quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Home, suite home

Música é uma bagunça... Eu não aguento quanto dizem que música é matemática em movimento, ou ao contrário, como dizem que Goethe dizia: "Geometria é música congelada". Tá certo, não dá para discutir que a música tem uma base matemática: vibrações, ondas, proporções entre os diferentes sons, intervalos, etc, etc, etc... mas, venhamos e convenhamos, a matemática, em si, é tão necessária para se entender, gostar, fazer música, quanto a química é necessária para se cozinhar um ovo (duvido que muitos cozinheiros saibam o que é que ocorre com a albumina da clara durante o cozimento...). Não sei o porquê dessa visão tão exata da música, cujo rótulo matemático se aplicaria muito melhor à arquitetura, aliás. Às vezes até me dá vontade de começar a chamar o balé de biologia em movimento" (ou biomecânica artística?), ou a pintura de elaboração bidimensional do espectro visível da luz. Duvido que fizessem muito sucesso!

Mas suspeito qual seja o motivo dessa necessidade de transformar a música em matemática aplicada: ela é algo meio intratável mesmo. Não dá para ver, não dá para pesar, não dá para pegar, nem colocar no raio-x para ser analisada; nunca dá para ter certeza do que significa; ela não narra nada, não conta nada. E, para completar, é mais imaterial que qualquer outra arte. Como também dizem que Da Vinci dizia: "Pintura é mais perfeita que música, pois a pintura não desaparece no exato momento em que acaba de nascer".

Me faz lembrar (me recuso a escrever "Faz-me") do Arnaldo Antunes (quem diria...) e sua "As Coisas":

as coisas têm peso, massa, volume
tamanho, tempo, forma, cor
posição, textura, duração
densidade, cheiro, valor
consistência, profundidade
contorno, temperatura, função
aparência, preço, destino e idade
sentido
as coisas não têm paz

De todas as características que as coisas têm, a música não tem quase nada. E mesmo suas características mais específicas (tempo e duração), são tudo menos absolutas. Me faz lembrar de um programa do Sílvio Santos (quem diria...) que assisti sei lá quando (há muuuuiiito tempo), no qual ele perguntava ao calouro quanto tempo durava a "Valsa do Minuto", do Chopin. O mais espantoso é que havia uma resposta certa: 60 segundos! Juro que é verdade, me lembro muito bem! Se nem a literatura é tão literal, imagina a música...


Enfim... tudo isso para dizer que tenho a impressão de que seu rótulo matemático é uma tentativa de tentar (é isso mesmo que eu quis dizer!) enquadrá-la na moldura mais racional possível, para contrabalançar sua irracionalidade fundamental, utilizando uma coisa intraduzível (matemática) para explicar outra coisa intraduzível (música). Mas assim caminha (em círculos) a Humanidade. Causa-me espécie (há tempos eu queria usar essa expressão!) que nunca tenham, que eu saiba, tentado fazer a mesma coisa com sua vizinha prima-irmã-siamesa, a dança, outra criatura tão irracional quanto, e ainda mais efêmera.

Enfim (novamente)... tudo isso foi para chegar aqui, na suíte, que nada mais é (era) que uma sequência de músicas instrumentais para se dançar! (Faço parte da humanidade e, portanto, também caminho em círculos). É óbvio que música para dançar existe desde que inventaram o primeiro tambor mas, assim como (quase) toda música "de consumo", as peças nunca eram de muito longa duração, já que ninguém consegue ficar muito tempo dançando a mesma coisa (à exceção dos dervixes e dos atuais frequentadores de boates, com seus incessantes tum-tum-tuns - preconceito meu, creio...). Até que um dia um alguém teve uma ideia e resolveu juntar duas dancinhas independentes contrastantes, tentando dar mais coesão à infinidade de pequenas danças isoladas, e inventou a (micro)suíte!

Originalmente compostos para serem dançados, os aglomerados de dancinhas acabaram crescendo e perdendo essa primeira função, passando a ser utilizados para acompanhar outras funções: fundo musical para banquetes, cerimônias, peças de teatro, filmes, etc, etc. Ou simplesmente para serem ouvidos, sem necessidade de acompanharem coisa alguma.

Esse processo começou ainda na Idade Média, e atingiu a maturidade durante os séculos XVII e XVIII. Hoje é tão natural ouvir suítes (para quem ouve "esse tipo de música"), que nem se nota mais sua importância para o desenvolvimento da música instrumental. Ela foi o primeiro método (e um dos mais bem sucedidos) de se compor um obra puramente instrumental em vários movimentos, que ao mesmo tempo possibilitava uma unidade entre os diversos trechos (que eram todos na mesma tonalidade, geralmente) e proporcionava variedade por meio dos contrastes entre os ritmos e andamentos dos movimentos individuais. 

O mais impressionante, para mim, é o fato de ela nunca ter saído de moda. Obviamente as danças mudam constantemente, mas a suíte continuou desde então a fazer sucesso entre os compositores (com um breve intervalo durante o classicismo, que não tinha muito interesse nessa forma - claro... eles estavam muito ocupados com outra "invenção" importantíssima, a forma-sonata). Uma das vantagens da suíte (e um grande motivo para a sua sobrevivência) é sua grande adaptabilidade pois, por definição, nada mais é que um conjunto de danças (como eu já disse), podendo ser transportada para qualquer lugar, qualquer época, qualquer cultura, usando qualquer tipo de dança, de harmonia, de forma!

Quando pensamos em suíte sempre nos vêm à mente aquelas do nosso amigo J. S. Bach, que representam apenas uma de suas muitíssimas diferentes encarnações. Como a música é mesmo uma bagunça, há tantas variações de suítes quanto há variações de pessoas: podem ter muitos formatos, muitos tamanhos, nacionalidades, nomes, importância, competência, qualidade, etc, etc, etc. Então, para colocarmos um ponto final à primeira parte do assunto, dois exemplos extremos de suítes:

De 1617, Suíte X da série de 20 suítes, Banchetto Musicale, de Johann Schein, com os movimentos Padouana, Gagliarda, Courante e Allemande:


E a Suíte, Op. 14, de Béla Bartók, de 1918, com os movimentos Allegretto, Scherzo, Allegro e Molto sostenuto:



Depois tem mais, pessoal!

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