sábado, 3 de janeiro de 2015

Ainda variando...

Agora que eu me recuperei da Sonata em mi maior, Op. 109, do Beethoven, estou pronto para voltar ao assunto variações. Prometo que não falarei mais sobre o Beetho neste post, apesar de ele haver composto outros grupos de variações, em sua fase final, tão ou mais maravilhosos que aquele ouvimos. 

Continuemos, pois:

Já vimos algumas maneiras de se variar um tema: diminuição (divisio), variações sobre um baixo (ciacconas e passacaglias), variações livres, mantendo a estrutura harmônica do tema e o contorno geral da melodia.

Vimos, também, variações apresentadas em sets, mas essa não é a única opção. Variação, mais que uma forma é um processo, que pode ser aplicado a um tema inteiro (como já vimos), mas que também pode ser utilizado para dar maior interesse a qualquer passagem musical, quando de sua repetição. A forma-sonata, por exemplo, tem uma seção (exposição) que é repetida após o desenvolvimento: a reexposição; e é comum que o material da exposição volte variado, então.

Prometi que não iria mais falar do Beetho, mas não resisto, pois uma das mais linda "variações reexpositivas", digamos assim, que conheço aparece no terceiro movimento de uma de suas mais espetaculares sonatas, a "Hammerklavier", em si bemol maior, Op. 106. (Novamente: se alguém quiser fazer o dowload da partitura, pode seguir este link)

O movimento (gigantesco, durando entre 15 e 20 minutos, geralmente, quase o tamanho da Op. 109 inteira) é em forma-sonata e começa com a apresentação do primeiro tema (compassos 1 a 27; 0:00 a 2:23). Minha sugestão: ouça apenas este trecho, por hora.


Este tema é imediatamente seguido por um outro, no mesmo tom, lindíssimo, mas não nos preocuparemos com ele. Só faço uma observação: Chopin dizia que odiava Betthoven, mas eu, sinceramente, duvido! Há muita coisa em Chopin que parece ter brotado diretamente de Beethoven, inclusive deste segundo tema, que é quase uma premonição de Chopin.

Segue-se alguns minutos de exposição; depois vem um pequeno desenvolvimento, e, aos 7:07, começa a reexposição, onde nosso amigo primeiro tema volta variado. Se o segundo tema já era chopiniano, essa variação do primeiro tema parece sê-lo ainda mais, pois Beethoven o atopeta de figurações na mão direita (nossa velha conhecida técnica de variação por diminuição - ou divisão), exatamente como Chopin, nas décadas seguintes, fará em inúmeras obras (incluindo sets de variações). Ouça, agora, a reexposição do primeiro tema (7:07 a 9:28).

Lindo demais! E para completar, é seguido pela reexposição do segundo tema, ainda mais chopiniano que na exposição.

Agora, se você quiser, pode ouvir o movimento inteiro, dessa vez com o Sokolov, que o toca ainda mais lento (dura mais de 23 minutos), mas maravilhosamente bem. Vai ser difícil encontrar outra versão mais bonita, apesar de sua interpretação levemente "heterodoxa" (uma das características mais marcantes deste pianista):


Para os loucos por Beethoven, outra opção deste movimento, com o Barenboim, também linda:


Há inúmeras gravações, umas melhores, outras piores, mas todas tem algo em comum: nenhuma é perfeita. Eu sei que sou chato (principalmente com música), mas dessa vez eu juro que a culpa não é minha. O problema é que este movimento é uma das coisas mais gloriosas de toda a música clássica, um daqueles milagres que ocorrem apenas duas ou três vezes a cada 200 anos, e que necessita de outro milagre para ser realmente bem executado. Por mais que milhares de pianistas tentem, a probabilidade de o milagre novamente acontecer é ínfimo, ainda mais em gravações: milagres só acontecem ao vivo, eu acho. Porém duvido que aconteça com frequência, mesmo sendo ao vivo: não consigo imaginar acontecendo no Carneggie Hall, por exemplo, às vistas de milhares de pessoas; acho que é mais provável acontecer durante um ensaio, quando o pianista está sozinho, em paz, num silêncio absoluto; daí, quem sabe, pode ser que o Beethoven lhe faça uma visita, e o feliz pianista saberá que foi capaz de realizar uma façanha sobre-humana (pena que ninguém mais ficará sabendo...)

Bom, já deu para notar que eu não posso começar a falar de Beethoven! Mudemos de assunto.

Variações podem aparecer em sets independentes, como La Folia, que ouvimos no post anterior; pode ser um movimento inteiro, como nos vários movimentos que já ouvimos; ou pode acontecer esporadicamente, em certos trechos musicais.

Há, ainda, as famosas regiões nebulosas: "Será que isso é uma variação?"

Eu já falei que variação é mais processo do que forma. Desenvolvimento também é um processo (não necessariamente confinado dentro do desenvolvimento da forma-sonata), e às vezes é difícil distinguir se determinado material musical está sendo desenvolvido ou variado. Algumas vezes (como na "Hammerklavier"), a distinção é fácil, mas em outras ambos os processos estão tão entrelaçados que qualquer tentativa de desmembrar a criatura vai acabar por matá-la...

A língua inglesa, sempre maleável, tem um nome para isso: developing variation. O português, que eu saiba, ainda não se decidiu como chamá-la. Variação desenvolvimentista? Eca!!! Desenvolvimento variável? Tão eca quanto! Acho que eu optaria por variamento ou desenvariação...

O animal pode não ter nome, mas que existe, existe, e já há bastante tempo! Cada uma dessas criaturas, porém, tem cara diferente, e você precisa estudá-la muito de perto para conseguir reconhecer que é uma desenvariação.

O processo de se desenvariar é facilmente reconhecível em (adivinhem?) Beethoven. Eu disse que não falaria dele hoje, mas pelo visto eu menti. Como diria o Calvin: "Me processe."


O Beetho, em sua famosérrima Sonata para Piano em fá menor, Op. 57, "Appassionata"dá um pequeno show de desenvariação: a primeira parte do primeiro tema é todo construído sobre um motivo rítmico (não preciso dizer qual, pois é óbvio). Ouça, por enquanto, apenas os 12 primeiros segundos:


Ouça, agora, até os 24 segundos. Novamente o mesmo tema, agora transposto para outro tom, o que já é um procedimento "desenvolvimentista", mas não "desenvariarista".

Agora, até os 31 segundos: apareceu um detalhe novo, o pa-pa-pa-pá na mão esquerda, irmão do pa-pa-pa-pá da Sinfonia nº 5, em dó menor, Op. 67, na qual Beethoven estava trabalhando quando escreveu esta sonata. Temos, portanto, três elementos: o início do primeiro tema, com seu ritmo característico; o final do mesmo tema, com sua melodia (cujo ritmo é uma expansão do ritmo da primeira parte) e seu trinado; e o pa-pa-pa-pá da mão esquerda.

Vamos até os 50 segundos: o finalzinho do primeiro tema, antes do pa-pa-pa-pá, é novamente transposto, seguido por quatro pa-pa-pa-pás, sendo que o último enlouquece e gera uma sequência de arpejos descendentes.

Aos 52 segundos o primeiro tema volta, e agora ele está variado! Esta variação do tema vai gerar o próximo trecho da música, e isso, caros e-spectadores, é uma desenvariação: uma espécie de variação que vai propriciar o desenvolvimento da música, no sentido de gerar eventos novos, fazendo a música caminhar para frente!

Mas, calma! Ainda tem mais coisas interessantes logo depois da curva.

Ouça até os 1:35. O primeiro tema, agora desenvariado, termina aos 1:10. O que se segue (chamado pelo nome técnico de ponte - já que serve como ligação entre o primeiro e o segundo temas), é também uma espécie de desenvariação dos materiais que já haviam sido apresentados antes. O acompanhamento deste trecho, na mão esquerda, pode ser interpretado como uma sequência enorme de pa-pa-pa-pás encavalados uns nos outros, de maneira que os pás finais estão enterrados sobre os primeiros pas; ou, alternativamente, como uma sequência de pa-pa-pa-pás que perderam seus últimos pás. Enfim... as duas coisas dão o mesmo resultado.

A melodia entrecortada (que começa em 1:18), por sua vez, pode também ser interpretada como uma desenvariação da primeira parte do primeiro tema. Lembra-se da sequência inicial? Ela era composta por um paaa-pa-páaaaa descendente, seguida por dois paaa-pa-páaaaas ascendentes. Esta melodia entrecortada, agora, não é nada mais do que uma inversão (um paaa-pa-páaaaa ascendente seguido por dois paaa-pa-páaaaas descendentes). Entenderam o porquê de eu ter riscado os paaas e os páaaaas? Eles foram riscados também da música, só sobrando o pa fraquinho do ritmo inicial.

Credo, como é difícil explicar música sem usar música!

Vamos continuar. Este trecho (a ponte) vai até 1:35, quando começa o segundo tema, que, novamente, é outra desenvariação do material do primeiro tema: o acompanhamento da mão esquerda é, obviamente, filha do acompanhamento da ponte, e a melodia (nem preciso dizer), é irmã quase gêmea do primeiro tema.

Para completar, o final do segundo tema, entre 1:52 e 2:08 é derivado do final do primeiro tema. Vá comparar os dois, para ver que eu não estou mentindo! Até os trinados reaparecem! Tudo isso é seguido (entre 2:08 e 2:18) por uma desenvariação dos arpejos que ouvimos entre 0:45 e 0:47.

Em 2:18 começa um terceiro tema, que também é construído a partir de desenvariações de materiais antigos: a melodia é filha do pa-pa-pa-pá, e o acompanhamento é filho dos nossos amigos arpejos.

Continue ouvindo até o final da exposição (2:53). Como você notou, Beethoven construiu a exposição inteira apenas desenvariando o primeiro tema, e o restante do movimento inteiro é apenas um bando de desenvariações sobre desenvariações: 11 minutos de música inteiramente derivados de aproximadamente 20 segundos de material.

Essa foi uma muito análise superficial de um exemplo "fácil" de desenvariação. Depois que Beethoven mostrou tudo que era capaz de ser criado a partir de quase nada, esse processo evoluiu ainda mais (evoluiu no  sentido de se tornar diferente, mas não necessariamente melhor).

Essa evolução deu origem a toneladas incomensuráveis de música, desde coisas execráveis (como a Sonata em si menor, do Liszt, na minha opinião), passando por coisas lindas (como a Sonata para Violino e Piano, em lá maior, Op. 100, do Brahms). Vamos, então, ouvir seu primeiro movimento, todo desenvariado de um punhadinho minúsculo de materiais (Não, pelo amor de deus! Não me peça para analisar este movimento aqui no blog!):


Uma das desenvariações mais impressionantes é O Anel dos Nibelungos, a tetralogia de óperas do Wagner: 20 horas de música desenvariada de algumas dúzia de motivos, que não param de se transformar, de se quebrar, se unir, sobrepor-se uns aos outros, num quebra-cabeças caleidoscópico que, até hoje, não sei como o Wagner conseguiu acabar de montar.

No século XX, então, desenvariava-se como nunca! Schoenberg - que, aliás, é o criador da expressão developing variation - desenvariava quase tudo que fazia, quer fosse música tonal, atonal, ou serial. Schoenberg, inclusive, usa o processo de desenvariação como uma "desculpa" para criar o Dodecafonismo: "Todo mundo pegava uma melodia, um acorde, um ritmo, e escrevia uma música inteira a partir desses elementos. Ao invés de usar esses materiais, eu pego as 12 notas cromáticas, arranjo na sequência que eu quero, e uso essa sequência para escrever minha música. Qual é a diferença? Minha sequência de doze notas é tão 'natural' ou 'aleatória' quanto qualquer melodia do Beethoven!"

Não é tão simples assim, claro, mas essa é uma das ideias por trás do Dodecafonismo (Serialismo): cria-se uma série de 12 notas, e essa série é manipulada de inúmeras maneiras. Ela pode ser transposta, invertida, utilizada de trás para frente (processos comuns desde sempre, como todo mundo que leu meu primeiro post sobre fuga já sabe). Qualquer semelhança entre os métodos utilizados pelo Serialismo e os métodos "antigos" não é mera coincidência! O próprio Schoenberg jurava de pé junto que era absolutamente conservador!

Há muitas regras sobre o que é "permitido" (ou não) ao se manipular uma série, mas, como eu já disse várias vezes por aqui, nada em música é obrigatório ou proibido, e cada compositor que se aventura pelo Serialismo interpreta as regras herdadas e cria outras novas, gerando novos estilos. Pensando bem, a história da música (e das outras artes) é uma enorme desenvariação. As regras vão sendo manipuladas, transpostas, reinterpretadas, alteradas (variadas?) fazendo a música se desenvolver e caminhar para frente (ou para trás, ou para o lado, dependendo do referencial utilizado), tal qual uma sonata de Beethoven.

Porém, antes de eu chegar à conclusão de que tudo que existe no mundo são desenvariações, voltemos ao assunto do dia!

Outra habitante da região nebulosa entre variação e desenvolvimento é a forma cíclica. É uma família numerosa, que existe há séculos, com antepassados ilustre, mas não há consenso sobre quais obras devem ser consideradas como membros deste clã, pois sua definição é meio complicada. (Não... Jura? Sempre achei que tudo fosse simples, em arte!)

Resumindo: forma cíclica é uma forma musicial constituída de várias partes (trechos de uma missa ou movimentos de uma sinfonia, por exemplo), em que elementos recorrentes são utilizados em várias ou todas as partes, como uma forma de unificar a obra. É uma definição aparentemente auto-explicativa e facilmente aplicável, né?

Ledo engano...

Voltemos ao Beethoven: uma de suas sonatas (a Sonata para Piano em lá maior, Op. 101) tem este primeiro movimento (basta ouvir o início):


E estes são seus terceiro e quarto movimentos (agora você vai ter que ouvir até o início do 4º  movimento):


Como ouviu, o primeiro movimento faz uma breve aparição durante a transição entre esses dois movimentos. Algumas pessoas, portanto, incluem esta sonata entre as formas cíclicas, já que há material recorrente. Outras, porém, acham que não, pois o material não é realmente reutilizado; ele simplesmente reaparece, ajudando a unificar a obra, mas não exerce influência sobre o 4º movimento.

Quer saber minha opinião?


Abre parênteses

Sinto informar: eu tenho um trabalhão desgraçado para escrever este blog porque estou tentando botar ordem nas minhas ideias, e não nas suas! Quer você queira saber, quer não, vou continuar!

Fecha parênteses


Minha opinião, portanto:

Formas cíclicas me lembram, meio obviamente, bicicletas (ou melhor, "cicletas"), que existem de vários modelos, uns mais, outros menos, estáveis. Eu incluiria esta sonata do Beetho dentro da categoria monociclo:  o material volta, mas, assim como num monociclo de verdade, a existência de apenas uma rodinha torna difícil equilibrar a sonata inteira dentro da definição.

Já a Sinfonia nº 5, em dó menor, Op. 67, é outra história. Ela já pode ser considerada um ciclo: o material do primeiro tema (o ritmo mais conhecido da história da música) é utilizado em diversas formas durante o restante dos movimentos. No quarto movimento Beethoven também usa recurso similar ao utilizado na Sonata Op. 101 (um pequeno trecho do terceiro movimento, juntamente com a transição do terceiro para o quarto, reaparece), mas a presença constante do pa-pa-pa-pá inicial, gerando inclusive varios outros temas durante a sinfonia, já garante à Sinfonia nº 5 um lugar cativo dentro da categoria forma cíclica.



Beethoven, aliás, foi quem recolocou na moda este recurso, amplamente utilizado nas inúmeras missas cíclicas do Renascimento, onde uma melodia (que podia ser um trecho de um canto gregoriano ou de uma música popular) servia de base para a construção de todos os trechos da missa. Qualquer dia voltaremos às missas cíclicas, porque é um assunto que vale a pena explorar melhor!

Depois da 5ª Sinfonia, formas cíclicas viraram febre, e um dos primeiros e mais conhecidos exemplos é a Symphonie fantastique: Épisode de la vie d'un artiste ... en cinq parties, Op. 14, do Hector Berlioz, onde uma melodia (representando sua amada Harriet Smithson, que eu já havia citado AQUI) reaparece constantemente:



A melodia recorrente é esta aqui, e aparece pela primeira vez, nessa gravação, aos 6:02:


Outro exemplo famoso de forma cíclica é a Fantasia "Wanderer", Op. 15 (D. 760), do Schubert, mais próxima (em termos de construção) da Sinfonia nº 5 que a Sinfonia Fantástica:


E chega, por hoje! Sei que estes dois posts sobre variações foram muito complicados, mas num outro dia voltaremos a este assunto, exlusivamente para ouvirmos variações e formas cíclicas, sem precisarmos mais nos preocupar com suas definições e características!

Até lá!


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