quarta-feira, 21 de maio de 2014

Estilistas na fase oral 9: balaio de gatos 2.0

Lá vamos nós para mais um post da interminável série Estilistas. Mas não desanimem! Já estamos terminando nossa jornada pela música vocal de 1600-e-bolinha prá cá, e depois só precisaremos fazer o mesmo com a música de câmara, e a música sinfônica, e a ópera (ainda vou decidir sobre isso), e a música para piano (também vou pensar a respeito...). Ou seja: até 2024 provavelmente teremos chegado à metade do caminho. Então, sem mais delongas, vamos passar à música vocal secular dos séculos XX e esse toquinho de século XXI.

Assim como na música sacra (ou em qualquer outro tipo), o que não falta nestes últimos 150 anos é variedade. Os ismos continuam todos a postos, cada um em sua gaveta, só esperando que a gente as abra e escolha o que nos interessa.

A quantidade de música - de boa música - vocal desse último século e meio é tão gigantesca, os estilos são tão variados, que qualquer apanhado que se tente fazer deixará milhões de coisas interessantes de escanteio. Isto posted, comecemos, finalmente, por uma das categorias de música vocal secular que eu mais gosto desse período, as canções com orquestra.

Claro que há tempos canções para solista e orquestra (como árias de concerto e cantatas) não são novidade:


Elas, porém,  se tornarão um gênero muito comum a partir do final do século XIX. Richard Strauss foi um dos mais prolíficos (eita palavra feia!) compositores desse tipo de canção; entre muitas, algumas são obras-primas, como "Morgen!", Op. 27 no. 4:

 
"Morgen!", porém, foi composta originalmente para voz e piano, mas, assim como inúmeras outras canções dele e de muitos outros compositores, existe também em versão para voz e orquestra. Claro que existem aquelas compostas originalmente para orquestra, como suas mais famosas canções, o espetacular ciclo das Vier letzte Lieder ("Frühling", "September", "Beim Schlafengehen", "Im Abendrot"). Aumente o volume para aproveitar melhor essa música que é ao mesmo tempo grandiosa, intimista, avassaladora, trágica, calma, estática, etc, etc, etc:

(Os poemas - do Herman Hesse e Josef von Eichendorff - estão AQUI)

Ficou difícil continuar com o assunto, agora, mas vou tentar...

Não é possível falar de canções com orquestra sem pensar em Gustav Mahler. Eu acho suas sinfonias algumas das coisas mais enfadonhas do planeta; já seus ciclos de canções são outra história! Meu favorito é o (obviamente) trágico Kindertotenlieder (Canções para a morte da criança):

(Os textos estão AQUI)

Poderíamos passar dias só falando de ciclos de canções orquestrais (há muitos e muitos e muitos, um mais lindo que o outro), mas não temos tempo para tanto... Vamos ouvir, então, apenas mais um ciclo, composto quase 40 anos antes do Vier letzte Lieder, mas muito mais "moderno", o Altenberg Lieder, Op. 4, do Alban Berg, com poemas de Peter Altenberg:

1. Seele, wie bist du schöner
2. Sahst du nach dem Gewitterregen den Wald?
3. Über die Grenzen des Alls
4. Nichts ist gekommen
5. Hier ist Friede

 (Textos AQUI)

Não resisti, e vou colocar outro (pequeno) ciclo que eu adoro, Don Quichotte à Dulcinée, do Maurice Ravel:

 (Os poemas - de Paul Morand - estão AQUI)

E ainda mais um outro, de Karol Szymanowski - também entre meus preferidos - a Sinfonia nº 3, para orquestra, tenor e coro. É uma sinfonia, mas também é um ciclo de canções, então serve!:

(Só encontrei o texto em polonês, que é pior que russo. Nem me darei ao trabalho de colocá-lo aqui)

Muitos "fetichistas" que conheço pertencem à categoria "Eu não suporto piano", que costumam ficar maravilhados por a orquestra haver roubado um lugar que pertencia quase exclusivamente a ele, o piano. Alegro-me em informar, porém, que o gênero voz+piano ainda não deu sinal de estar correndo perigo, mesmo porque é muito mais barato pagar um só pianista que pagar dezenas de músicos!

Essa é, então, a deixa para ouvirmos algumas canções (e ciclos) para voz e piano, começando com um dos meus favoritos, Claude Debussy, um dos pais da música moderna, e seu pequeno e lindíssimo ciclo para voz e piano, Les Chanson de Bilitis, com poemas de Pierre Louÿs:


1. La flûte de Pan

Pour le jour des Hyacinthies,
il m'a donné une syrinx faite
de roseaux bien taillés,
unis avec la blanche cire
qui est douce à mes lèvres comme le miel.

Il m'apprend à jouer, assise sur ses genoux ;
mais je suis un peu tremblante.
il en joue après moi,
si doucement que je l'entends à peine.

Nous n'avons rien à nous dire,
tant nous sommes près l'un de l'autre;
mais nos chansons veulent se répondre,
et tour à tour nos bouches
s'unissent sur la flûte.

Il est tard,
voici le chant des grenouilles vertes
qui commence avec la nuit.
Ma mère ne croira jamais
que je suis restée si longtemps
à chercher ma ceinture perdue.

2. La chevelure

Il m'a dit: « Cette nuit, j'ai rêvé.
J'avais ta chevelure autour de mon cou.
J'avais tes cheveux comme un collier noir
autour de ma nuque et sur ma poitrine.

« Je les caressais, et c'étaient les miens ;
et nous étions liés pour toujours ainsi,
par la même chevelure, la bouche sur la bouche,
ainsi que deux lauriers n'ont souvent qu'une racine.

« Et peu à peu, il m'a semblé,
tant nos membres étaient confondus,
que je devenais toi-même,
ou que tu entrais en moi comme mon songe. »

Quand il eut achevé,
il mit doucement ses mains sur mes épaules,
et il me regarda d'un regard si tendre,
que je baissai les yeux avec un frisson.

3. Le tombeau des Naïades

Le long du bois couvert de givre, je marchais;
Mes cheveux devant ma bouche
Se fleurissaient de petits glaçons,
Et mes sandales étaient lourdes
De neige fangeuse et tassée.

Il me dit: "Que cherches-tu?"
Je suis la trace du satyre.
Ses petits pas fourchus alternent
Comme des trous dans un manteau blanc.
Il me dit: "Les satyres sont morts.

"Les satyres et les nymphes aussi.
Depuis trente ans, il n'a pas fait un hiver aussi terrible.
La trace que tu vois est celle d'un bouc.
Mais restons ici, où est leur tombeau."

Et avec le fer de sa houe il cassa la glace
De la source ou jadis riaient les naïades.
Il prenait de grands morceaux froids,
Et les soulevant vers le ciel pâle,

Il regardait au travers.

E também tem Manuel de Falla e seu (perfeito) ciclo Siete canciones populares españolas. Para você ver até onde vai o preconceito: existem versões deste ciclo para orquestra e para violão, e - apesar de o original ter sido composto para voz e piano - já me aconteceu de virem comentar que a "versão" para piano é muito pior que o "original" para violão e voz... Tudo bem preferir a versão com violão - fique à vontade! - mas não deixe seu pré-conceito tomar as rédeas, pois preconceito musical é igual a qualquer outro tipo: só serve para mostrar ignorância. Enfim... aqui vai o vídeo da "versão para piano e voz" (o vídeo é estranhíssimo - não há vídeo - mas das versões que encontrei no YT essa é minha favorita):

 (O texto - minúsculo - está AQUI)

E, já que passamos a um gênero mais "popular", vamos ouvir uma canção (voz e piano) do americano Charles Ives, um dos primeiros americanos "modernos". É tão moderno, tão moderno, que muitas de suas canções, ao menos, poderiam servir para um show da Madeleine Peyroux, como, por exemplo, "Songs My Mother Taught Me":


Lindo! Quem ouve nem pensa que tem uns 100 anos de idade! Tá certo que esta versão, apesar de seguir (quase) fielmente a partitura, tem um ar muito mais "autêntico", na minha opinião, do que as versões "lírico-operísticas" de todas as outras gravações de Ives que conheço. Adoro essa cantora, Cristina Zavalloni, justamente por seu jeito mais "popular" de cantar a música clássica, sem cair na "armadilha dos Três tenores". Ó outro exemplo dela, cantando o nº 5, "Nana", das Siete Canciones do Falla:


Mas continuemos com nosso assunto. Nós já ouvimos por aqui muitas canções do século XX quando falei de Duparc e da música "de cabaré". Vamos passar, então, para coisas mais indigestas; mais indigestas, mas nem por isso piores. Comecemos com Schoenberg e seu Um Sobrevivente de Varsóvia, Op. 46, para narrador, coro masculino, e orquestra:



I cannot remember ev'rything.
I must have been unconscious most of the time.
I remember only the grandiose moment
when they all started to sing as if prearranged,
the old prayer they had neglected for so many years
the forgotten creed!

But I have no recollection how I got underground
to live in the sewers of Warsaw for so long a time.

The day began as usual: Reveille when it still was dark.
Get out! Whether you slept or whether worries kept you awake the whole night.
You had been separated from your children, from your wife, from your parents;
you don't know what happened to them; how could you sleep?

The trumpets again --
Get out! The sergeant will be furious!
They came out; some very slow: the old ones, the sick ones;
some with nervous agility.
They fear the sergeant. They hurry as much as they can.

In vain! Much too much noise; much too much commotion -- and not fast enough!
The Feldwebel shouts: 
»Achtung! Stilljestanden! Na wirds mal? 
Oder soll ich mit dem Jewehrkolben nachhelfen? 
Na jutt; wenn ihrs durchaus haben wollt!«

The sergeant and his subordinates hit everybody:
young or old, quiet or nervous, guilty or innocent.
It was painful to hear them groaning and moaning.

I heard it though I had been hit very hard,
so hard that I could not help falling down.
We all on the ground who could not stand up were then beaten over the head.

I must have been unconscious. 
The next thing I knew was a soldier saying:
»They are all dead«,
whereupon the sergeant ordered to do away with us.
There I lay aside half-conscious.
It had become very still -- fear and pain.

Then I heard the sergeant shouting: »Abzählen!«
They started slowly and irregularly: one, two, three, four
»Achtung!« the sergeant shouted again,
»Rascher! Nochmal von vorn anfangen!
In einer Minute will ich wissen,
wieviele ich zur Gaskammer abliefere!
Abzählen!»

They began again, first slowly: one, two, three, four,
became faster and faster, so fast
that it finally sounded like a stampede of wild horses,
and all of a sudden, in the middle of it,
they began singing the Sema' Yisroel:

"Sh'ma Yisraeil, Adonai Eloheinu, Adonai Echad.
V'ahavta eit Adonai Elohecha b'chawl l'vav'cha 
uv'chawl nafsh'cha, uv'chawl m'odecha. 
V'hayu had'varim haeileh, asher anochi m'tsav'cha hayom, al l'vavecha. 94
V'shinantam l'vanecha, v'dibarta bam b'shivt'cha b'veitecha, 
uvlecht'cha vaderech, uv'shawchb'cha uvkumecha. 
Ukshartam l'ot al yadecha, v'hayu l'totafot bein einecha. 
Uchtavtam, al m'zuzot beitecha, uvisharecha."

Não podemos falar de obras para coro e orquestra sem ouvirmos a Cantata Profana, Sz 94, de Béla Bártok:

(Não encontrei o texto integral, nem em romeno!, mas tem uma explicação do que se trata, AQUI)

Nem sem ouvir a Cantata Aleksandr Nevskii, para contralto, coro, e orquestra, que Sergei Prokofiev rearranjou a partir da música do filme de Sergei Eisenstein:

(Saco... mais uma sem legenda. Vamos ter que assistir ao filme original novamente para entender o  que está acontecendo. E o filme - com legendas em francês - está AQUI)

Tá vendo como tem um monte de coisa linda no século XX? Tenho certeza que até o anti-moderno mais empedernido não resiste a, por exemplo, Carmina Burana. Todo mundo conhece o trecho inical, "Fortuna, Imperatrix Mundi". Um dos meus trechos favoritos, porém, é "In trutina", já quase no final da cantata:


Para contrabalançar uma das obras mais populares do século XX, vamos para o outro extremo, com as Sechs Lieder, Op. 14, do Anton Webern, sobre poemas de Georg Trakl:

(Os textos, em várias línguas, podem ser lidos nos links 1, 2, 3, 4, 5, 6)

Nós já ouvimos horas de música mas não conseguimos chegar nem em 1950! Teremos que voltar outro dia a esse assunto, e terminarmos por hoje com Villa-Lobos. Primeiro, a "Canção do Poeta do Século XVIII". A qualidade dos vídeos disponíveis no IúTúbi é um um tanto quanto sofrível; vamos escutar a melhor delas, apesar do problema que eu tenho com o português da Tereza Berganza:


A "tradução" do poema de Alfredo Ferreira é esta:

Sonhei que a noite era festiva e triste a lua
E nós dois na estrada enluarada fria e nua.
Nuvens a correr em busca de quimeras
E com as nossas ilusões de fantasias
De viver como no céu a cantar
uma doce canção que enche de luz
o amor e a vida nas linhas das primaveras.

Mais bonita é a "Canção de Amor", da suíte Floresta do Amazonas:


Sonhar na tarde azul
Do teu amor ausente
Suportar a dor cruel
Com esta mágoa crescente
O tempo em mim agrava
O meu tormento, amor!

Tão longe assim de ti
Vencida pela dor
Na triste solidão
Procuro ainda te encontrar
Amor, meu amor!

Tão bom é saber calar
E deixar-se vencer pela realidade
Vivo triste a soluçar
Quando, quando virás enfim?

Sinto o ardor dos beijos teus
Em mim. Ah!
Qualquer pequeno sinal
E fremente surpresa
Vem me amargurar

Tão doce aquela hora
Em que de amor sonhei
Infeliz, a sós, agora
Apaixonada fiquei
Sentindo aqui fremente
O teu reclamo amor!

Tão longe assim de ti
Ausente ao teu calor
Meu pobre coração
Anseia sempre a suplicar
Amor, meu amor!

E a obra completa, para quem quiser:


Das Bachianas Brasileiras no. 5, para voz e orquestra de violoncelos, não preciso nem falar, pois todo mundo a conhece. Vamos ouvir, ao invés disso, o maravilhoso Chôros nº 10, "Rasga Coração", para coro e orquestra:


Infelizmente as versões que encontrei no YT utilizam a versão publicada por Villa-Lobos, sem texto, devido ao processo movido contra ele por ter utilizado o poema sem pagar por isso. O poema, de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense é esse abaixo, e eu adoraria poder ouvi-lo junto com a música:

Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
Refletindo a prismatização da luz solar
Rasga o coração, vem te debruçar
Sobre a vastidão do meu penar

Rasga-o, que hás de ver
Lá dentro a dor a soluçar
Sob o peso de uma cruz
De lágrimas chorar
Anjos a cantar preces divinais
Deus a ritmar seus pobres ais

Sorve todo o olor que anda a recender
Pelas espinhosas florações do meu sofrer
Vê se podes ler nas suas pulsações
As brancas ilusões e o que ele diz no seu gemer
E que não pode a ti dizer nas palpitações
Ouve-o brandamente, docemente a palpitar
Casto e purpural num treno vesperal
Mais puro que uma cândida vestal

Hás de ouvir um hino
Só de flores a cantar
Sobre um mar de pétalas
De dores ondular
Doido a te chamar, anjo tutelar
Na ânsia de te ver ou de morrer

Anjo do perdão! Flor vem me abrir
Este coração na primavera desta dor
Ao reflorir mago sorrir nos rubros lábios teus
Verás minha paixão sorrindo a Deus

Palma lá do Empíreo
Que alentou Jesus na cruz
Lírio do martírio
Coração, hóstia de luz
Ai crepuscular, túmulo estelar
Rubra via-sacra do penar 


Enquanto ninguém faz isso (nem o Karabtchevsky nem a BBC se dispuseram a tanto), vou ficar por aqui, esperando, esperando, esperando...

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