para gente que não gosta de dançar é a pavane (pavin, pavana, paduana, etc, etc, etc), de origem italiana ou espanhola (há dúvidas, controvérsias e eventuais brigas de tapa a respeito), tão "animada" quanto a basse danse. Aliás, a pavana é, tecnicamente, uma basse danse, já que é dançada "baixamente", e suspeita-se que ela possa, inclusive, ter se originado da basse danse.

Apesar de a pavane ser uma "dança baixa", ela tem algumas características próprias, tanto com relação ao ritmo, muito mais estável que na bassedance (se é binário, continua binário, ao invés de ficar pulando de um para outro), quanto pelo fato de cada casal dançar apenas entre si (vá ver de novo a última basse dance daí de cima):





Esta dança costuma ser em tempo binário ou quaternário (2 ou 4 tempos, obviamente), mas se você procurar direito irá encontrar alguns exemplos em compasso ternário, só para complicar o meio de campo e provar pela "enésima ao quadrado vez" que música é uma bagunça:


A basse danse pode ser considerada, para todos os efeitos, uma dança morta, mas a pavane, apesar de também ter morrido lá pelo Barroco, ressucitou na virada do século XIX para o XX, e atualmente abundam (adoro coisas que abundam, já disse!) na música "viva". Uma das mais famosas é a Pavane pour une infante défunte, do Maurice Ravel. Com vocês, o próprio Ravel:


Rápido demais, não é? Essa gravação foi feita a partir de um rolo de piano, um recurso muito antigo, usado desde o Barroco (até onde eu sei) para gravar o que era tocado e permitir sua reprodução mais tarde, em instrumentos de teclado especiais (pianolas, "organolas", "cravolas"), capazes de reproduzir os rolos:


Eu adoro esses rolos principalmente pelas controvérsias que eles geram, pois muitas das músicas neles gravadas (incluindo alguns concertos para órgão, do Handel), soam mais ou menos como o Ravel daí de cima (rápido demais para nosso gosto atual), o que dá origem a discussões acaloradas (e mais tapas) entre os "fetichistas fiéis", que acham que sempre se deve tentar reproduzir exatamente o que o compositor queria, e os intérpretes menos fiés, que acham que a música não é algo fixo, eterno e imutável. Tenho minhas dúvidas de onde me classifico...

Voltando ao Ravel: apesar desse rolo (que supostamente reproduz exatamente o que o Ravel queria), até a década de 70 e oitenta estávamos muito mais acostumados a interpretações bem mais lentas dessa Pavane, como a do Richter:


Também não sei qual eu prefiro... Talvez a do Ravel seja mais "bonita" (para mim), mas talvez a do Richter seja mais pavane que a do Ravel... Ou talvez a do Ravel seja para ser ouvida na segunda-feira, e a do Richter, em uma manhã de domingo, sei lá...

Voltemos ao assunto!

O Ravel tem outra pavane, um pouco menos famosa que essa daí de cima, o primeiro movimento de sua suíte Ma mère l'Oye:


Outra pavane famosa é a do Gabriel Fauré, e a ouviremos também com o próprio Fauré, por obra e graça de outro rolo:


Tentei voltar ao assunto, mas vou fazer mais um desvio: a música francesa (não só a francesa, claro) para piano dessa época (primeiras décadas do século XX) é, em alguns casos, mais conhecida em versões outras que não a "original" para piano, e essas duas daí de cima, inclusive, são "crássicos" da música orquestral. Primeiro, a interpretação do Baremboim:


E agora com o Seiji Osawa, mais lenta, a la Richter:


A Pavane do Fauré também tem sua versão orquestral:


Mas também existe (e também pelo próprio compositor) na encarnação para coro e orquestra:


Essa moda de alguns compositores escreverem e lançarem mais de uma versão de suas próprias criações causa, por sua vez, outro fenômeno muito divertido da música clássica, qual seja, a "certeza absoluta" de certos ouvintes (incluindo outros músicos!) de que a versão para piano é "falsa", mesmo quando ela é a mais "original" (no sentido de primeira) . Se eu fosse contar nos dedos das mãos quantas vezes eu já ouvi esse tipo de comentário, eu precisaria ser um polvo! Já disse isto por aqui, mas me repito: preconceito musical, como qualquer outro tipo de preconceito, só serve mesmo para mostrar ignorância...

Mas "re-voltemos" ao assunto: a pavane também ressucitou em alguns lugares bem improváveis, como no rock progressivo do The Alan Parson Project:


Ressucitou também lá na Suécia, no Esbjörn Svensson Trio, de formação nitidamente clássica, mas misturando jazz e elementos do rock - e até mesmo Piazzola:


A pavane já deu as caras até mesmo na música folk americana:


E, para terminar, a "Pavane: She's So Fine" da suíte John's Book of Alleged Dances, de 1994, do também americano John Adams - e talvez ele pudesse tê-la batizado de basse danse, pois o tradicional ritmo constante da pavane foi passear. Apesar disso, são "alleged dances", então "supostamente" ela possa ser uma pavane:


Duas danças é muito pouco para um post (e se eu continuar nessa toada levarei uns 200 anos para cobrir metade das danças mais "populares"), mas por hoje vai ser só isso mesmo, já que minha mania de ficar pulando de um assunto para o outro faz com que qualquer um deles se estenda muito mais que o programado... 

No próximo post  da série (sei lá quando) ouviremos algumas dancinhas menos lentas, para não matar ninguém de tédio!