sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Tá rolando um clima!

Debate-se, há décadas, se os compositores impressionistas não deveriam ser, na verdade, classificados como simbolistas. Claude Debussy, principalmente, parece ter se sentido sempre muito à vontade entre estes, haja vista suas muitas obras baseadas em poetas simbolistas: (Cinq poèmes de Baudelaire), sua ópera Pelléas et Mélisande (libreto de Maurice Maeterlinck), Prélude à l'après-midi d'un faune (a partir do poema de Mallarmé), entre inúmeras outras.

É inegável, porém, seu impressionismo, muito "visível" em suas formas musicais incompletas, fragmentárias, sua preferências por impressões passageiras, ao invés de um discurso musical mais evolutivo, à la Beethoven ou Wagner.

Essa discussão entre seu Impressionismo e/ou Simbolismo acontece desde que existe Debussy, e os argumentos tendem para um ou outro lado, sem nunca chegarem a qualquer conclusão. O problema, a meu ver (não estou sozinho, claro...), é que Impressionismo é um rótulo essencialmente pictórico, e Simbolismo é essencialmente literário. São movimentos com objetivos diferentes (mas não antagônicos), criados para propósitos não-musicais (como quase todos os rótulos musicais atualmente utilizados, à exceção de Ars nova, do Classicismo - talvez - e de algumas escolas do século XX), e que não necessariamente são encaixáveis à musica.

Para completar, a música, quando tenta retratar alguma coisa, é simbólica por excelência: todos os referenciais descritivos, narrativos, espaciais, são externos à própria música - ou, melhor, externos aos sons. Isso, porém, nunca impediu que compositores tentassem, de uma maneira ou de outra, descrever alguma coisa/lugar/circunstância.

Quer um exemplo básico? Bach, em sua Cantata Ich will den Kreuzstab gerne tragen, BWV 56, logo no segundo compasso da melodia do cantor, usa uma nota com sustenido (dó sustenido) para a palavra Kreuz, que, em alemão, significa tanto cruz quanto sustenido. Quando você ouve um dó sustenido ele não vem acompanhado de uma cruzinha, assim como um X no mapa não significa que no terreno de verdade vai haver um X gigante marcando o local do tesouro; ambos têm a mesma função: simbolizar algo externo ao próprio meio, escondido e enterrado, e você só vai descobrir que o significante está ali se estiver familiarizado com as convenções simbólicas utilizadas por quem fez/compôs o mapa/partitura...

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Outro tipo de simbolismo básico da música é o espacial, tão enraizado nos ouvidos ocidentais que é difícil até o reconhecermos como símbolo: o movimento "pra cima" e "pra baixo" da música, por exemplo, só é interpretado como pra cima ou pra baixo devido à convenção de escrevermos sons mais "altos" no alto na partitura, e sons mais "baixos" na parte de baixo da mesma. Nenhum deles, na verdade, está mais alto ou mais baixo, espacialmente falando, assim como o norte da Terra não está acima do Sul: do lado de fora do universo não existe uma seta indicando "Este lado para cima"!

Esse sobe e desce da música, porém, está tão presente que algumas obras perderiam muito de seus sentidos se, de repente, o referencial espacial fosse retirado. Quer um exemplo? Que tal o nº 3 de Miroirs, "Une Barque sur l'Ocean", do Ravel com suas ondas do mar subindo e descendo, subindo e descendo, subindo e descendo...


Assim como simbolismos abundam (adoro coisas que abundam!) na música (e em todas as outras artes, claro), elementos impressionistas também estão presentes - em um grau ainda maior - mesmo que seja apenas no sentido de passageiro, transitório. A música é essencialmente temporal, claro, e tudo nela é passageiro e transitório: ela só faz sentido quando suas partes aparecem e desaparecem, diferentemente, por exemplo, da arquitetura. Uma obra musical existindo por inteiro em um único momento é tão ilógico quanto imaginar o lado de dentro da Notre Dame existindo sem o lado de fora. O efeito da música pode ser tão duradouro quanto o efeito de uma catedral, mas o "objeto" nunca existe por inteiro. Aliás, nunca existe, apenas acontece.

Junte-se a isso toda a vagueza e imprecisão fundamentais da música e você terá um dos terrenos mais férteis possíveis para o impressionismo: nada na música tem substância, definição, contorno, e mesmo o contorno de uma melodia é, a princípio, apenas uma metáfora. Uma melodia tem um início e um fim temporal, mas não espacial; você pode dobrar a velocidade para fazer a melodia caber na metade do tempo, mas duvido que você consiga fazer uma melodia ocupar menos espaço (a não ser que você a escreva em notas menores, em um papelzinho microscópico...). 

Mas, voltemos ao Debussy. Eu acho que ele, na verdade, era debussiniano, ainda mais se considerarmos que, diferentemente dos pintores impressionistas e dos escritores simbolistas, Debussy não tinha colegas músicos contemporâneos nem remotamente parecidos com ele! Debussy criou um estilo próprio, sui generis, só posteriormente adotado (com ressalvas) por outros compositores. O mais próximo que alguém chegou de compartilhar seu estilo foi Ravel, mas este era mais novo que o próprio criador do estilo, tendo depois enveredado por um caminho muito diferente, bem pouco debussiniano (mas este é um outro assunto!).

Enfim... Você já está ficando maluco com este assunto? Eu, já. Partamos, pois, para o assunto "de verdade" de hoje!

Não importa o que o Debussy seja: o importante, para este post, é sua fascinação por fenômenos climáticos, principalmente aqueles envolvendo água, em todos os seus estados físicos! A expressão "um mar de som", no caso do Debussy, é quase literal, e mostra sua afinidade tanto com os poetas simbolistas e sua mania por água (como em Pelléas) quanto com os pintores impressionistas e seus milhares de paisagens aquáticas ("aguarelas"?):

(Monet, Saint-Georges majeur au crépuscule)

Assim como os impressionistas e simbolistas, Debussy não foi o primeiro, o único, nem o último a se sentir fascinado pela água, mas a presença desse elemento em sua música é constante: nada, em Debussy, é mais recorrente do que a água (nem mesmo a Lua, outra de suas obsessões favoritas). Comecemos, então, pela ópera Pelléas et Melissande, a qual, graças ao Maeterlinck, já nasceu aquática. Tudo na ópera faz referência, de uma maneira ou de outra, à água!

Logo na primeira cena nossa heroína, Mélisande, se encontra com seu futuro marido, Golaud, aos pés de uma fonte...

- Água 1: fonte.

A segunda cena, apesar de ambientada em um aposento do castelo do pai do Golaud, novamente faz referências à água: nesta cena o rei-pai lê uma carta do Golaud, onde este conta de seu casamento com Mélisande. Se a reação do pai for positiva, seu irmão (do Golaud), Pelléas, deverá acender uma tocha (lanterna) na murada do castelo, em frente ao mar; se a reação for negativa, necas de tocha, e o Golaud pegará seu barquinho (supõe-se que ele vai ficar esperando pela resposta dentro de seu barquinho) e nunca mais voltará pra casa.

- Água 2: mar; barquinho.

Cena três: Mélisande e sua BFF (best friend forever) Geneviève estão caminhando nas redondezas do castelo, olhando para o (adivinhem?) mar, e Mélisande (que, além de heroína, também tinha visões), vê um navio e um farol, e prediz que ele (o navio, não o farol) irá afundar.

- Água 3: outro barquinho; farol.

Segundo ato, cena 1: Mélisande agora está sentada à beira de um poço, e nosso futuro herói, Pelléas, ali a encontra e admira seus longos cabelos, quem de tão longos, tocam (adivinhem?) a água. Conversa vai, conversa vem, nossa heroína, apesar de suas visões, não consegue prever que seu anel de casamento irá escorregar de seu dedo e parar lá no fundo da (adivinhem?) água.

- Água 4: poço; cabelo na água, anel na água, tudo na água...

Segundo ato, cena 2: papai-rei está muito doente. Nossa heroína não se conforma, debulha-se em lágrimas, quase morrendo, ela também, afogada... Maridão chega, não vê o anel no dedo da heroína, e esta lhe diz que o perdeu dentro de uma gruta, perto do (adivinhem?) mar. Maridão diz que, quando a maré baixar, ela terá que ir procurar pelo anel.

- Água 5: lágrimas, lágrimas, lágrimas; maré, e gruta (provisoriamente) alagada.

Segundo ato, cena 3: heroína com medo de entrar na caverna sozinha. Pelléas é chamado para acompanhá-la (e mais uma vez a "pré-visão" de nossa heroína não serve para nada...). Vão até a caverna. Heroína, mesmo assim, com medo de entrar, pois está muito escuro, mas nossa velha amiga, a Lua, aparece, iluminando tudo!

- Água 6: nada de novo, mas temos a Lua, pelo menos, e sua influência sobre a maré!

Terceiro ato, cena 1: heroína em seus aposentos, penteando os longos cabelos, em companhia do cunhadão (de bobinha, Mélisande não tem nada!), que, a determinado momento, arruma seus cabelos (da heroína, claro) com raminhos de salgueiro.

- Água 7: salgueiro, que, como todo mundo sabe, costuma deitar seus longos cabelos sobre as águas:


Terceiro ato, cena 2: maridão leva cunhadão para conhecer os subterrâneos do castelo (eita programão!), chegando juntos a um poço de água estagnada, lá nas "entranhas do subsolo das masmorras embaixo do castelo" (repito-me: que programão, véi!). Heroína teve medo de buraco escuro sem água (caverna), e agora é hora de o cunhadão ter medo de buraco escuro com água...

- Água 8: poço estagnado, parado, cheio de monstros!

Terceiro ato, cena 3: cunhadão sai do buraco cheio de água, e, dali mesmo da entrada para o subsolo, olha para cima, e vê a heroína e sua BFF sentadas à uma das janelas do castelo (olhando para o mar?).

- Água 9: nada de novo, aqui. Em compensação, é meio-dia, o Sol está brilhando furiosamente lá em cima, e a Lua está do outro lado do planeta. Supõe-se que a maré está baixa novamente, o mar está lindo e brilhante, inundado de luz, mas nosso cunhadão favorito está ainda na entrada para o poço "mal-assombrado": "O mundo é lindo, o mar é lindo, mas eu estou ainda muito perto demais desse poço sem fundo com cheiro de morte... Carái, véi! Que medo!"

Terceiro ato, cena 4: maridão submete o filho a uma sessão de interrogatório, até que este acaba confessando que viu o cunhadão dar um beijo na heroína num dia em que estava chovendo.

- Água 10: chuva.

Quarto ato, cena 1: cunhadão diz para heroína que papai-rei está melhor de saúde (apesar do chororô de Mélisande, anteriormente), e que ele, cunhadão, vai viajar (de navio, claro!). Antes de viajar, porém, eles combinam de se encontrar junto ao "poço do anel".

- Água 11: repeteco de águas passadas: Nunca fomos tão felizes quanto à beira da água!

Quarto ato, cena 2: maridão ameaça heroína: "Se você não parar de olhar para os outros eu vou fechar seus olhos para sempre, sua isso, sua aquilo!".

- Água 12: nenhuma... mas, pela segunda vez na ópera, há outros líquidos: maridão chegou com um corte na cabeça, sangrando, e, aparentemente, também estava meio bêbado. Antes havia surgido lágrimas, e agora surgem álcool e sangue: a água, pelo visto, está se transformando em substâncias muito mais problemáticas!

- Quarto ato, cena 3: filhinho brincando à beira do "poço do anel", vendo fileiras de ovelhinhas marchando em direção a algum lugar que ele não sabe qual é, mas um prestativo pastor logo lhe informa que as ovelhinhas não estão voltando para casa.

- Água 13: repeteco e antítese, para ninguém ter dúvida daquilo que nos aguarda: água pura + água problemática (ovelhinhas indo para o matadouro).

- Quarto ato, cena 4: cunhadão à beira do "poço do anel", confessando a si mesmo que está a finzaço da heroína. (Não... Jura? Nem havia notado!). Heroína chega, ele confessa a mesma coisa para ela, e ela, claro, também confessa que o amou desde o primeiro momento (desde a primeira vez ele a havia deixado "aguadinha", pelo visto...). Maridão pega os dois no flagra, mata cunhadão, e heroína foge para o mato (o que, a bem da verdade, é meio estranho, pois ela deveria ter corrido para o mar!).

- Água 14: repeteco da Água 13.

Quinto ato: heroína em trabalho de parto. Maridão chega pedindo desculpas, mas mesmo assim a atazana para que ela confesse que havia chegado às vias de fato com o cunhadão. Heroína nega até o último momento, dá à luz seu rebento (que, estranhamente, não chora), e, por falta de perspectiva na vida, resolve morrer.

- Água 15: a fonte secou completamente: heroína dentro do quarto, sem mar, sem poço, sem sequer uma mísera lágrima no rosto de seu filho. Em resumo: no water, no future.

The End


As óperas (as trágicas) costumam acabar por falta de personagens; esta é a única que eu conheço que acaba por falta d´água! Pelléas et Mélisande, ou, Tragédia na Cantareira.

Apesar de não parecer, esta é uma de minhas óperas favoritas de todos os tempos! O único problema é que as montagens recentes insistem em se esquecer de que Pelléas deveria ser encenada dentro de uma piscina, com água brotando, jorrando, subindo, descendo, caindo, se acumulando, apodrecendo, secando, evaporando, espirrando do teto, inundando o teatro, molhando os espectadores, etc, etc, etc. Água, água, água, para todos os lados! Nas montagens modernas depois de um certo tempo você jura estar assistindo à Sansão e Dalila, no meio do deserto. Uma pena... Tadinho do Debussy. Tadinho do Maeterlinck...


(Tá certo que o fundo azul constante remete, obviamente, a agua, mas para mim isso está longe de ser o suficiente!)


Acho que este post está grande o suficiente, e já temos quase 3 horas de música para ouvir. Voltaremos ao Debussy logo depois da próxima chuva!

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