domingo, 14 de dezembro de 2014

Continua rolando um clima!

Apesar de sua obsessão por água, desde o início Debussy sentía uma atração irresistível por todos os fenômenos naturais. A primeira obra sua que conheço que trata deste assunto é a canção "Nuits d'étoiles", de 1880, com poema de Théodore Faullin de Banville, o qual, por falar nisso, foi publicado numa coletânea chamada Les Stalactites: a mania com fenômenos naturais envolvendo água, pelo visto, é contagiosa (deve ser algo na própria água, claro...):


Nuit d'étoiles, sous tes voiles,
sous ta brise et tes parfums,
Triste lyre qui soupire,
je rêve aux amours défunts.

La sereine mélancolie vient éclore
u fond de mon coeur,
Et j'entends l'âme de ma mie
Tressaillir dans le bois rêveur.

Dans les ombres de la feuillée,
Quand tout bas je soupire seul,
Tu reviens, pauvre âme éveillée,
Toute blanche dans ton linceuil.

Je revois à notre fontaine
tes regards bleus comme les cieux;
Cettes rose, c'est ton haleine,
Et ces étoiles sont tes yeux.

Poucos anos mais tarde (1882), Debussy ataca novamente com Les Printemps, para piano e vozes femininas:


O poema, de Anatole de Ségur:

Dieu rend aux plaines leur couronne
La sève ardente qui bouillonne
S'épanche et brise sa prison
Bois et champs sont en floraison. 

Un monde invisible bourdonne
L'eau sur le caillou qui résonne
Court et dit sa claire chanson

Salut printemps, jeune saison
Dieu rend aux plaines leur couronne
La sève ardent qui bouillonne
S'épanche et brise sa prison

Le genet dore la colline
Sur le vert gazon l'aubépine
Verse la neige de ses fleurs
Tout est fraicheur, Amour, lumière
Et du sein fécond de la terre
Montent des chants et des senteurs.

Salut printemps, jeune saison
Dieu rend aux plaines leur couronne
La sève ardent qui bouillonne
S'épanche et brise sa prison
Salut printemps!

Do mesmo ano é "Clair de lune", que já ouvimos naquele post sobre a Lua, e, em 1983, aparece a linda "Paysage sentimental", com poema de Paul Bourget:


Le ciel d'hiver, si doux, si triste, si dormant,
Où le soleil errait parmi des vapeurs blanches,
Était pareil au doux, au profond sentiment
Qui nous rendait heureux mélancoliquement
Par cette après-midi de rêves sous les branches...

Branches mortes qu'aucun souffle ne remuait,
Branches noires avec quelque feuille fanée,
-- Ah! que mon âme s'est à ton âme donée
Plus tendrement encor dans ce grand bois muet,
Et dans cette langueur de la mort de l'année!

La mort de tout, sinon de toi que j'aime tant,
Et sinon du bonheur dont mon âme est comblée,
Bonheur qui dort au fond de cette âme isolée,
Mystérieux, paisible et frais comme l'étang
Qui pâlissait au fond de la pâle vallée.

Do mesmo ano, 1983, é outra canção, "Chanson triste: On entend un chant sur l'eau dans la brume". E lá vem água de novo! Também de 1983, há a canção "Fleur des eaux", também de 1983. Ou seja: se formos ouvir tudo que Debussy escreveu a respeito de céu, noite, vento, água, brumas, neve, sol, amanhecer e entardecer, passaremos as próximas quatro estações só ouvindo Debussy! 

Partamos, pois, para uma de suas primeiras obras realmente importantes, o Prélude à l'après-midi d'un faune, inspirado por um poema de  Stéphane Mallarmé, e deixemos para trás uma tonelada de boa música "climática", como "Clair de lune" (da Suite Bergamasque - que também já ouvimos no post sobre a Lua), outra Les printemps (dessa vez para orquestra e coro a quatro vozes), La Damoiselle élue, (para dois solistas, coro feminino e orquestra, com seu primeiro verso "La damoiselle élue s'appuyait sur la barrière d'or du ciel"), e mais as canções "Harmonie du soir" e "Le Jet d'eau", ambas fazendo parte da maravilhoso ciclo 5 Poèmes de Baudelaire.

Mas, pensando bem, essas canções eu quero ouvir agora. Ou melhor: não só quero ouvir essas duas canções; quero ouvir o ciclo inteiro!

(O link para todos os poemas é este aqui)

Pulemos finalmente para o Prélude, de 1984. O poema do Mallarmé, como se não bastasse o próprio título, Entardecer de um Fauno, é refleto de imagens como source en pleurs, brise du jour, murmure d'eau, vent, ciel, pluie aride, fountaines, lumière... Um prato cheio para o Debussy!


Em 1899 surge Nocturnes, para orquestra (e coro feminino, no último trecho), uma de suas obras mais maravilhosas, e cujo primeiro trecho, "Nuages", é a mais perfeita (na minha opinião) representação sonora de algo que nem mesmo palavras conseguem descrever. O último trecho, "Sirènes", não está muito atrás, e só será superado em La mer, dedicado inteiramente, claro, ao mar. Mas vamos ouvir o Nocturnes completo - "Nuages", "Fêtes", e "Sirènes":


Uma vez eu assisti aos Nocturnes com a Orquestra Sinfônica de Montreal e em "Sirènes" as cantoras estavam misturadas entre os demais músicos da orquestra e suas vozes soavam quase incorpóreas, como se sereias de verdade estivessem cantando no meio do mar. Arrepiante de tão lindo!

Seguindo a ordem cronológica (que estamos adotando aqui, hoje), o próximo climinha a rolar é a chuva, no terceiro trecho de Estampes, para piano, de 1903, "Jardins sous la pluie":


E, no ano seguinte, 1904, a água está de volta, dessa vez em L'Isle joyeuse, com suas ondas e vagalhões. Apesar do título, eu juro que não ouço a ilha... A música inteira me parece, na verdade, a viagem (de barco) até lá, e o final me dá a impressão exata de que a ilha está cada vez mais próxima, cada vez mais nítida, e, depois de vencer a arrebentação das ondas, eu finamente pulo do barco e finco meus pés na areia:


Essa viagem de barco me lembra uma pecinha do Eric Satie, "Sur un vaisseau", de 1913 (a primeira peça de Descriptions automatiques), só que, ao invés de estarmos no barco do Debussy, estamos numa canoinha que, por mais que você reme, parece nunca sair muito do lugar... Pensando melhor, parece que estamos em um pedalinho quebrado, que fica dando voltas e voltas em torno de si mesmo, sem nunca chegar a lugar algum:


O Satie era a pessoa mais irônica do mundo, e tenho certeza de que ele escreveu esta peça só para encher o saco do Debussy. Uma vez, segundo reza a lenda, Debussy o criticou, dizendo que suas peças não tinham forma, e Satie, com seu jeito de "gênio da lâmpada que realiza seus desejos da maneira mais louca possível", respondeu à critica com Trois Morceaux en forme de poire, para piano a 4 mãos:

1. Manière de commencement
2. Prolongement du même
3. I
4. II
5. III
6. En plus
7. Redite


Mas tentemos não enveredar por outro assunto!

Debussy deveria ser classificado entre os animais aquáticos! Do ano seguinte (1905) é outra obra totalmente dedicada à água, La Mer, com seus movimentos "De l'Aube à midi sur la mer", "Jeux de vagues", e "Dialogue du vent et de la mer". Ok, ok... não só água... também tem vento, que, daqui pra frente, vai aparecer mais frequentemente em sua música. Apaguem as luzes, fechem os olhos, e deixem O Mar os levar para passear:


Ainda em 1905 surge Images, para piano, com seu primeito movimento, "Reflets dans l'eau", e a ouviremos interpretado por meu monstrinho Michelangeli:


Lindimáisss, sô!

Children's Corner, uma de minhas suítes favoritas, de 1908, também tem um movimento "aquático", dessa vez em sua encarnação sólida (neve), "The Snow Is Dancing":


Tá certo que eu sou chato, mas essa é uma das peças de Debussy mais difíceis de tocar! Não é nem de longe a tecnicamente mais difícil, mas é muito raro ouvir uma gravação que me convença - nem pelos meus monstrinhos! Todas elas me soam muito duras, pesadas... Isso é neve, povo! É e neve caindo sobre uma criança que está olhando para o alto, maravilhada, de boca aberta, vendo os floquinhos rodopiar e colocando a língua de fora para descobrir que gosto a neve tem! Em quase todas as gravações que conheço, porém, eu sinto que estou ou dentro de uma tempestade ou embaixo de uma chuva de granizo, daquelas com bolas de gelo do tamanho de uma laranja. Esta é a minha preferida, por um pianista que não tenho ideia de quem seja, já que a pessoa que âploudou o vídeo não se dignou em informar:

(Saco... Mais um vídeo que sumiu do YT...)

Essa leve nevezinha começou a cair em 1908, mas, dois anos depois, estava tão espessa que já era possível caminhar sobre ela, no maravilhoso-estupendo-deslumbante "Des Pas sur la neige", número 4 do primeiro livro de Préludes:


Nem todo mundo partilha de minha adoração por esse prelúdio, mas eu os compreendo: quase nada acontece nele; tudo é velado, subentendido. Além de tudo, é meio depressivo... Mas tudo isso, para mim, é que faz "Des Pas" ser especial: a neve, aqui, não é para ser linda; é para ser realmente fria, inóspita. Não tem nada vivo na paisagem, apenas neve, neve, neve; ela enterrou o mundo inteiro, e mesmo as lembranças do passado (claro... ninguém consegue se lembrar do futuro) desapareceram. As lembranças, assim como a melodia, surgem quebradas, fragmentadas e, por mais que tentem, nunca conseguem vencer a neve, que acaba por soterrar tudo... (Bom, esta é a minha interpretação! Fique absolutamente à vontade para ter outra!)

O primeiro livro de Préludes é uma das criações mais espetaculares do Debussy, e, já que é do Debussy e espetacular, tem uma concentração de "climas" impressionante! Além de "Des Pas", temos "Le vent dans la plaine" (número 3), "Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir" (número 4), "Ce qu'a vu le vent d'ouest" (número 7), e "La cathédrale engloutie" (número 10).

O título "Le vent dans la plaine" vem de em poema citado por Paul Verlaine em C’est l’extase langoureuse:

Le vent dans la plaine
Suspend son haleine.
(Favart.)


C’est l’extase langoureuse,
C’est la fatigue amoureuse,
C’est tous les frissons des bois
Parmi l’étreinte des brises,
C’est, vers les ramures grises,
Le chœur des petites voix.

Ô le frêle et frais murmure!
Cela gazouille et susurre,
Cela ressemble au cri doux
Que l’herbe agitée expire…

Tu dirais, sous l’eau qui vire,
Le roulis sourd des cailloux.

Cette âme qui se lamente
En cette plainte dormante,
C’est la nôtre, n’est-ce pas?
La mienne, dis, et la tienne,
Dont s’exhale l’humble antienne
Par ce tiède soir, tout bas?


"Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir" vem de um poema de Charles Baudelaire, Harmonie du soir:

Voici venir les temps où vibrant sur sa tige
Chaque fleur s'évapore ainsi qu'un encensoir;
Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir;
Valse mélancolique et langoureux vertige!

Chaque fleur s'évapore ainsi qu'un encensoir;
Le violon frémit comme un coeur qu'on afflige;
Valse mélancolique et langoureux vertige!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir.

Le violon frémit comme un coeur qu'on afflige,
Un coeur tendre, qui hait le néant vaste et noir!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir;
Le soleil s'est noyé dans son sang qui se fige.

Un coeur tendre, qui hait le néant vaste et noir,
Du passé lumineux recueille tout vestige!
Le soleil s'est noyé dans son sang qui se fige...
Ton souvenir en moi luit comme un ostensoir!



"Ce qu'a vu le vent d'ouest", um dos prelúdios tecnicamente mais difíceis, é inspirado por um conto de Hans Christian Andersen, O Jardim do Paraíso, onde cada um dos quatro ventos do mundo se encontram. Não encontrei o texto em português, e teremos que nos contentar com a versão em inglês do trecho no qual o Vento do Oeste descreve de onde veio:

"I come from the forest wilderness," he said, "where the thorny vines make a fence between every tree, where the water snake lurks in the wet grass, and where people seem unnecessary."

"What were you doing there?"

"I gazed into the deepest of rivers, and saw how it rushed through the rapids and threw up a cloud of spray large enough to hold the rainbow. I saw a wild buffalo wading in the river, but it swept him away. He swam with a flock of wild ducks, that flew up when the river went over a waterfall. But the buffalo had to plunge down it. That amused me so much that I blew up a storm, which broke age-old trees into splinters."

"Haven't you done anything else?"

"I turned somersaults across the plains, stroked the wild horses, and shook cocoanuts down from the palm trees. Yes indeed, I have tales worth telling, but one shouldn't tell all he knows."


"La cathédrale engloutie" é inspirada por uma lenda sobre uma catedral na Ilha de Ys, submersa pelas águas do mar, mas que, em dias ensolarados, emerge, e conseguimos ouvir os sons de seus sinos, seu antigo órgão tocando, seus monges cantando, até que ela novamente afunda no mar:


Depois disso, 

Pausa para meditação.


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Pronto, podemos voltar aos Prelúdios. Já ouvimos os 5 mais "climáticos", mas talvez possamos incluir entre estes o número 2 "Voiles" (Véus? Velas?):


No Segundo Livro de Prelúdios não rolam tantos climas quanto no primeiro, mas "Brouillards", o primeiro prelúdio da série, já nos arrasta para as névoas. É um dos mais estranhos, e confesso que levei um certo tempo para encontrar meu caminho dentro deste prelúdio realmente brumoso:


"Brouillards" é o mais explicitamente "climático", mas temos também "La terrasse des audiences au clair de lune" (o número 7), e talvez possamos incluir na lista os números 2 ("Feuilles mortes") e  8 ("Ondine"), inspirado nas ilustrações de Arthur Rackham para um conto de Friedrich de la Motte Fouqué, no qual Undine, um espírito das águas casa-se com um humano para, assim, poder ter uma alma. Undine, aliás, poderia reder um post inteiro!

"La Terrasse":


"Feuilles mortes":


"Ondine":



E estas são algumas das ilustrações para o livro (as ilustrações são de 1909):

  

Os prelúdios individuais são lindos, mas lindo mesmo é ouvir todos os 12 do primeiro livro, em sequência, e, no dia seguinte (para não embaralhar tudo) os 12 do segundo. Aproveitemos, então, para ouvir o monstrinho Sviatoslav Richter tocando todos os 24:


Primeiro dia, Livro 1:

00:00 - 1. Danseuses de Delphes
03:00 - 2. Voiles
06:26 - 3. "Le vent dans la plaine"
08:27 - 4. "Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir"
11:33 - 5. Les collines d'Anacapri
14:22 - 6. Des pas sur la neige
18:00 - 7. Ce qu'a vu le vent d'ouest
21:20 - 8. La fille aux cheveux de lin
23:42 - 9. La sérénade interrompue
25:49 - 10. La cathédrale engloutie
31:13 - 11. La danse de Puck
33:33 - 12. Minstrels

Segundo dia, Livro 2:

35:36 - 1. Brouillards
38:21 - 2. Feuilles mortes
41:10 - 3. La puerta del Vino
44:09 - 4. "Les fées sont d'exquises danseuses"
47:12 - 5. Bruyères
49:50 - 6. Général Lavine - eccentric
52:18 - 7. La terrasse des audiences du clair de lune
56:49 - 8. Ondine
1:00:05 - 9. Hommage à S. Pickwick Esq. P.P.M.P.C.
1:02:34 - 10. Canope
1:05:27 - 11. Les tierces alternées
1:08:13 - 12. Feux d'artifice


Lindo demais, sô!

Debussy, depois dos dois livros de prelúdios, parece ter esgotado essa sua fonte de inspiração, e sua música vai ficando cada vez mais abstrata, menos romântica e sonhadora (o que já era audível no Segundo Livro - vide "Les Tierces alternées"), e até os títulos vão se tornando mais abstratos: Estudos para Piano (onde os títulos dos estudos individuais são meras descrições do problema técnico enfrentado em cada um deles: "Para os graus cromáticos", "Para os cinco dedos", "Para as quartas", "Para oa arpegios", etc), Sonata para Violino e Piano, suíte Em Branco e Preto (para dois pianos)...

O assunto de hoje, portanto, está encerrado!

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