quarta-feira, 31 de julho de 2013

A Senhora do Anel

Aos germanófilos de plantão, sinto informar, mas indispensável, mesmo, para se entender "O Anel dos Nibelungos", do Wagner, é saber inglês:





Para quem não tiver muita paciência para ouvir 20 horas de música (o Anel inteiro), esses vídeos permitirão que você possa discutir o ciclo de óperas sem nunca tê-las ouvido!

Para quem não tiver paciência de ouvir nem mesmo esses 3 vídeos daí de cima, há a versão levemente condensada - e mais antiga - relançada em CD (sem vídeo, portanto) na década de 90 (se não me engano):


E agora você já sabe tudo sobre O Anel!

Subgênios, ativar! : Chopin


Antes que me joguem pedras: o título Subgênios é ironia, ok? E, antes que eu me esqueça, subgênio é muito feio... prefiro sub-gênio...

Fryderyk Franciszek Chopin (1810-1849) foi um dos grandes compostores da música clássica ocidental (como se eu precisasse dizer...). TODO mundo conhece Chopin! Não importa se você é "contra" ou " a favor" mas, que você conhece, conhece, não tem como escapar! 

O público e os pianistas (claro) adoram Chopin! Mas apenas o público e os pianistas, pois sua música sempre sofreu, na minha opinião, discriminação pelos demais músicos. O "problema" é que Chopin sempre foi, antes de tudo, pianista, e sua incapacidade de escrever para outros instrumentos faz com que seja considerado um compositor menor, um subgênio (eca! ó isso aqui de novo!). Preconceito puro, eu acho. Se ele houvesse escrito uma sinfonia, um concerto para violino, ou ao menos um concerto para tuba, aposto que sua reputação entre os demais músicos seria completamente diferente.

Pois ele foi um gênio. Sua competência, nas formas musicais que usou, é impressionante. Não escreveu sinfonia, nem um concerto para violino (nem para tuba), mas competência não significa saber fazer TUDO. Competência também significa, para mim, saber aquilo que é capaz de fazer e, dentro dessa limitação, fazer o melhor possível. Nisso Chopin é insuperável, e tudo aquilo em que ele botou a mão adquiriu uma personalidade tão forte como a sua própria.

Não é à toa que seus Noturnos praticamente bastam para suprir todo o repertório de noturnos, deixando em segundo plano compositores anteriores (o irlandês John Field - de onde Chopin tirou a ideia de noturno) e posteriores (como os franceses Gabriel Fauré e Francis Poulenc). O mesmo acontece com seus:

- Scherzos (não é invenção dele, claro, mas ele é quem teve a ideia de "desgrudar" o scherzo da sinfonia e sonata e torná-lo uma peça independente);

- Estudos (a concepção de estudo de concerto - peças de estudo que podem ser apresentadas em concerto, devido à qualidade musical - também não é de Chopin, mas seus Études são os primeiros que fincaram pé no repertório - e provavelmente não sairão dali tão cedo);

- Polonaises, mazurkas (também não as inventou, mas as tirou do nicho da música folclórica polonesa e as jogou no mundo) e valsas;

- Prelúdios (obviamente já exitiam prelúdios, mas em seu ciclo de 24 prelúdios realiza uma das ambições da música Romântica: o ciclo de fragmentos musicais dependentes/independentes - um dia eu falo disso, talvez);

- Baladas (a balada instrumental é invenção dele - antes disso, balada se referia à poesia narrativa, que podia ou não ser musicada, mas nunca puramente instrumental).

Não é uma lista muito grande, mas eu me contentaria se fosse a minha lista de composições! Tudo (quase tudo) que ele fazia ficou mais difícil de ser feito, depois. Descontando os prelúdios (em que o Bach aparece em primeiro lugar, com seus prelúdios e fugas), é praticamente impossível pensar no resto sem pensar em Chopin antes de qualquer outro compositor.

Uma de suas características marcantes é a preferência pelas formas curtas (todas essas acima são dessa categoria). Nessas, não tem pra mais ninguém! Nas formas instrumentais longas - sinfonia, concerto, sonata - Chopin não se sentia tão à vontade, e em muitas de suas composições nessas formas (à exceção da sinfonia, que ele nunca nem se deu ao trabalho de tentar) a marca que ele deixou não é tão relevante. Mas isso é perfeitamente "entendível": depois de Haydn, Mozart, Beethoven, ficou difícil competir em qualquer uma dessas categorias longas: todo mundo, em maior ou menor grau, depois da "Santíssima Trindade" da música clássica vienense, teve inúmeros problemas quando se aventuraram nesse grandes formas, pois a herança dos três assombrou o século XIX inteiro. Mas nas formas curtas Chopin é o mestre de todos!

Só para ilustrar o que considero marcas indeléveis de Chopin:

O Noturno em si bemol maior, de John Field:


(Chopin teve um bom "professor"... bem bonito o Noturno, né?)

E o Noturno nº 1, em si bemol menor, de Chopin:


(Mas convenhamos... o "aluno" se saiu melhor!)

Estudo nº 42, em fá maior, da coleção Gradus ad Parnassum, do Clementi:


(Não dá para reclamar que é feio...)

E o Estudo Op. 10, nº 8, também em fá maior, do Chopin:


(Reclama-se menos ainda!)

Polonaise Op. 40, nº 2, em dó menor, do Chopin (não tem muito com quem comparar...):


Valsa Op. 64, nº 2, em dó sustenido menor:


Quem só ouve os Noturnos de Chopin, ou ouve sempre as mesmas coisas, mais "populares", de sua música, acha que tudo é sempre igual, sempre "romântico", no sentido pejorativo do termo (apesar de eu duvidar que, depois de ouvir o Prelúdio Op. 29, nº 4, em mi menor, alguém ainda ache que seu "romantismo" é um ponto negativo):


Mas Chopin é muito mais que isso! Há um lado fantasmagórico/tenebroso em sua música que é relativamente menos conhecido, mas tão característico quanto seu "romantismo", como no Scherzo nº 1, Op. 20, em si menor:


(Nesse caso, o lado fantasmagórico/tenebroso é contrabalançado pelo trecho central do Scherzo, de um modo um tanto quanto "bipolar", eu acho)

Muito mais totalmente fantasmagórico é o último movimento da Sonata para piano nº 2, Op. 20, em si bemol menor:


Ainda mais se considerarmos que o trecho acima vem após isso aqui:


Até nessa sonata Chopin consegue, de certo modo, competir com o mestre Beethoven: quem é pensa em Marcha Fúnebre e se lembra primeiro da Sonata nº 12, Op. 26, em lá bemol maior, do Beetho?:


(Lindo também, sem dúvida!)

Mas, continuando com Chopin, que tal a "fantasmagorice" do Prelúdio Op. 28, nº 2, em lá menor?:


Ou o desespero/fatalismo do último prelúdio da série, o nº 24, em ré menor?:


(Tranquem as janelas e joguem as chaves fora!)

Ou o último de todos, o Estudo Op. 25, nº 12, em dó menor:


(Aqui Chopin consegue dar um ar quase beethoveniano ao final, com sua mudança para dó maior - lembra-me a Sinfonia nº 5, também em dó menor, do Ludwig van, onde a tragédia do dó menor é aliviada pelo final em dó maior)

Chega a ser estranho, chamar essas peças de estudos... é como chamar de estudos os desenhos do Da Vinci (tá bom... tecnicamente são estudos - em sentidos completamente diferentes, apesar do termo igual - mas são muito mais que isso!).:


(Estudos para dois soldados da Batalha de Anghiari - Museu de Belas Artes de Budapeste)

Por falar nos Études, essas obras de Chopin estão entre os picos mais elevados da virtuosidade pianística (além de serem lindos!). Se você conseguir tocá-los bem, (quase) não precisa estudar mais nada, nunca mais, jamais, para todo o sempre, até o fim da eternidade! Depois de tocar a sequência dos 24 Estudos, o resto (quase) todo é "bico"! Talvez fique faltando um pouco de "estudo" para enfrentar alguns dos estudos do Liszt, como o nº 12 dos Estudos Transcendentais, "Chasse-neige", 


Um pouco de prática a mais também seria conveniente, se um dia você quiser se aventurar pelos estudos do Ligeti, como esse aqui, o nº 10, "Der Zauberlehrling":


Mas nem tudo é pirotecnia em se tratando de estudos. Outras dificuldades (expressão, sonoridade) também são exploradas, como no maravilhoso Estudo Op. 10, nº 6, em mi bemol menor, do Chopin (voltamos pra ele):


Não preciso nem falar (mas vou) de "Tristesse", que ninguém no mundo (salvo quem já sabe, claro) imagina que seja um estudo:


E, para terminar, uma amostrinha da "falta de competência" de Chopin nas formas grandes - nesse caso, o 2º movimento do Concerto para piano e orquestra nº 2, Op. 21, em fá menor, composto quando ele tinha a idade "madura" de 19 anos:


(Mesmo quando Chopin "erra", ele acerta!!!)

Bom... acho que já deu para dar uma ideia de quem foi Chopin. Melhor dizendo, uma ideia daquilo que sua música representa. Quanto ao homem Chopin, uma das melhores definições, pra mim, é aquela de um dos comentários do Youtube, para o vídeo acima da Valsa Op. 64 nº2:

"Chopin was not a god. He was just a man, and that is what makes him even more divine."

Propaganda é a alma do negócio!

Um pouco "bonitinho" demais, mas é muito melhor do que não ter propaganda nenhuma!



sexta-feira, 19 de julho de 2013

Au milieu de l'azur, des vagues, des splendeurs...

Em 1848 nasce Henri Duparc; na década de 1860 ele destrói todas as composições que havia feito até então; aos 19 anos compõe sua primeira peça "séria"; a Sonata para piano e violoncelo; serve na Guerra Franco-Prussiana (1870-71); casa-se em 1871 e torna-se amigo de Fauré, Chausson, Chabrier, Saint-Säens; em 1878 cria os Concerts de musique moderne, para divulgar obras de compositores da época; destrói a suíte de valsas para orquestra Laendler em 1873; em 1885 é diagnosticado com "neurastenia" e resolve parar de compor para se dedicar à família e à pintura; destrói a canção "Recueillement" em 1886; destrói sua ópera inacabada, Roussalka, em 1895; fica cego em 1916; recolhe-se em 1919 a Mont-de-Marsan, onde vive recluso devido a uma paralisia; falece em 1933, aos 85 anos de idade...

(Duparc durante a Guerra)

Algumas coisas no mundo não são muito fáceis de se entender. Ainda mais difícil é entender como Duparc - cujas obras instrumentais foram praticamente esquecidas - conseguiu ser um dos grandes compositores de canções da França do século XIX. Dezessete canções, ao todo, é o que resta de vivo de sua música; mas é o suficiente, e continuará vivo enquanto alguém ainda cantar neste mundo. 

Entre suas primeiras canções para piano e voz, "Lamento" e "Chanson Triste", ambas de 1868 - quando Duparc tinha 20 anos, e "La Vie antérieure", a última, de 1876, não dá para distinguir nenhuma evolução na qualidade de sua música. O estilo muda um pouco, parece que torna-se mais profundo, mais "extraterrenamente" apropriado aos poemas.

Lembra-me de Schubert, que também aos 20 anos já sabia tudo sobre lied (canção alemã), como em sua famosa "A Morte e a Donzela":

Vorüber! Ach, vorüber!
Geh, wilder Knochenmann!
Ich bin noch jung! Geh, lieber,
Und rühre mich nicht an.

Gib deine Hand, du schön und zart Gebild!
Bin Freund, und komme nicht, zu strafen.
Sei gutes Muts! ich bin nicht wild,
Sollst sanft in meinen Armen schlafen!

E, em português:

Afaste-se! Ah, afaste-se!
Vá, feroz homem de ossos!
Anda sou jovem! Vá,
E não me toque.

Dê-me sua mão, bela e delicada forma!
Sou amigo, e não venho para punir.
Seja corajosa! Eu não sou feroz,
Tranquilamente você dormirá em meus braços!


Lembro-me de Schubert também quando sinto que nunca mais serei capaz de ler, ver, pensar em qualquer dos poemas musicados por Duparc sem ouvir a música que os acompanha. Quem é que consegue imaginar o poema "An die Musik", do Franz Schober, sem pensar na música do Franz Schubert?:

Oh, bela Arte, que em muitas horas cinzentas,
Quando as penuras da vida me cercam,
Aqueceu-me o coração com seu amor,
E levou-me a um mundo melhor!

Um suspiro exaladado por sua harpa,
Um doce e abençado acorde seu,
Abrem-me um céu de dias melhores;
Oh, querida Arte, por tudo isso eu te agradeço!


Para quem gosta de coisas grandes: a tuba

Já pensou se todo mundo tocasse violino?

Desvantagens:

- Uma orquestra ficaria auditiva e visualmente muito sem-graça;
 

 - A clave de fá nunca teria sido inventada;

- O mundo pareceria uma "plantação de pernilongo", num zumbido agudo sem trégua;

- A humanidade toda teria marcas roxas no pescoço:



Vantagem:

- Haveria bem menos pianistas.


Já que, felizmente, não existem apenas violinos, me deu vontade de ouvir música para instrumentos (escolha sua opção favorita):

( ) menos populares;

( ) mais estranhos;

( ) meio esquisitos;

( ) que soam maravilhosamente bem na orquestra, mas que eu não sabia que era possível ouvir fazendo solos.


Portanto, comecemos pelo "um-pá-pá" de um dos moradores da região mais profunda da orquestra, e vejamos como a tuba é construída:


Impressionante, não é? Quase dá vontade de largar tudo e ir tocar tuba! Mas ela parece não ter um repertório muito extenso (ou muito conhecido), e relativamente poucos compositores se atrevem a enfrentar o desafio de escrever para um instrumento sem tantos recursos técnicos ou expressivos (que os "tubistas" me perdoem, ok?), e que consome um litro de ar para cada nota tocada.


Voltemos ao Monteverdi?

Depois de ouvirmos os nove livros de madrigais, aposto que já sabemos tudo sobre ele, não????

Errado! Os madrigais, para o Monte, eram mais ou menos como as sonatas para piano, para o Beethoven - muitas são maravilhosas, outros são menos, outras são claramente experiências feitas pensando em uso posterior em sinfonias e/ou quartetos. Da mesma maneira, Monteverdi via seus madrigais como "meios", e não como "fins". Como eu disse, eles são o campo onde a expressividade e o controle da harmonia são colocados à prova, testados, avaliados, e depois usados em obras maiores.

Não é à toa que a primeira ópera de Monteverdi, L'Orfeo, é de 1607, dez anos após a primeira "tentativa" de Jacopo Peri, com sua Dafne, e sete anos após o mesmo Peri e Giulio Caccini haverem composto suas Euridice, as primeiras óperas baseada no mito de Orfeu. Com certeza Monte adorou a ideia da ópera mas, ao invés de sair desesperado e escrever logo sua primeira, ele preferiu continuar trabalhando em seu quinto livro de madrigais, até se sentir apto a enfrentar essa nova forma musical. A espera valeu a pena, e L'Orfeo é considerado como a primeira obra-prima da ópera.

Quer tirar a prova??? Vamos ouvir uma ária de Caccini (de Euridice) e outra do Monteverdi (de L'Orfeo), de passagens mais ou menos correspondentes (Orfeu no Inferno). Talvez ambas pareçam estranhas - afinal, são as primeiras óperas que sobreviveram, e o estilo realmente é muito diferente daquele com o qual estamos acostumados atualmente, mas creio que dará para notar a diferença entre os dois:

(Caccini)

E a do Monteverdi:


Há outros vídeos da mesma ária, mas esse é, na minha opinião, o melhor. E, para aproveitar que já estamos tratando do Orfeo, vamos ouvir também a Abertura:


Eu nem queria falar de suas óperas Dafne, L'Orfeo & Cia... Minha intenção, na verdade, era falar sobre outra obra do Monteverdi, Vespro della Beata Vergine, de 1610. Para começar do começo, vamos ouvir a abertura:

(Ué... acho que eu já conheço isso!)

terça-feira, 16 de julho de 2013

Ainda fugindo, baby!




Poizé... vamos ver se conseguimos terminar este assunto.

Já que agora sabemos tudo sobre contraponto, imitação, cânone, transposição, etc, ficou mais fácil entendermos o que é uma fuga: é uma peça musical onde um tema é apresentado, seguido por uma resposta em outra voz, utilizando o mesmo tema, mas transposto. Essa alternância entre tema (também chamado sujeito) e resposta continua até que todas as vozes tenham entrado. Após essa apresentação do tema nas diversas vozes segue-se um trecho chamado episódio, onde elementos rítmicos e/ou melódicos do tema são desenvolvidos, transpostos, modificados, etc. Após esse primeiro episódio vem uma reapresentação do tema (e respostas)  nas diferentes vozes (todas ou não), em outra tonalidade, seguida por mais um episódio. Essa duplinha reapresentação+episódio pode continuar por quantas vezes for, até a ultima reapresentação (chamada reexposição), onde o tema (com ou sem resposta) aparece pela última vez, de volta à tonalidade inicial, para finalizar a fuga. Após a reexposição também pode haver mais um curto episódio ou uma coda (literalmente, rabo). Resumindo:

Apresentação - Episódio 1 - Reapresentação 1 - Episódio 2 - Reapresentação 2 - etc... - Reexposição 

Simples, não? Então, vamos complicar um pouco:

O tema (sujeito) pode ser seguido por um contrassujeito (na mesma voz que apresentou o tema, enquanto a segunda voz apresenta a resposta), o qual funciona como um "tema-acessório". Geralmente esse contrassujeito será repetido sempre que o tema for reapresentado (essa é a regra, mas o que não faltam são exceções - nada é obrigatório em música!). Pode também haver mais de um contrassujeito, que aparecerão juntos ou alternadamente. Pode ser, por exemplo:

Primeira voz
SUJEITO
CONTRASSUJEITO 1
CONTRASSUJEITO 2

Segunda voz

RESPOSTA
CONTRASSUJEITO 1
CONTRASSUJEITO 2
Terceira
voz


SUJEITO
CONTRASSUJEITO 1

ou:

Primeira voz
SUJEITO
CONTRASSUJEITO 1
MATERIAL LIVRE

Segunda voz

RESPOSTA
CONTRASSUJEITO 2
MATERIAL LIVRE
Terceira
voz


SUJEITO
CONTRASSUJEITO 1


Já deu para se notar que a fuga não é uma forma fixa. Muitos nem a consideram uma forma, mas apenas uma textura ou maneira de compor, pois diversos elementos, procedimentos e técnicas podem ou não aparecer. Já vimos que ela pode ter um ou mais contrassujeitos (ou nenhum). Da mesma maneira, ela pode ter mais que um tema, e será chamada de fuga dupla, tripla, etc, dependendo do número de temas. Os diferentes temas podem aparecer juntos desde o início (a primeira voz apresenta o primeiro tema, enquanto a segunda voz apresenta o segundo tema, ao mesmo tempo), ou o segundo tema pode aparecer apenas durante o desenrolar da fuga, e apenas a partir daí os dois temas aparecerão juntos.

Os episódios também não são obrigatórios: há fugas que não têm episódios (ou os episódios são tão pequenos que não têm tempo de adquirirem personalidade própria), e as reapresentações do tema seguem-se sem descanso .

Os sujeitos também podem aparecer acavalados durante as reapresentações ou reexposição: uma voz não terminou de apresentar o tema e a voz seguinte já começa a resposta - isso é conhecido como stretto. Outras vezes, durante as reexposições, os sujeitos podem aparecer incompletos, ou, da mesma maneira como num cânone, os temas podem ser invertidos, aparecer em aumentação ou diminuição, etc...

Em suma: a fuga é uma grande brincadeira sobre o(s) tema(s). Ou uma grande orgia, pensando bem: o sujeito que aparecia embaixo agora aparece em cima; outros sujeitos podem aparecer de ponta-cabeça; quem estava de frente de repente você olha e está de ré; alguns resolvem se acavalar sobre os outros; novos sujeitos podem aparecer já no meio da bagunça, querendo entrar de qualquer maneira, onde couber; alguns vão "crescer" durante a farra, outros vão "diminuir"... Mas, assim como numa orgia - imagino (ainda!) - o que vale é a criatividade (pra não ser enfadonho), e a competência (inventar possibilidades, apenas, não vale: também é preciso fazer direito!).

Vamos aos exemplos? Primeiro, uma orgia sem-graça - aliás, é um "papai-e-mamãe" a 3 vozes muito do bobinho - do Telemann:


E uma muito melhor, a 3 vozes, em sol menor, com contrassujeito, do mestre dos mestres da Fuga, J. S. Bach. O autor do vídeo explica novamente tudo que eu já expliquei - se alguém ainda não entendeu, tem mais uma chance!:


E outra a 4 vozes, em dó maior, cheia de strettos e nenhum episódio, também do Bach - notem que, na apresentação do tema a sequência é um pouco alterada (sujeito, resposta, resposta, sujeito):


O Handel também era um mestre da fuga, principalmente vocais, e muitos trechos de seus oratórios estão entre os maiores exemplos do gênero, como "And we shall purify", do Messias:


Apesar de Handel e Bach, nem só de Barroco vive a fuga. Essa "maneira de se compor" nunca saiu da moda, na verdade, e desde então muitos compositores têm sido seduzidos por suas possibilidades e pela vontade/necessidade de provar que são capazes de escrever nessa "forma" que é um grande teste de competência contrapontística.

Como era de se esperar, o nosso amigo W. A. Mozart não era muito ruizinho na fuga, não!, e aproveitaremos o Kyrie de sua Missa de Requiem para exemplificar fuga dupla (um tema para Kyrie eleison e outro para Christe eleison, ao mesmo tempo). A partitura está andando mais rapidamente que o som, mas se alguém se incomodar, é só fechar os olhos e aproveitar!:


Não vou nem falar na fuga da sonata Hammerkavier, do Beethoven, pois tenho mais o que fazer e seria necessário escrever todo um livro só para tratar dessa fuga estrondosamente gigantesca e complexa e espetacular e difícil e maravilhosa! Uma fuga titânica do Brahms, das Variações e Fuga sobre um tema de Handel, já dará uma ideia excelente daquilo que um bom compositor, depois dos mestres barrocos, consegue fazer com a "forma", e também serve como um exemplo de aumentação (é fácil descobrir onde foi que "aumentou"):


Outro exemplo de competência técnica é o Mendelssohn. Nessa fuga aí embaixo vai aparecer inversão (tema e reposta surgem de "ponta-cabeça" no desenvolvimento da fuga - aos 2:48 do vídeo). Para complicar ainda mais, aos 3:39 começa um stretto, onde o tema é apresentado na forma invertida, e a resposta, na forma original. Mas teremos que ouvir também o Prelúdio inicial, pois não consegui vídeo só da fuga:


Mas nem tudo são rosas no mundo da fuga... a "Fuga nº 1 sobre um tema de Bach, em mi bemol maior", da Clara Schumann, é bem meio sem-gracinha, eu acho. Voltando à "analorgia": ela (a fuga, e não a Clara) é muito competente, bonita, inteligente, mas falta fogo!:


O Chopin, um de meus favoritos, também não se sai muito bem. Parece que ele passa o tempo todo olhando para o próprio umbigo e esquece de se divertir. Nem sei por que ele tentou escrever uma fuga... Não tem nada a ver com seu talento contrapontístico, que é de um tipo completamente diferente do talento "espacial-matemático" necessário para um "fugueteiro":


Mas a fuga seguinte, do Prelúdio, Coral e Fuga, do César Franck é linda! A fuga propriamente dita só começa ao 1:56, após uma grande introdução:


E agora uma fuga magnífica, em mi menor, do Shostakovich (a nº 4 de seus 24 Prelúdios e Fugas), com 3 contrassujeitos e 2 temas, sendo que o segundo tema só aparece quando a festa já está no auge!:


Essa aí de cima é linda, sem dúvida, mas minha favorita dentre as 24 é a nº 1, em dó maior. É muito menos espetacular, mas muito expressiva em sua aparente simplicidade. No vídeo abaixo a fuga está toda analisada, com seu sujeito e contrassujeitos bem explicadinhos:


Depois de vê-la explicada vale a pena ouvi-la novamente, agora acompanhada de seu Prelúdio levemente jazzístico (lembram-se do post Da igreja para o cabaré?):


Poderíamos passar a eternidade só ouvindo fugas, mas é bom também saber quando parar e colocar um ponto final (provisório) no assunto! Então, que tal terminarmos com a Fuga sobre um tema de Lady Gaga, de Giovanni Dettori?:


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Vamos fugir, baby!



Pediram-me para falar sobre fuga... Socorro! Não dava pra ser outro assunto menos complicado? Quero ver como é que vou explicar a criatura sem ser excessivamente técnico... Vou tentar, mas terei que entrar em "tecnicidades" mais cedo ou mais tarde!

Para entendermos fuga é necessário saber o que é contraponto - viu?, nem comecei, e já surgiu coisa técnica... Mas vamos lá: contraponto é a escrita de diversas vozes independentes, porém simultâneas. Por vozes entenda-se qualquer linha melódica, quer seja ela vocal ou instrumental. Podem ser três "vozes vozes", ou 2 violinos (cada um fazendo uma voz), ou flauta e piano (onde o piano pode fazer várias vozes ao mesmo tempo), etc... Qualquer tipo de combinação é possível, e o número de vozes também pode variar de 2 ao infinito, só dependendo da vontade e da competência do compositor!

Então, se tivermos duas ou mais vozes independentes se desenrolando ao mesmo tempo, vamos ter, necessariamente, contraponto, por mais porca que seja a condução das vozes, e por pior que seja o resultado (condução é simplesmente a maneira como cada uma das vozes se desenvolve).

Um exemplo de contraponto? Uma das Invenções a 2 Vozes, do J. S. Bach (só 2 vozes, por enquanto, pra não complicar muito!):


Um elemento indispensável numa fuga é imitação. No vídeo acima, quando a segunda voz começa ela repete exatamente o que a primeira voz havia feito antes. Isso, obviamente, é imitação (essa definição não deu muito trabalho!). A característica mais marcante de uma fuga é justamente essa repetição de uma melodia mais ou menos curta (o tema) em diferentes vozes.

Imitações, porém, não são exclusivas da fuga (claro... já deu pra notar, pelo vídeo aí em cima, que uma invenção também pode ser imitativa). Aliás, fuga é apenas uma maneira especial de imitação, segundo regras mais ou menos fixas, que se desenvolveu a partir de outras formas musicais que usavam essa mesma técnica.


Essas outras formas imitativas podiam ser chansons ou madrigais:

Carlo Gesualdo - "Moro, lasso, al mio duolo":
(a partir do compasso 6 começam a aparecer as imitações)

Ou também fantasias:

Johan Jacob Froberger: Fantasia sopra ut, re, mi, fa, sol, la:


Podiam ser ricercari:

Ricercar no 12º modo, de Andrea Gabrieli:


O ricercar é, digamos assim, o irmão mais velho da fuga. Os desenvolvimentos que nele ocorrem irão desembocar diretamente na fuga e, durante o Barroco, os termos ricercar e fuga eram usados meio indistintamente - há ricercari que são indistinguíveis de fugas, como, por exemplo, o Ricercar em dó menor, do Johan Pachelbel:


Uma forma de imitação levada ao extremo é o cânone, em que uma linha melódica INTEIRA é imitada por outras vozes. Um cânone pode ser duplo, triplo, etc, dependendo do número de melodias diferentes (e não de vozes) que são utilizadas. Também pode ser direto ou retrógrado (se a melodia original é respondida em outra voz na ordem direta ou na ordem retrógrada - obviamente!). Também pode ser invertido (ou  também chamado de espelho, por ser "de ponta-cabeça"), o que significa que os intervalos da melodia original são apresentados na direção inversa (ou seja: se a melodia original começasse por dó, ré, mi, fá, a inversão seria dó, si bemol, lá bemol, sol - ao invés de subirmos na escala, descemos - deu pra entender?). Também pode ser cânone por diminuição ou aumentação - se as "respostas" são mais rápidas (diminuição, já que cada nota tem duração menor) ou mais lentas (aumentação, já que as notas duram mais).

A melodia também pode ser transposta para qualquer outra nota (se era dó, ré, mi, fá, altera-se a primeira nota, e toda a melodia é alterada de acordo - para sol, lá, si, dó, por exemplo). Também pode -se utilizar qualquer mistura dessas técnicas diferentes, ao mesmo tempo: um cânone pode ser ao mesmo tempo retrógrado e transposto, digamos.

O "odiento" do Bach, como não podia deixar de ser, tem uma sequência de cânones que dá raiva... Ele pega uma melodiazinha bobinha e constrói 14 cânones a partir dela, de todas as maneiras possíveis. Será difícil, talvez, seguir as estripulias do Bach, mas vale a pena ver e ouvir, e aproveitar para agradecer o trabalho maravilhoso de quem postou o vídeo!:


(Fala sério... dá para acreditar no que esse cara era capaz de fazer???)

Atualização: o autor desse vídeo já excluiu duas vezes esse vídeo do YT. Se o vídeo novamente desaparecer, a link para a página do autor (onde o vídeo permanece) é ESTE.

Esses cânones do Bach podem ser classificados como cânones perpétuos (ou rondellus, ou rota, ou rounds), que é uma forma ainda mais extrema de cânone, pois podem ser executados (logicamente) ad eternum. O cânone "Summer is i-cumin in", do século XIII (anônimo), é um dos exemplos mais famosos de rondellus:


Explicando a confusão aí de cima: as primeiras 4 pautas representam a melodia inteira. Quando a primeira voz acabou de cantar o primeiro compasso (até chegar ao sinal +), a segunda voz entra cantando novamente do início. Quando a segunda voz chegar também ao sinal, a terceira voz entra, e  assim sucessivamente... Geralmente canta-se a melodia sozinha primeiro (para o público entender), e depois, na repetição, as novas vozes começam a entrar como indicado. As duas últimas pautas são os chamados pés, que funcionam como um acompanhamento para a melodia (neste caso, são duas outras vozes independentes que se repetem  sem descanso enquanto durar a música).

Ó só! Esta execução começa pelos pés, depois canta-se a melodia completa, depois só os pés novamente, na sequência canta-se a melodia usando duas vozes (duas "cópias" da melodia simultaneamente), depois só os pés novamente, e, por fim, a melodia é cantada com 4 vozes. Até doze vozes simultâneas são possíveis, se alguém quiser tentar:


Lindo!

O "Frère Jacques" também é um rondellus famoso, porém mais simples que o "Summer":


Por enquanto tá dando para entender, né? Espero que sim, pois o mais complicado ainda está por vir, num próximo post, pra dar tempo de digerirmos este aqui!

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Êi! Ó o auê aí, ô!

 

Texto copiado daqui, que por sua vez é copiado daqui!

A bailarina Marietta Maria Baderna (1828-1870) é quase desconhecida nos livros de dança, mas habita as páginas de dicionários há tempos. O verbete "baderna", além de confusão, desordem e barulho, fala em "uma dançarina que esteve no Rio em 1851", segundo o Aurélio.

Italiana, seguidora de Giuseppe Mazzini, Baderna se exilou no Brasil em 1849 e, em pouco tempo, ganhou o palco e o público do teatro São Pedro de Alcântara, no Rio, que vivia lotado com os "badernistas" - partido criado por fãs em homenagem a ela.

Os passos de Baderna instigaram a curiosidade do autor italiano Silverio Corvisieri, que foi militante do Partido Comunista e três vezes deputado. Após anos de pesquisas em cinco países, ele desembarca no Brasil no dia 3 [essa notícia é MUITO antiga, portanto nem adianta esperá-lo... ele já veio e voltou há MUITO tempo....] para o lançamento de "Maria Baderna : A Bailarina de Dois Mundos" [mas o livro ainda existe, acabei de checar na Internet]. Em entrevista à Folha, Corvisieri fala que seu interesse pela dança nasceu durante a pesquisa, não antes disso, e que gostaria de reencontrar Lula no Brasil. "Eu o conheci quando eu era deputado e ele, um corajoso sindicalista."

Baderna já havia sido tema de artigo do jornalista brasileiro Moacir Werneck de Castro, que fantasiou sobre a saga da bailarina de verbete em dicionários. "Sem querer, acertei no essencial. Baderna foi mesmo ativa politicamente. Coloquei-a lutando ao lado de Bento Gonçalves e como subversiva nas ruas do Rio. Mas sua história real é mais interessante", diz Werneck.

Na Itália, Corvisieri já pesquisava sobre Baderna e, depois de ler o texto de Werneck, veio para o Rio. Ele sabia que a história retratada no artigo não era verdadeira e se embrenhou em descobrir a real. "No começo, os cariocas usavam o termo baderna para indicar coisas muito belas. Somente depois de a dança ser considerada fator de corrupção da juventude, a palavra assume os significados atuais", diz Corvisieri. A pesquisa revelou uma bailarina-estrela que, além da técnica primorosa, mostrava expressão e beleza capazes de obscurecer o brilho das divas do canto lírico.

Sempre à frente de seu tempo, Baderna se interessou pelos ritmos afro-brasileiros e saiu às ruas para ver o requebrar das mulatas. Em pouco tempo foi considerada a musa do lundum, da cachuca e da umbigada, danças com movimentos bastante ousados para a época de dom Pedro 2º.

Havia quem dissesse que Baderna bebia demais e era viciada em absinto, além de ser muito namoradeira. "Seu desaparecimento pode estar ligado ao desgaste físico provocado pelo abuso das bebidas", conta o autor.

Mais da metade dos artistas europeus que vieram com ela para o Brasil morreu de febre amarela. Baderna caiu de cama duas vezes, mas resistiu, ao contrário do pai. Seu estilo de vida, considerado transgressor, deu à bailarina uma existência plena em dois mundos: de noite, uma sílfide nos palcos, de dia, uma revolucionária. (FOLHA DE S. PAULO)