Vou logo avisando: esse post vai ser complicado, e muito técnico! Muito técnico mesmo! Se você quiser algo mais leve, divertido, pode clicar AQUI. Não diga depois que eu não avisei!
O mundo é redondo, mas as pessoas são chatas... (inclusive eu, por falar nisso!). As mais chatas, musicalmente falando, são as "fetichistas musicais", criaturas que têm uma preferência musical (qualquer uma) e que automaticamente desprezam as demais possibilidades. Como qualquer outro tipo de fetiche, várias modalidades são possíveis:
O mundo é redondo, mas as pessoas são chatas... (inclusive eu, por falar nisso!). As mais chatas, musicalmente falando, são as "fetichistas musicais", criaturas que têm uma preferência musical (qualquer uma) e que automaticamente desprezam as demais possibilidades. Como qualquer outro tipo de fetiche, várias modalidades são possíveis:
- Fetiche pelo original: "Eu só ouço o original, pois é muito melhor!";
- Fetiche (ou anti-fetiche) por épocas ou estilos: "Depois do Barroco, nada mais presta", "Não ouvi quase nada de música moderna, mas o século XX não tem nada que se aproveite!";
- Fetiches por instrumentos: "Esse cravo é tão ruim que tem som de pianola de criança, mas tudo fica mais bonito tocado nele!";
- Fetiche por número de participantes: "É claro que música de câmara é MUITO melhor que música orquestral";
- Fetichistas Definitivos, os piores de todos: sabem tudo, entendem de tudo, e têm opinião definitiva, única, sobre tudo: "Essa é a única gravação boa que existe dessa música", "Esse é o único compositor que presta", etc, etc, etc. São os Fetichistas mais bonitinhos: tão irritantes que chegam a ser engraçados. Como certo alguém que, há muito muito tempo, sorrindo da falta de cultura de outro alguém, veio me dizer que Mozart NUNCA havia escrito um quinteto de cordas. Mozart escreveu, sim, vários quintetos para cordas, mas isso não é o importante! O importante é que essa pessoa SABIA COM CERTEZA que não existia nenhum quinteto do Mozart: "Eu nunca ouvi, então é óbvio que não existe!"
Os Definitivos são hilários, mas vamos falar dos Fetichistas Fiéis, que também são engraçadinhos!
A princípio, até concordo que os originais são melhores (para mim, ao menos). Não no sentido de serem melhores por algum motivo metafísico - os céus não penduram cartazes nos avisando qual versão eles preferem, claro - mas apenas por representarem melhor a imaginação do compositor em questão. Prefiro, portanto, tentar me ater ao original.
Até aqui estou me incluindo entre os Fetichistas Fiéis, claro. O problema, a meu ver, começa quando não se compreende que o original é, via de regra, uma versão.
Até aqui estou me incluindo entre os Fetichistas Fiéis, claro. O problema, a meu ver, começa quando não se compreende que o original é, via de regra, uma versão.
Vou tentar me explicar:
Para mim, toda música é uma versão de um original que nunca existiu. A música clássica é uma coisa muito chata, nesse aspecto, pois aquilo que ouvimos é uma execução de uma interpretação de um texto que é um registro (falho) daquilo que o compositor está imaginando. São tantos níveis de transcrição (cérebro - símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura - execução) que o conceito de "original" já começa a ficar meio nebuloso.
O pior é que a cada transcrição o número de possibilidades diferentes aceitáveis vai aumentando. A última (interpretação da leitura - execução) é a mais facilmente "entendível": pegue 10 instrumentistas, tranque todos eles numa sala por um mês, até que cheguem a uma conclusão comum sobre o significado de um texto musical específico. Em seguida, peça para todos tocarem a peça em questão. Todos concordaram com uma única interpretação do texto, nos mínimos detalhes, mas com toda a certeza você ouvirá 10 execuções diferentes, cada uma tão original (no sentido de fiéis) quanto a outra.
"Mas isso é culpa do intérprete!", responde o fetichista.
Pode até ser! Mas a solução seria abolirmos os coitados dos intérpretes e passarmos a "ouvir" música apenas lendo a partitura. Ao invés de baixar música para seu Ipod você começaria a baixar partituras (que também não são necessariamente "originais") e, ao invés de ouvir, você começaria a ver filminhos de partituras passando na frente de seus olhos. Não seria muito prático, convenhamos, nem daria certo: se música fosse feita para ser apenas vista ela teria nascido pintura ou escultura...
O Stravinsky costumava chamar os intérpretes de "excrecências vãs". Para ele, os intérpretes deveriam tocar suas músicas (do Igor, claro) como se fossem máquinas de costura, sem "interpretação", sem imaginarem nada, sem tentarem expressar coisa alguma. Nada contra sua opinião - cada um tem a sua! - mas o próprio Stravinsky, quando gravava suas obras, não seguia sua própria instrução; há, por exemplo, duas gravações suas da Sagração da Primavera, uma de 1940 e outra de 1960, com diferenças consideráveis entre elas. Talvez ele tenha trocado de máquina de costura, ou a correia da máquina estava ficando já gasta em 1960, ou ele mudou a maneira de pedalar a máquina, ou sei lá o quê... só sei que são diferentes! Eu não encontrei as duas versões no Iútúbi, então não vou colocar nenhuma, mas pode confiar, são diferentes!
E isso porque só estamos falando de "interpretação da leitura - execução". A transcrição seguinte é mais complicada: a "leitura - interpretação da leitura" é um problema muito sério na música clássica. Pra começo de conversa, é muito difícil separar esse nível dos níveis acima; geralmente a sequência "símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura" é uma grande bagunça, onde os níveis se misturam constantemente, e onde a maioria das questões relativas à fidelidade ao original emergem.
O Stravinsky costumava chamar os intérpretes de "excrecências vãs". Para ele, os intérpretes deveriam tocar suas músicas (do Igor, claro) como se fossem máquinas de costura, sem "interpretação", sem imaginarem nada, sem tentarem expressar coisa alguma. Nada contra sua opinião - cada um tem a sua! - mas o próprio Stravinsky, quando gravava suas obras, não seguia sua própria instrução; há, por exemplo, duas gravações suas da Sagração da Primavera, uma de 1940 e outra de 1960, com diferenças consideráveis entre elas. Talvez ele tenha trocado de máquina de costura, ou a correia da máquina estava ficando já gasta em 1960, ou ele mudou a maneira de pedalar a máquina, ou sei lá o quê... só sei que são diferentes! Eu não encontrei as duas versões no Iútúbi, então não vou colocar nenhuma, mas pode confiar, são diferentes!
E isso porque só estamos falando de "interpretação da leitura - execução". A transcrição seguinte é mais complicada: a "leitura - interpretação da leitura" é um problema muito sério na música clássica. Pra começo de conversa, é muito difícil separar esse nível dos níveis acima; geralmente a sequência "símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura" é uma grande bagunça, onde os níveis se misturam constantemente, e onde a maioria das questões relativas à fidelidade ao original emergem.
Primeiro de tudo, a escrita musical é como qualquer outra escrita: ela evolui. O que significa "y", hoje, pode ter significado "x", anteriormente. Confusões "simbólicas" podem inclusive existir durante um mesmo período histórico. O Haydn e o Mozart, apesar de viverem no mesmo período, na mesma cidade (parte do tempo, ao menos), e escreverem no mesmo estilo, às vezes usavam símbolos diferentes para indicar a mesma coisa.
Segundo: a escrita musical, apesar de muito evoluída e complexa, continua sendo apenas uma representação muito capenga do "objeto" real, o som. Ela não dá conta de todos os parâmetros variáveis da música, e muitas vezes essas variáveis não são escritas pelo compositor. Nosso amigo Jotaésse Bach é um que não costumava, por exemplo, colocar indicação de andamento ("velocidade", digamos), pois todo mundo à época sabia qual era o andamento certo. Eu não acredito que era tão simples assim... Duvido que o mundo inteiro soubesse qual era a velocidade certa e, se soubessem, duvido que todos concordassem. O que eu acho que acontecia é que o Bach estava sempre por perto quando sua música era executada, sendo mais ou menos inútil indicar a velocidade "certa". Também acho que, mesmo com o Jotaésse bem ali do lado, o andamento podia muito bem mudar, dependendo das circunstâncias: uma música poderia muito bem ser tocada com um andamento mais rápido num salão cheio de cortinas que absorvem sons, ou mais lento se executada dentro de uma igreja que tivesse um acústica cheia de reverberações; ou o Bach estava animadinho naquele dia, ou estava mau humorado, ou tinha um compromisso mais tarde, sei lá...
Mas não existem dúvidas apenas a respeito de andamentos. As próprias notas musicais também apresentam inúmeros problemas. Duvida? Dê uma olhada, então, nessa página do manuscrito do Quarteto Op. 95, do Beethoven:
Mas não existem dúvidas apenas a respeito de andamentos. As próprias notas musicais também apresentam inúmeros problemas. Duvida? Dê uma olhada, então, nessa página do manuscrito do Quarteto Op. 95, do Beethoven:
Você jurava que todos os compositores fossem pessoas organizadas, não jurava?
Poizé... Muitas vezes os compositores enviavam suas criaturas em estados lamentáveis para os copistas, e estes tinham que espremer seus cérebros tentando entender o que, afinal, estava acontecendo naquele pedaço de papel. Se eu recebesse esse manuscrito daí de cima eu juro que iria até a casa do Beethoven cobrar explicações, e aproveitaria para lhe dizer vários desaforos, alguns bem mais cabeludos que esses garranchos aí. Já pensou você ter que transcrever 50 páginas disso? Você cometeria algum erro, será?
O tadinho do copista, enfim, tinha que se virar com as melecas que lhes eram enviadas, e o compositor depois verificava se estava tudo correto. Mas se o compositor já não era muito cuidadoso com o manuscrito, nada impedia que ele fosse descuidado também com a revisão! Há vários, muitos, inúmeros exemplos de primeiras edições com erros crassos de revisão! Pior ainda: há, em muitos casos, várias edições publicadas ainda durante a vida do compositor, cada uma levemente diferente da outra. O compositor, digamos, mandou publicar um opus lá em São Paulo mas, como ele morava em Manaus, não pode ir pessoalmente revisar o trabalho do copista (anda não existia Internet!). Depois ele mandou publicar a mesma obra de novo, dessa vez em Manaus, onde ele corrige os erros da primeira edição (e comete outros, provavelmente). Nesse meio tempo, porém, ele achou que uma notinha tal, num compasso tal, podia muito bem ser outra, e trocou a notinha em questão. Só que ele não avisou ninguém da troca, e duzentos anos mais tarde ninguém mais sabe qual é a nota "certa"...
Claro que tudo isso é hipotético, pero no mucho. Edições diferentes pululam (adoro coisas que pululam!) por toda a história da música clássica, e quando pegamos uma boa edição, por exemplo, do Concerto para piano e orquestra nº 24, em dó menor, do Mozart, nos deparamos em certos trechos com uma profusão de acidentes (sustenidos, bemóis e bequadros) com pontos de interrogação sobre eles. Ninguém tem certeza do que é que o Mozart queria. O mesmo acontece com a sonata Hammerkavier, do Beetho; zilhões de notas de rodapés e pontos de interrogação. Se alguém conseguir chegar à uma conclusão sobre qual opção é a "original", ganha um prêmio!
Mas... está pensando que o problema é só esse? Pense de novo!
Existem, para citar mais um exemplo, diferentes edições de várias obras do Chopin, com leves diferenças entre elas, como todo mundo já pode imaginar. Algumas com erros óbvios de revisão, algumas com alterações feitas pelo próprio Chopin, algumas com alterações (correções???) feitas pelos editores. Até aí, nada de novo. Mas Chopin era também professor, e sobrevivem vários exemplares que eram usados por seus alunos, e que guardam até hoje anotações manuscritas do próprio Chopin, muitas vezes alterando andamentos, indicações de expressão, pedal, notas, etc... Cadê o original? É o manuscrito primeiro? É a primeira edição? É a segunda edição, revisada? É a cópia preservada com as anotações do Chopin? Outro prêmio para quem conseguir desfazer esse nó e chegar à obra "original".
As pessoas, me parece, sempre se esquecem de que música não é pintura, nem arquitetura. Ela não é definitva. Cada vez que uma peça é executada, sempre iremos ouvir uma nova versão, não há como escaparmos disso. Quanto mais antiga a música, mais opções diferentes encontramos, e mais complicado fica tentarmos descobrir o "original" que, ao menos para mim, é como uma "Escala Musical de Kinsey", que vai de menos provável a mais provável, com inúmeras gradações entre elas, sem nunca conseguirmos chegar à uma conclusão de qual delas é definitivamente a correta.
Os compositores, com o passar do tempo, cada vez mais tentam restringir as opções disponíveis (para a felicidade de alguns e a infelicidade de outros). Não é a troco de nada que, com o "evoluir" da música clássica, cada vez mais complexa vai se tornando a escrita musical, e a quantidade de indicações de interpretação nas partituras vai crescendo sem parar. Para fazermos uma comparação:
Esta é uma boa edição da primeira página de uma Invenção do Bach, onde temos apenas as notas. Não há indicação de andamento, não há indicação de dinâmica, não há indicação de fraseado, respirações. Nada de nada!
E a primeira página de um Prelúdio de Debussy, quem contém uma quantidade que não é nem de longe excessiva (para os padrões atuais) de indicações de execução. Temos indicação de andamento (Triste e lento, seguido do número 44, que significa 44 tempos por minuto). Temos indicações de dinâmica (pp = pianíssimo - "fraquíssimo", digamos; piu pp = mais pianíssimo ainda; p = piano; além das linhas abrindo e fechando, que significam crescendo e decrescendo). Indicação de acentuação (os pequenos tracinhos sob ou sobre as notas). Indicação de fraseado (as grandes linhas curvas sob ou sobre uma sequência de notas). Indicação de respiração (as vírgulas sobre algumas barras de compasso).
A barra da "Escala Musical de Kinsey" se deslocou mais para a direita, em direção ao mais provável, mas não conseguiu eliminar totalmente as possibilidades interpretativas. As "excrecências vãs" continuam sendo necessárias, e ainda podem imprimir suas marcas à musica - e espero que esse seja sempre o caso.
Mas outras pessoas têm opiniões diferentes, e continuam tentando abolir as "excrecências", até que, em meados do século XX, surge a Música Concreta, onde não existe escrita, notação, símbolos, leitura, interpretação, execução. Muitas obras eram "montadas" pelo próprio compositor, definitivamente, em fitas cassete (alguém ainda se lembra delas?), que registrariam para todo o sempre (assim eles achavam) exatamente aquilo que eles queriam. As "excrecências" finalmente já não eram mais necessárias. Mas tiveram que trocar os intérpretes por técnicos e engenheiros de som e, com o andar da carruagem tecnológica, também tiveram que migrar seus "originais" para outras plataformas, correndo o risco de, novamente, transformarem suas músicas "definitivas" em "versões" diferentes. Cada vez que uma fita é copiada, ou migrada para CD, por exemplo, algo muda. As caixas acústicas, obviamente, também mudaram. Os recintos onde as peças foram primeiramente executadas (reproduzidas) também mudaram, mudando também a acústica. O mais dramático - traumático - foi a mudança do lugar de reprodução. Ao invés de estarmos numa sala espacialmente adequada para a reprodução de uma determinada peça, com o tamanho adequado, com a acústica adequada, muitas vezes com 32 canais de som diferentes, exatamente dispostos para causar um efeito específico, hoje em dia só ouvimos essas músicas em nossas casas, em nossos aparelhinhos estéreos, com nossas 2 caixinhas de som (5, se você tiver um home theater). Ou seja: foi a morte da música "definitiva", que não aceitava novas versões. Morreu tanto, mas tanto, que hoje em dia quase mais ninguém conhece Música Concreta.
Mas outras pessoas têm opiniões diferentes, e continuam tentando abolir as "excrecências", até que, em meados do século XX, surge a Música Concreta, onde não existe escrita, notação, símbolos, leitura, interpretação, execução. Muitas obras eram "montadas" pelo próprio compositor, definitivamente, em fitas cassete (alguém ainda se lembra delas?), que registrariam para todo o sempre (assim eles achavam) exatamente aquilo que eles queriam. As "excrecências" finalmente já não eram mais necessárias. Mas tiveram que trocar os intérpretes por técnicos e engenheiros de som e, com o andar da carruagem tecnológica, também tiveram que migrar seus "originais" para outras plataformas, correndo o risco de, novamente, transformarem suas músicas "definitivas" em "versões" diferentes. Cada vez que uma fita é copiada, ou migrada para CD, por exemplo, algo muda. As caixas acústicas, obviamente, também mudaram. Os recintos onde as peças foram primeiramente executadas (reproduzidas) também mudaram, mudando também a acústica. O mais dramático - traumático - foi a mudança do lugar de reprodução. Ao invés de estarmos numa sala espacialmente adequada para a reprodução de uma determinada peça, com o tamanho adequado, com a acústica adequada, muitas vezes com 32 canais de som diferentes, exatamente dispostos para causar um efeito específico, hoje em dia só ouvimos essas músicas em nossas casas, em nossos aparelhinhos estéreos, com nossas 2 caixinhas de som (5, se você tiver um home theater). Ou seja: foi a morte da música "definitiva", que não aceitava novas versões. Morreu tanto, mas tanto, que hoje em dia quase mais ninguém conhece Música Concreta.
Concluindo, antes de enlouquecer a mim mesmo ou qualquer pessoa que estiver lendo isso, pois, para esgotar esse assunto seria necessário escrever muitos livros, cada um dedicado a um compositor. Eu disse, lá no início, que prefiro me ater ao "original". Quem quiser, pode me acompanhar, mas lembre-se de que o que há são "versões do original", e de que não existe nunca, jamais, uma só opção "correta" disponível. E se alguém lhe disser, categoricamente, que "o" original é que é bom, suspeite logo: você está na presença de um fetichista! Mas, quer saber?, pode até ser que você se divirta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário