Bom... já que eu falei que as suítes são tão variadas quanto as pessoas, vamos tentar dar uma amostra dessa variedade.
Como vimos no primeiro post sobre suítes, alguns dos primeiros exemplos eram compostos das danças padouana, gagliarda, courante e allemande. Ainda durante o período barroco, uma sequência diferente (allemande, courante, sarabande e gigue) é que acabou se tornando o padrão, mostrando bem a como a suíte era aberta às mais diversas influências. Tão aberta, mas tão aberta, que qualquer coisa cabia lá dentro, como veremos daqui a pouco.
Ela provavelmente também devia morar muito perto do porto. Cada uma dessas danças, por exemplo, vem de um lugar diferente:
Ela provavelmente também devia morar muito perto do porto. Cada uma dessas danças, por exemplo, vem de um lugar diferente:
- A allemande parece ser, obviamente, alemã, apesar de os exemplos mais antigos conhecidos serem franceses. Era um dança em compasso binário ou quaternário (2 ou 4 tempos), relativamente lenta:
- A courante era uma dança francesa em compasso ternário (3 tempos) ou seus compostos (6, 9, 12), com um andamento mais rápido que a allemande:
Havia outro tipo de courante italiana (corrente), mais rápida que a francesa:
- A sarabande, por sua vez, parece ter se originado na América espanhola, e depois migrado para a Europa. Era originalmente uma dança rápida, em 3 tempos, considerada obscena à época, tendo inclusive sido proibida. Ela, porém, resolveu que iria sobreviver a qualquer custo: mudou de penteado, trocou de roupa, aprendeu a falar direito e a se comportar em sociedade, virou uma senhora honesta, casou-se, e teve um monte de filhinhas (de pais diferentes, porém). Mudou tanto que se tornou irreconhecível, virando uma das danças mais lentas e sérias, assumindo posição de destaque principalmente nas suítes do nosso amigo Jotaésse Bach.
Apesar de eu ter mencionado Bach, optei por colocar um exemplo do Handel, pois o ritmo característico da sarabande é muito mais claro nessa peça (com o segundo tempo "prolongado", e terceiro tempo mais "curto"):
Apesar de eu ter mencionado Bach, optei por colocar um exemplo do Handel, pois o ritmo característico da sarabande é muito mais claro nessa peça (com o segundo tempo "prolongado", e terceiro tempo mais "curto"):
- A gigue é originária da Inglaterra (ou Escócia, segundo alguns), sendo uma dança rápida, geralmente em compasso composto (6/2, 6/4, 6/8) - não vou explicar compasso composto aqui, senão vai virar mais bagunça ainda:
Essas eram as danças básicas da suíte barroca - ao menos na Alemanhã, graças ao J. S. Bach - mas outras danças poderiam se encaixar na suíte (sempre tem lugar disponível para mais um!), geralmente entre a sarabande e a gigue). Essas outras danças acessórias (até acessórios a suíte usava!) eram conhecidas como galanteries, (minuette, bourrée, passepied, gavotte, etc), e costumavam ser menos elaboradas que as danças principais. O minueto aparecia muitas vezes em pares (dois minuetos acessórios - um na frente e outro atrás), sendo que o primeiro (minueto I) era repetido depois do segundo (minueto II): na frente, atrás, e depois na frente de novo. Podia ter 3 minuetos, também, e tudo ficava muito mais divertido, e a sequência seria minueto I, minueto II, minueto I, minueto III, minueto I (algo assim como: na frente, atrás, na frente de novo, agora no sovaco, e na frente de novo). O mesmo podia ocorrer também com outras danças acessórias, como a bourée, por exemplo.
Minuetos I, II, e III do Handel, de sua famosa suíte orquestral Música para os reais fogos de artifício:
Como a suíte já não era mais dançada, outros trechos "não-dançantes" também podiam ser incluídos (como o rondeau, o air, etc). Toda a sequência podia também ser precedida por uma introdução (alguém ainda tem dúvidas???), que poderia ser uma toccata, ou um prelúdio, ou uma abertura, etc.
Está achando que acabou??? Longe disso...
Suíte era originalmente apenas um entre os diversos nomes possíveis para essa criatura tão mutável, e ela assumia vários nomes. Na França era mais comum a designação ordre (além de suite de danses). Na Alemanha era comum também o termo partita para designar uma suíte; a maioria das partitas, porém, era para instrumentos solos - diferentemente da suíte, que podia ser para um, vários, ou muitos instrumentos - e tinha também a característica de apresentar menos movimentos dançantes - já veremos mais sobre isso!). Na Itália também se usava o termo partita, assim como sonata da camara.
Algumas vezes era aplicado o nome Overture a uma suíte, quando esta apresentava um movimento introdutório conhecido como abertura francesa, com uma forma bem característica: era composta de duas partes muito distintas, sendo a primeira lenta, com ritmo pontuado (pa-páaaaaa pa-páaaaaa pa-páaaaaa), seguida por uma seção mais rápida, contrapontística e em estilo fugato, que por sua vez também podia ser seguida ou não por uma repetição, reelaboração, variação, etc, da primeira parte (um leve variação do "Princípio dos Dois Acessórios" ). A forma acabou caindo no gosto dos compositores da época, e todo mundo escrevia overtures. Um dos exemplos mais famosos é a overture do Messias, do Handel:
E a overture da Overture nº 2, em si menor, para orquestra, BWV 1067, do Bach:
Está achando que acabou??? Longe disso...
Como nada em música é obrigatório, nem mesmo as danças básicas eram indispensáveis. Há muitos exemplos de suítes barrocas que não têm uma ou mais dessas danças. Até o nosso amigo Jotaésse às vezes decidia não usar todas as danças básicas, como na Partita nº 2, em dó menor, BWV 826, onde os movimentos são: Sinfonia (viu? já mudou também o tipo de movimento introdutório!), Courante, Sarabande, Rondeau (tecnicamente uma "não-dança"), terminando com um Capriccio (outra "não-dança"). A giga (uma das danças básicas) foi passear e não voltou em tempo de terminar a Suíte... Ou seja: entre os seis movimentos, três deles nem são danças!
A própria Overture nº 2 daí de cima só retém a sarabande, dentre as danças básicas. Os movimentos, nesse caso, são: Overture, Rondeau, Sarabande, Bourée I e II (tocadas de acordo com o já famoso Princípio), Polonaise e double, Menuet, e Badinerie. Para quem quiser "ouvê-la" inteira, aqui está:
O double (fique sabendo disso logo, para poder fazer bonito em sua próxima conversa com um músico!) é o termo técnico utilizado quando um movimento (neste caso, uma dança) é repetido integralmente numa versão mais ornamentada.
DIGRESSÃO
Já que eu falei em double, lembrei-me de não ter dito até agora que todas as danças (pelo menos as barrocas) têm uma característica formal em comum: todas elas são formas binárias (em duas partes), sendo que toca-se duas vezes a primeira parte (chamemos de 1a), e em seguida toca-se duas vezes a segunda (1b). E temos que todas as danças tem a forma 1a + 1a + 1b + 1b.
No caso do double, toca-se a primeira versão na íntegra (como está aí acima), e depois vem a versão mais elaborada (2a e 2b), que também é tocada com suas repetições (2a + 2a+ 2b+ 2b). Na prática, ouve-se quatro vezes cada uma das partes. (Credo... estou achando que eu errei, e que música é muito parecida com matemática mesmo... Mas, se você souber contar até 8 - ou até 13, de preferência - souber multiplicar e dividir por 2, 3 e 4, e souber calcular o "mínimo múltiplo comum", não precisa saber mais nada!).
Tentando "esclarificar", aqui vai a Sarabande e double, da Suíte Inglesa nº 6, em ré menor, do nosso amigo Jotaésse (novamente), mastigadinha, pra todo mundo entender:
Sarabande:
1a - 0:01
1a - 0:30
1b - 1:01
1b - 1:57
Double:
2a - 2:52
2a - 3:19
2b - 3:46
2b - 4:43
Mas, voltando ao ponto, antes da DIGRESSÃO, onde eu falava da falta de algumas danças básicas e a inclusão de movimentos não-dançantes: o nosso novo amigo, François Couperin, na França, também vai progressivamente abandonando muitos movimentos de dança, e passa a compor suítes com movimentos cada vez mais "idiossincráticos" (por falta de palavra melhor): descritivos, engraçados, ameaçadores, virtuosísticos, ou qualquer coisa que lhe desse na telha, como o "Le Tic Toc Choc, ou Les Maillotins", da Ordre 18ème de clavecin, em fá maior:
(Ridículo de lindo, credo!!!!!)
Para os mais puristas (ou para aqueles que simplesmente preferem o cravo), um vídeo com a mesma peça executada num instrumento de dois teclados (a configuração recomendada por Couperin para essa suíte):
Para quem está acostumado com as suítes alemãs é sempre um choque conhecer as ordres do Couperin, com seus inúmeros e estranhos trechos. Só para citar um exemplo, a Ordre 3ème de clavecin, em dó menor, tem 13 movimentos: "La ténébreuse" (allemande), Premiere courante, Seconde courante, "La lugubre" (sarabande), Gavotte, Menuet, "Les pélerines", "Les laurentines", "L'Espagnolète", "Les regrets", "Les matelotes provençales", "La favorite" (chaconne), "La lutine".
Ou, mais "estranhas" ainda, as suítes de Jean-Philippe Rameau, como a Suíte em sol maior/menor, com os movimentos "Les tricotets" (rondeau), "L'Indifférente", Menuet I e II, "La Poule", "Les Triolets", "Les Sauvages", "L'Enharmonique", e "L'Égyptienne" (não encontrei nenhuma versão integral da suíte executada no cravo, portanto, vamos com piano mesmo, apesar de eu preferir o cravo, no caso de Rameau):
Os franceses, em resumo, faziam o que bem entendiam com suas suítes, coitadas, e elas tinham que se submeter a todos os caprichos dos compositores...
Como se não bastasse, o termo suíte também começou a ser aplicado ao ciclo de peças compostas como música incidental para obras teatrais (ou filmes, mais recentemente), ou para designar a coletânea de trechos orquestrais dançáveis extraídos de formas maiores (óperas por exemplo), ou a música composta especialmente para balés. Ou seja: começaram a olhar as pobres coleções e chamá-las todas de suítes, independentemente de suas profissões, só porquê elas não tinham pedigree. Apesar disso, todos os tipos faziam sucesso! A criatividade rolava solta, e todo compositor queria ter uma suíte (ou várias) para chamar de sua!
Como se não bastasse, o termo suíte também começou a ser aplicado ao ciclo de peças compostas como música incidental para obras teatrais (ou filmes, mais recentemente), ou para designar a coletânea de trechos orquestrais dançáveis extraídos de formas maiores (óperas por exemplo), ou a música composta especialmente para balés. Ou seja: começaram a olhar as pobres coleções e chamá-las todas de suítes, independentemente de suas profissões, só porquê elas não tinham pedigree. Apesar disso, todos os tipos faziam sucesso! A criatividade rolava solta, e todo compositor queria ter uma suíte (ou várias) para chamar de sua!
A partir do Romantismo (principalmente após 1850), com a entrada na cena musical de países até então "desconhecidos", suítes do mundo inteiro começaram a invadir a Europa (fato que continuava ocorrendo até bem pouco tempo atrás com outras classes "trabalhadoras"), pois elas serviam como veículo ideal para se mostrar um dos elementos mais característicos de qualquer cultura: suas danças.
Mostra! Mostra!
E lá vem o Antonín Dvorák, com sua Suíte Tcheca (juro que não foi de propósito!), com os movimentos Preludium (pastorale), Allegro moderato, Polka, "Sousedská" (minuetto), Romance, e Finále (furiant):
E lá vem o Antonín Dvorák, com sua Suíte Tcheca (juro que não foi de propósito!), com os movimentos Preludium (pastorale), Allegro moderato, Polka, "Sousedská" (minuetto), Romance, e Finále (furiant):
Ou o dinamarquês Carl Nielsen, com sua Pequena Suíte para Cordas (Präludium, Intermezzo, Finale):
Também tem o russo Alexander Borodin, com sua Petite Suite para piano, com os movimentos "Au couvent", Intermezzo, Mazurka I, Mazurka II, "Rêverie", Serenade, e Nocturne. Desde então, suítes russas não pararam de inundar a Europa, para desespero das nativas, que acharam que iriam ficar sem trabalho. Como acontece até hoje (eu disse que a humanidade caminha em círculos, não disse, no post anterior?), o medo era infundado, e as suítes de pura extração europeia continuaram a viver felizes, e também se multiplicaram. Em cada esquina, portanto, era possível encontrá-las de qualquer nacionalidade, para todos os gostos, para atender aos fregueses mais exigentes.
Até os ingleses, criaturas tão comedidas, resolveram investir nas suítes, e lá vem Edward Elgar, que volta a colocar seu país no cenário musical depois de séculos de silêncio, com suas suítes The Wand of Youth nº 1 e 2. Como só encontrei integral da número 2 (com seus movimentos March, "The Little Bells" (scherzino), "Moths and Butterflies" (dance), "Fountain Dance", "The Tame Bear", e "The Wild Bears"), vai ela mesma, em duas partes:
Por falar em Inglaterra, uma das suítes mais populares (que hoje em dia poucas pessoas ouvem, na verdade), é Os Planetas, de Gustav Holst, onde os movimentos são dedicados a cada um dos planetas do Sistema Solar (à exceção da Terra), com suas características astrológicas:
- "Mars, the Bringer of War";
- "Venus, the Bringer of Peace";
- "Mercury, the Winged Messenger";
- "Jupiter, the Bringer of Jollity";
- "Saturn, the Bringer of Old Age";
- "Uranus, the Magician"; e
- "Neptune, the Mystic".
Viu como havia suítes para qualquer tipo de cliente? Até clientes esotéricos poderiam, enfim, desfrutar de seus prazeres sem incorrer em desgraça!
Tenho certeza que eu já disse, mas repito: TODO MUNDO ESCREVIA SUÍTES! No século XX, então, da Rússia ao Brasil, da Argentina aos Estados Unidos, foram poucos os que escaparam dessa "maldição". A profusão de exemplos, com os mais diferentes tipos de danças (ou "não-danças"), é assustadora! Mas, para terminarmos com o assunto antes que eu nunca mais queira escutar suíte alguma pelo resto da vida, alguns exemplos vindos das Américas:
Tenho certeza que eu já disse, mas repito: TODO MUNDO ESCREVIA SUÍTES! No século XX, então, da Rússia ao Brasil, da Argentina aos Estados Unidos, foram poucos os que escaparam dessa "maldição". A profusão de exemplos, com os mais diferentes tipos de danças (ou "não-danças"), é assustadora! Mas, para terminarmos com o assunto antes que eu nunca mais queira escutar suíte alguma pelo resto da vida, alguns exemplos vindos das Américas:
Suíte Popular Brasileira, para violão, do Heitor Villa-Lobos (Mazurka-Choro, Schottisch-Choro, Valsa-Choro, Gavotta-Choro, e Chorinho):
Suíte de Danzas Criollas, para piano, do argentino Alberto Ginastera (Adagietto pianissimo, Allegro rustico, Allegretto cantabile, Calmo e poético, Scherzando - Coda: presto):
E a Appalachian Spring Suite, do americano Aaron Copland:
Se ainda houver alguém que não esteja enjoado de suítes, aconselho procurar outras na Internet. Tenho certeza que vai encontrar ao menos um exemplo para cada país do mundo. QUALQUER UM!!! Duvida? Então aqui vai a Oja Flute Suite, do nigeriano Joshua Uzogwe (movimentos Ilulu, Ogbe, e "A Sketch for Flute"):
Como pudemos aprender, portanto, a profissão mais antiga do mundo, e que continua fazendo sucesso até hoje, não era aquela que nós pensávamos! Deve ser por isso que até hoje é comum ouvirmos, na entrada de qualquer motel: "Ainda tem alguma suíte disponível?"
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