quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Post-It: 24 de dezembro: sabe quem nasceu hoje?

O Rádio!

Segundo a Wikipedia - que não me deixa mentir sozinho - em 24 de dezembro de 1906 foi transmitido o primeiro (e curtíssimo) programa de rádio puramente para entretenimento, em AM, pelo inventor canadense Reginald Fessenden, a partir de Brant Rock, Massachusetts. Há controvérsias sobre a data, mas faz de conta que foi nessa data mesmo!

A primeira música transmitida foi a ária "Ombra mai fu" (originalmente cantada por um castrato), da ópera Xerxes, do George F. Handel, e, em comemoração a esta data, ouviremos algumas versões para esta que é uma das árias mais famosas de todos os tempos:

1 - Cecilia Bartoli:


2 - Nathalie Stutzmann:


3 - Andreas Scholl:


4 - Philippe Jaroussky:


Minha preferida?

Gosto de todas, talvez nesta ordem: 3, 4, 2, 1. Ou, talvez, 4, 1, 3, 2. Tá certo que em alguns dias eu prefiro 2, 1, 4, 3, mas em outros prefiro 3, 1, 2, 4, ou 4, 3, 2, 1, ou 1, 2, 3, 4, ou 2, 3, 4, 1... Pensando melhor, acho que eu seria feliz para todo o sempre se me casasse com qualquer um dos quatro! Enquanto isso não acontece...


Feliz dia do Rádio! 




sábado, 20 de dezembro de 2014

Pra variar...

... vamos falar em variações.

Já ouvimos alguns exemplos por aqui, mas estava na hora de dedicarmos um post exclusivamente a variações.

As variações surgiram, segundo as más linguas, na dança; ou melhor, na música para dançar. Nas cortes de antanho (nó, como eu sou velho!) rolavam raves (nó, como eu sou jovem!) constantemente: não havia televisão, Internet, videogames, e se meu - escolha um -  ( ) reino, ( ) principado, ( ) burgo, ( ) feudo, não estava em guerra com ninguém, não me restava muito mais a fazer além de comer, dormir, trocar de roupa (sem tomar banho), fofocar sobre amiguinhos e inimiguinhos, ouvir música, e dançar. Sobrava ainda outra coisa para se fazer, claro, mas, como dizia George Bernard Shaw, a dança é uma expressão vertical de um desejo horizontal; fazer uma ou outra coisa, portanto, dava no mesmo.

As raves duravam hoooooooooooraaaaaaaaaaaassssssssss, e cada uma das dancinhas individuais também durava bastante tempo. Faz sentido! Que graça tem juntar 15 casais para, digamos, um minueto, ter todo o trabalho para arrumar todo mundo direitinho nas filas, ensaiar um monte de passos, e depois dançar só 2 minutos porque acabou a música?

Para solucionar este problema resolveram repetir a música várias vezes, só que daí reclamaram que ninguém conseguia ficar 20 minutos ouvindo os mesmos 2 minutos de música em looping. Os músicos então pensaram: não podemos ficar repetindo sempre a mesma coisa, mas também não podemos simplesmente mudar tudo porque senão os dançarinos vão se perder e o rei vai acabar pisando no pé da rainha (lembrem-se de que, na França, o rei era quem usava salto alto):

Sapatinho do Rei Luis XIV, da França:


Se a rave fosse na Itália ou Espanha, tudo piorava, pois lá ("lás") as mulheres usavam sapatos de plataforma que deixariam as japonesas modernas morrendo de inveja!:

Espanha:


Itália:



Japão:


Os músicos não podiam, coitados, nem repetir a música nem a alterar muito, e passaram a repetir apenas a estrutura básica da musiquinha (ritmo, andamento, marcação, harmonia), mas enfeitando a melodia o máximo que conseguiam, para ninguém morrer de tédio. Surgiu, assim, a forma básica de tema com variações, sendo que uma das maneiras mais simples de se enfeitar melodias era conhecida como divisio: pegava-se a melodia original e acrescentava-se notinhas cada vez menores, "enchendo" a melodia:

John Playford (1623–1686/7), La Folia:


As variações eram improvisadas durante as danças, mas esse recurso se tornou tão popular que os compositores começaram a escrever e publicar suas próprias variações. Alguns dos conjuntos de variações mais antigos de que se tem notícia são do espanhol Luis de Narváez (numa edição de 1538), as Diferencias para Vihuela (diferencias é a versão espanhola para variações, e vihuela é um ancestral do violão). Vamos ouvir suas Siete Diferencias sobre "Guárdame las vacas":


As variações in divisio continuaram a fazer sucesso por muito tempo, mas as divisões não mais se limitavam à linha melódica, podendo ocorrer em qualquer voz. Haydn (assim como inúmeros outros compositores) gostava de escrever variações in divisio, e já ouvimos uma de suas mais famosas variações aqui no blog - o segundo movimento do Quarteto de Cordas em Dó maior, "Emperador". Vamos, então, ouvir um set de variações do Mozart, as 10 Variações sobre "Unser dummer Pöbel meint" (de Gluck), em sol maior, :


Outro tipo  muito popular de variações eram aquelas construídas sobre uma curta linha melódica do baixo, constantemente repetida, servindo como uma base sobre a qual pode-se construir melodias diferentes. Ó só como você já sabia ser possível escrever variações dessa maneira:


E esta é a linha do baixo, repetida ad eternum:


Este tipo de construção se tornou a característica básica das danças ciaccona (chaconne) e passacaglia (passacaille), todas elas constituídas por grupos de variações construídas sobre um mesmo baixo.

Uma das primeiras obras-primas nessa forma é a ciaccona "Zefiro torna", do meu amigo Claudio Monteverdi, com poema de Ottavio Rinuccini:

Zefiro torna e di soavi accenti
l'aer fa grato e'il pié discioglie a l'onde
e, mormoranda tra le verdi fronde,
fa danzar al bel suon su'l prato i fiori.

Inghirlandato il crin Fillide e Clori note temprando lor care e gioconde;
e da monti e da valli ime e profond
raddoppian l'armonia gli antri canori.
Sorge più vaga in ciel l'aurora, e'l sole,
sparge più luci d'or; più puro argento
fregia di Teti il bel ceruleo manto.

Sol io, per selve abbandonate e sole,
l'ardor di due begli occhi e'l mio tormento,
come vuol mia ventura, hor piango hor canto.

(Lindíssima!!!!)

Outra ciaccona famosa é o último movimento da Partita nº 2, em ré menor, BWV 1004, do nosso outro amigo, J. S. Bach, uma das obras mais espetaculares de toda a música clássica. Aqui, porém, a linha do baixo está diluída no emaranhado de vozes e figurações, e às vezes é bastante difícil acompanhá-la:


Essa ciaccona é tão espetacular que Brahms a transformou num Estudo para Piano, para a mão esquerda solo, aqui numa interpretação maravilhosa do meu monstrinho Sokolov:


Ferruccio Busoni - que transcreveu para piano solo muitas obras do Bach - também tem sua versão para essa ciaccona, agora  na interpretação de outro monstrinho, Evgeny Kissin:


Outra ciaccona famosa (ou passacaglia, segundo alguns, já que as duas danças se tornaram indistinguíveis, com o tempo) é o último movimento da Sinfonia nº 4, em mi menor, Op. 98, também do Brahms. Segurem-se às suas cadeiras:


Variações, porém, não necessariamente dependem apenas de "divisão de notinhas" ou de se manter a linha do baixo original: as variações podem ser mais livres, bastando que a harmonia se mantenha constante e a estrutura de cada variação permaneça mais ou menos reconhecível, evitando que os conjuntos de variações pareçam um amontoado de trechos aleatórios.

O número de compassos de cada variação também era constante (igual ao do tema), o que já acontecia desde sempre, para que os dançarinos não se perdessem. Este padrão continuou a ser usado até o século XIX, e mesmo a ciaccona do Bach que acabamos de ouvir o utiliza. Beethoven também o segue em suas 32 Variações sobre um tema original, em dó menor, WoO 80, cujo tema  é muito simples e pequeno, constituído de uma única frase de 8 compassos, e cujas variações têm exatamente o mesmo tamanho; apenas no final, após da 32ª variação, é que Beethoven acrescenta uma extensa coda, para finalizar a peça.:


O Beetho, porém, não era homem de ficar simplesmente repetindo o que outros já haviam feito, e, conforme amadurece, usa as formas herdadas cada vez com maior liberdade e segurança. Quer dizer, segurança ele já tinha desde sempre, mas em sua terceira fase ele tem certeza absoluta de que é capaz de usar qualquer forma da maneira que quiser, sem medo de jamais errar, como nas variações do último movimento de sua Sonata para Piano em mi maior, Op. 109.

Não encontrei vídeo com partitura apenas do terceiro movimento, então vai a sonata inteira:


Se alguém preferir baixar a partitura, ela está AQUI.

Antes de falarmos das variações do terceiro movimento, ouça novamente os dois primeiros movimentos. O Vivace é construído na "velha" forma-sonata, mas com várias peculiaridades: primeiro, a pequena extensão (apenas 99 compassos). O primeiro movimento da sonata "Waldstein", em comparação, tem 302, e o da "Hammerklavier" (a sonata imediatamente anterior ao op. 109), tem 405!

exposição inteira deste movimento se resume a 15 compassos (8 para o primeiro tema, e 7 para o segundo). O segundo tema, que costuma ser contrastante na forma-sonata, dessa vez é contrastante mesmo: além da tonalidade diferente, a fórmula de compasso é diferente (3/4, ao invés do 2/4 do primeiro tema), o andamento também é diferente, as figurações são completamente diferentes, a construção é diferente, e este tema é quase rapsódico, em oposição ao primeiro, todo "quadradinho". O desenvolvimento, inteiramente baseado na figuração do primeiro tema, é maior que a exposição, se estendendo por 33 compassos, até o momento em que, sem aviso, começa a reexposição (final do compasso 48), onde o primeiro tema é repetido, agora forte, utilizando os registros mais agudos e mais graves do piano ao mesmo tempo. Como sempre acontece na forma-sonata, o segundo tema também volta, mas agora aparece com 8 compassos (para completar o compasso "faltando" na exposição). O movimento, então, termina com uma coda também de 33 compassos, também construída sobre material do primeiro tema.

O segundo movimento, por sua vez, contrasta completamente com o primeiro. Se o Vivace, no todo, é muito calmo, o Prestissimo é violento. Beethoven também indica na partitura que o segundo movimento deve se seguir ao primeiro sem pausa: o último acorde do Vivace (em mi maior, piano), é praticamente esmagado por um acorde em mi menor, fortissimo, e o choque é quase doloroso. Este movimento também é em forma-sonata, mas agora seus dois temas são construídos com materiais tão similares que toda a exposição parece uma só avalanche de colcheias e ritmos iâmbicos (pa-páaaa, pa-páaa) e anapésticos (pa-pa-páaa, pa-pa-páaa).

Beethovem, nessa época, estava imerso no estudo das obras de Bach já há bastante tempo, e este movimento, para mim, parece um prelúdio do Cravo Bem-temperado que parou de tomar seu tarja preta, surtou, assaltou a casa do vizinho, roubou um facão, e saiu atacando todo mundo que aparecia pela frente!

Bach:


Beethoven:


Por falar nisso, eu não gosto nem um pouco da interpretação do Schnabel (aquela lá de cima) para o segundo movimento, e só a coloquei aqui no post por conta da partitura. Cada vez que eu escuto o desenvolvimento deste movimento me dá vontade de também parar de tomar meu tarja preta e atacar o Schnabel! Os porquês de eu não gostar:

1 - É prestissimo, mas no desenvolvimento ele deixa o andamento cair sem piedade. Vá lá ouvir! A partir do compasso 70 a velocidade vai caindo, caindo, caindo, até que, ao chegarmos ao compasso 100, parece que o piano murchou.

2 - O desenvolvimento é todo construído sobre uma melodia de 4 compassos que apareceu na mão esquerda, nos últimos 4 compassos da exposiçãomas que, na verdade, já havia aparecido nos 4 primeiros compassos do movimento, também na mão esquerda. Vá lá ver de novo! O desenvolvimento inteiro é, basicamente, um acavalamento de versões dessa pequena frase, e não faz sentido algum imaginar que a energia está acabando justamente quando elas vão se amontoando.

3 - O acompanhamento do desenvolvimento, em sua primeira metade, é todo composto de notas repetidas (ou melhor, oitavas, o que dá mais ou menos no mesmo), e também não faz sentido imaginar que essa figura repetitiva vá, de repente, começar a girar mais vagarosamente.

Enfim...

No compasso 105 começa a reexposição, abruptamente, após uma cadência harmônica interrompida (está "faltando" um acorde antes da volta do tema), e o movimento segue sem muitas surpresas, terminando com uma pequena coda que começa exatamente no lugar onde, na exposição, havia reaparecido aquela frase que o Schnabel, por algum motivo, não suporta.

O contraste entre esses dois movimentos é ainda maior que o contraste entre os dois temas do primeiro Vivace: os dois são em forma-sonata (como eu já disse), mas nunca dois irmãos se pareceram menos!


E agora, depois desse breve passeio por territórios que não eram para serem explorados hoje, vamos às variações do último movimento:


Como eu estava dizendo antes de mudar de assunto, era comum, nessa época, que as variações mantivessem o número de compassos do tema. Estas variações do Beetho mantêm o padrão, mas com alguns desvios e detalhes muito interessantes. Ouçam-na (credo, que horrível) novamente, acompanhando a partitura atentamente:

1 - A primeira parte do tema compreende 8 compassos (o que era absolutamente comum), seguidos  por sua repetição. A segunda parte é construída exatamente da mesma maneira (8 + 8). Alías, o ritmo da melodia deste tema lembra muito o ritmo do tema da Ciaccona do Bach!

2 - A Variação I já nos transporta para outro mundo, e soa como se fosse algo absolutamente novo. Dá a impressão de que Beethoven escreveu umas 3 ou 4 variações antes, alterando o tema pouco a pouco, mas as jogou fora, deixando só o resultado final. Os compassos, porém, continuam mantendo o padrão 8 + 8 mais 8 + 8.

3 - A Variação II é diferente: é uma variação dupla (oito compassos variados de uma maneira, seguidos por 8 compassos variados de uma segunda maneira, ao invés de simplesmente se repetir a primeira parte, como ocorreu no tema e na Variação I. A segunda parte desta Variação é construída do mesmo modo (8 compassos da primeira "sub-variação", seguidos por mais 8 da segunda). Até aqui, nada de muito complicado.

4 - A Variação III é construída ainda de outra maneira:

a. Primeira parte: 8 compassos (como sempre), mas divididos em dois grupos de 4, sendo que o segundo grupo (compassos 5 a 8) é uma inversão do primeiro: o que a mão esquerda estava fazendo (compassos 1 a 4) passou para a mão direita (in divisio, agora), e vice-versa. A repetição da primeira parte é feita da mesma maneira, mas a melodia agora está in divisio, preenchendo os espaços vazios das pausas;

b. A segunda parte é bem parecida, só que, ao invés de termos (4 + 4 invertidos) + (4 + 4 invertidos), temos 8 + 8 invertidos. Deu para entender? Se não conseguiu, sugiro baixar o PDF da partitura, seguindo o link que coloquei lá em cima, para ficar mais fácil acompanhar a confusão.

5 - A Variação IV mantém o padrão 8 + 8 mais 8 + 8, sem surpresas. Beethoven não é bobo e sabe muito bem que essa variação é o coração do movimento. Nada de tentar complicá-la: se mexer, estraga!

6 - A Variação V  é construída ainda de outra maneira, mais intrincada que as anteriores: 

a. Primeira parte: 8 compassos, seguidos por mais 8 compassos que são praticamente uma "re-variação" sobre os primeiros 8 compassos. Não chega, porém, a ser uma variação dupla, pois o material empregado é praticamente o mesmo.

b. Segunda parte: 8 compassos, seguidos por mais 8 compassos onde o Beetho mistura o recurso que ele havia usado na Variação III (inversão de vozes) com aquele que havia usado na primeira parte desta Variação V ("re-variação"). Eu sei que é difícil de entender, mas é preciso ser corajoso para enfrentar Beethoven: nada nele é simples. Vá olhar a partitura outra vez!

c. Como se não fosse suficiente, Beethoven também "tri-pete" a segunda metade desta segunda parte (ou seja, ao invés de 8 + 8 compassos, esta segunda parte tem 8 + 8 + 8). Ufa...

Já enlouqueceu? Se não, vamos à ultima variação:

7 - Variação VI: Bagunça geral! Tudo que já vimos até agora é utilizado ao mesmo tempo! Iremos desmontá-la com calma, tentando entender como ela funciona!

Primeira parte (8 compassos):

a. 4 compassos: praticamente o tema original, montado de uma maneira diferente, sendo que o acompanhamento começa a sofrer divisões logo no terceiro compasso;

b. 4 compassos: o tema pulou para o alto (quase uma inversão), e as divisões do acompanhamento já estão começando a assustar!;

Repetição da primeira parte (8 compassos):

a. 4 compassos, onde o tema volta para a voz interna (agora também dividido, assim como o baixo), e onde as divisões do acompanhamento estão furiosas!;

b. 4 compassos: o tema, como antes, pulou de novo para cima. As divisões , que já estavam furiosas, também pararam de tomar traja preta e viraram trinados duplos, para desespero do pianista!

Segunda parte:

a. 8 compassos, onde a melodia evaporou, só restando arpejos na mão direita (contruídos sobre a harmonia original da segunda parte do tema), acompanhados pela divisões enfurecida (trinados), desta  vez apenas na mão esquerda;

"Re-variação" da segunda parte (Tudo em um):

a. 8 compassos: o tema volta (lá em cima, outra vez), só que agora sincopado (ao invés de as notas do tema caírem no início dos tempos, elas estão caindo no meio, intercaladas por pausas), os arpejos que estavam na mão direita agora migraram para a esquerda ("re-variados", transformando-se em escalas tortuosas misturadas com arpejos), e a "terceira mão" do pianista está tocando os trinados, que emergiram das profundezas da mão esquerda. Beethoven, nesta Variação VI, já usou divisões, usou "re-variação" (que já havia usado em Variações anteriores), usou inversão (que também já tinha usado antes), usou variação harmônica (na segunda parte); e, para completar;

b. Insere 3 compassos extras, onde o trinado vai pouco a pouco descendo de registro, as notas finais do tema também vão descendo para a região média do piano, como se fossem sumir (e realmente somem, pois no último dos 3 compassos extras a sequência de notas está incompleta), e todo o conjunto vai como que se dissolvendo, até que desembocamos na:

Coda, onde o tema original reaparece, sem artifícios, sem nem sequer repetições.

O recurso de se terminar um set com a volta do tema original não é novo. Nada aqui, aliás, é novo, mas Beethoven consegue fazer com que tudo pareça absolutamente original! Ele usa todos os recursos técnicos disponíveis, construindo 10 minutos de música que, na mão de um compositor mediano, renderiam uma hora de encheção de linguiça: a concentração é extrema, as Variações são as mais díspares possível (nenhuma se parece com nenhuma outra), e o tema, quando volta, causa um efeito quase indescritível. Em outros compositores a volta do tema é uma maneira de simplesmente se fechar o set, mas aqui, não. Sua volta é imprescindível, pois é ela que promove a catarse da obra inteira: "Vivi uma vida inteira em dez minutos, passei por todas as provações possíveis; continuo inteiro, mas não sou mais o mesmo: agora eu sei o que existe dentro de mim, e, mesmo assim, sobrevivi."

E isto, caros e-spectadores, é Beethoven: uma bagagem técnica assombrosa colocada a serviço de uma imaginação estupenda, resultando em algo cujo efeito é maravilhoso mesmo quando não temos consciência de suas causas.

Quer ainda mais variações? Então espere um próximo post, pois hoje não estou em condições de ouvir mais nada!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Extra! Extra!

Recebi um e-mail de meu ex-professor de piano, William Daghlian, e, como estou com saudades dele e de sua coleção de cerâmica chinesa (até tenho duas peças que ganhei de presente, antes de voltar para o Brasil), resolvi postar as notícias que ele me enviou:

Primeiro, um link para uma matéria exibida no Jornal Hoje:


O link para a página da coleção:


E o vídeo da inauguração da exposição, no Queens College, em Nova York:






domingo, 14 de dezembro de 2014

Continua rolando um clima!

Apesar de sua obsessão por água, desde o início Debussy sentía uma atração irresistível por todos os fenômenos naturais. A primeira obra sua que conheço que trata deste assunto é a canção "Nuits d'étoiles", de 1880, com poema de Théodore Faullin de Banville, o qual, por falar nisso, foi publicado numa coletânea chamada Les Stalactites: a mania com fenômenos naturais envolvendo água, pelo visto, é contagiosa (deve ser algo na própria água, claro...):


Nuit d'étoiles, sous tes voiles,
sous ta brise et tes parfums,
Triste lyre qui soupire,
je rêve aux amours défunts.

La sereine mélancolie vient éclore
u fond de mon coeur,
Et j'entends l'âme de ma mie
Tressaillir dans le bois rêveur.

Dans les ombres de la feuillée,
Quand tout bas je soupire seul,
Tu reviens, pauvre âme éveillée,
Toute blanche dans ton linceuil.

Je revois à notre fontaine
tes regards bleus comme les cieux;
Cettes rose, c'est ton haleine,
Et ces étoiles sont tes yeux.

Poucos anos mais tarde (1882), Debussy ataca novamente com Les Printemps, para piano e vozes femininas:


O poema, de Anatole de Ségur:

Dieu rend aux plaines leur couronne
La sève ardente qui bouillonne
S'épanche et brise sa prison
Bois et champs sont en floraison. 

Un monde invisible bourdonne
L'eau sur le caillou qui résonne
Court et dit sa claire chanson

Salut printemps, jeune saison
Dieu rend aux plaines leur couronne
La sève ardent qui bouillonne
S'épanche et brise sa prison

Le genet dore la colline
Sur le vert gazon l'aubépine
Verse la neige de ses fleurs
Tout est fraicheur, Amour, lumière
Et du sein fécond de la terre
Montent des chants et des senteurs.

Salut printemps, jeune saison
Dieu rend aux plaines leur couronne
La sève ardent qui bouillonne
S'épanche et brise sa prison
Salut printemps!

Do mesmo ano é "Clair de lune", que já ouvimos naquele post sobre a Lua, e, em 1983, aparece a linda "Paysage sentimental", com poema de Paul Bourget:


Le ciel d'hiver, si doux, si triste, si dormant,
Où le soleil errait parmi des vapeurs blanches,
Était pareil au doux, au profond sentiment
Qui nous rendait heureux mélancoliquement
Par cette après-midi de rêves sous les branches...

Branches mortes qu'aucun souffle ne remuait,
Branches noires avec quelque feuille fanée,
-- Ah! que mon âme s'est à ton âme donée
Plus tendrement encor dans ce grand bois muet,
Et dans cette langueur de la mort de l'année!

La mort de tout, sinon de toi que j'aime tant,
Et sinon du bonheur dont mon âme est comblée,
Bonheur qui dort au fond de cette âme isolée,
Mystérieux, paisible et frais comme l'étang
Qui pâlissait au fond de la pâle vallée.

Do mesmo ano, 1983, é outra canção, "Chanson triste: On entend un chant sur l'eau dans la brume". E lá vem água de novo! Também de 1983, há a canção "Fleur des eaux", também de 1983. Ou seja: se formos ouvir tudo que Debussy escreveu a respeito de céu, noite, vento, água, brumas, neve, sol, amanhecer e entardecer, passaremos as próximas quatro estações só ouvindo Debussy! 

Partamos, pois, para uma de suas primeiras obras realmente importantes, o Prélude à l'après-midi d'un faune, inspirado por um poema de  Stéphane Mallarmé, e deixemos para trás uma tonelada de boa música "climática", como "Clair de lune" (da Suite Bergamasque - que também já ouvimos no post sobre a Lua), outra Les printemps (dessa vez para orquestra e coro a quatro vozes), La Damoiselle élue, (para dois solistas, coro feminino e orquestra, com seu primeiro verso "La damoiselle élue s'appuyait sur la barrière d'or du ciel"), e mais as canções "Harmonie du soir" e "Le Jet d'eau", ambas fazendo parte da maravilhoso ciclo 5 Poèmes de Baudelaire.

Mas, pensando bem, essas canções eu quero ouvir agora. Ou melhor: não só quero ouvir essas duas canções; quero ouvir o ciclo inteiro!

(O link para todos os poemas é este aqui)

Pulemos finalmente para o Prélude, de 1984. O poema do Mallarmé, como se não bastasse o próprio título, Entardecer de um Fauno, é refleto de imagens como source en pleurs, brise du jour, murmure d'eau, vent, ciel, pluie aride, fountaines, lumière... Um prato cheio para o Debussy!


Em 1899 surge Nocturnes, para orquestra (e coro feminino, no último trecho), uma de suas obras mais maravilhosas, e cujo primeiro trecho, "Nuages", é a mais perfeita (na minha opinião) representação sonora de algo que nem mesmo palavras conseguem descrever. O último trecho, "Sirènes", não está muito atrás, e só será superado em La mer, dedicado inteiramente, claro, ao mar. Mas vamos ouvir o Nocturnes completo - "Nuages", "Fêtes", e "Sirènes":


Uma vez eu assisti aos Nocturnes com a Orquestra Sinfônica de Montreal e em "Sirènes" as cantoras estavam misturadas entre os demais músicos da orquestra e suas vozes soavam quase incorpóreas, como se sereias de verdade estivessem cantando no meio do mar. Arrepiante de tão lindo!

Seguindo a ordem cronológica (que estamos adotando aqui, hoje), o próximo climinha a rolar é a chuva, no terceiro trecho de Estampes, para piano, de 1903, "Jardins sous la pluie":


E, no ano seguinte, 1904, a água está de volta, dessa vez em L'Isle joyeuse, com suas ondas e vagalhões. Apesar do título, eu juro que não ouço a ilha... A música inteira me parece, na verdade, a viagem (de barco) até lá, e o final me dá a impressão exata de que a ilha está cada vez mais próxima, cada vez mais nítida, e, depois de vencer a arrebentação das ondas, eu finamente pulo do barco e finco meus pés na areia:


Essa viagem de barco me lembra uma pecinha do Eric Satie, "Sur un vaisseau", de 1913 (a primeira peça de Descriptions automatiques), só que, ao invés de estarmos no barco do Debussy, estamos numa canoinha que, por mais que você reme, parece nunca sair muito do lugar... Pensando melhor, parece que estamos em um pedalinho quebrado, que fica dando voltas e voltas em torno de si mesmo, sem nunca chegar a lugar algum:


O Satie era a pessoa mais irônica do mundo, e tenho certeza de que ele escreveu esta peça só para encher o saco do Debussy. Uma vez, segundo reza a lenda, Debussy o criticou, dizendo que suas peças não tinham forma, e Satie, com seu jeito de "gênio da lâmpada que realiza seus desejos da maneira mais louca possível", respondeu à critica com Trois Morceaux en forme de poire, para piano a 4 mãos:

1. Manière de commencement
2. Prolongement du même
3. I
4. II
5. III
6. En plus
7. Redite


Mas tentemos não enveredar por outro assunto!

Debussy deveria ser classificado entre os animais aquáticos! Do ano seguinte (1905) é outra obra totalmente dedicada à água, La Mer, com seus movimentos "De l'Aube à midi sur la mer", "Jeux de vagues", e "Dialogue du vent et de la mer". Ok, ok... não só água... também tem vento, que, daqui pra frente, vai aparecer mais frequentemente em sua música. Apaguem as luzes, fechem os olhos, e deixem O Mar os levar para passear:


Ainda em 1905 surge Images, para piano, com seu primeito movimento, "Reflets dans l'eau", e a ouviremos interpretado por meu monstrinho Michelangeli:


Lindimáisss, sô!

Children's Corner, uma de minhas suítes favoritas, de 1908, também tem um movimento "aquático", dessa vez em sua encarnação sólida (neve), "The Snow Is Dancing":


Tá certo que eu sou chato, mas essa é uma das peças de Debussy mais difíceis de tocar! Não é nem de longe a tecnicamente mais difícil, mas é muito raro ouvir uma gravação que me convença - nem pelos meus monstrinhos! Todas elas me soam muito duras, pesadas... Isso é neve, povo! É e neve caindo sobre uma criança que está olhando para o alto, maravilhada, de boca aberta, vendo os floquinhos rodopiar e colocando a língua de fora para descobrir que gosto a neve tem! Em quase todas as gravações que conheço, porém, eu sinto que estou ou dentro de uma tempestade ou embaixo de uma chuva de granizo, daquelas com bolas de gelo do tamanho de uma laranja. Esta é a minha preferida, por um pianista que não tenho ideia de quem seja, já que a pessoa que âploudou o vídeo não se dignou em informar:

(Saco... Mais um vídeo que sumiu do YT...)

Essa leve nevezinha começou a cair em 1908, mas, dois anos depois, estava tão espessa que já era possível caminhar sobre ela, no maravilhoso-estupendo-deslumbante "Des Pas sur la neige", número 4 do primeiro livro de Préludes:


Nem todo mundo partilha de minha adoração por esse prelúdio, mas eu os compreendo: quase nada acontece nele; tudo é velado, subentendido. Além de tudo, é meio depressivo... Mas tudo isso, para mim, é que faz "Des Pas" ser especial: a neve, aqui, não é para ser linda; é para ser realmente fria, inóspita. Não tem nada vivo na paisagem, apenas neve, neve, neve; ela enterrou o mundo inteiro, e mesmo as lembranças do passado (claro... ninguém consegue se lembrar do futuro) desapareceram. As lembranças, assim como a melodia, surgem quebradas, fragmentadas e, por mais que tentem, nunca conseguem vencer a neve, que acaba por soterrar tudo... (Bom, esta é a minha interpretação! Fique absolutamente à vontade para ter outra!)

O primeiro livro de Préludes é uma das criações mais espetaculares do Debussy, e, já que é do Debussy e espetacular, tem uma concentração de "climas" impressionante! Além de "Des Pas", temos "Le vent dans la plaine" (número 3), "Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir" (número 4), "Ce qu'a vu le vent d'ouest" (número 7), e "La cathédrale engloutie" (número 10).

O título "Le vent dans la plaine" vem de em poema citado por Paul Verlaine em C’est l’extase langoureuse:

Le vent dans la plaine
Suspend son haleine.
(Favart.)


C’est l’extase langoureuse,
C’est la fatigue amoureuse,
C’est tous les frissons des bois
Parmi l’étreinte des brises,
C’est, vers les ramures grises,
Le chœur des petites voix.

Ô le frêle et frais murmure!
Cela gazouille et susurre,
Cela ressemble au cri doux
Que l’herbe agitée expire…

Tu dirais, sous l’eau qui vire,
Le roulis sourd des cailloux.

Cette âme qui se lamente
En cette plainte dormante,
C’est la nôtre, n’est-ce pas?
La mienne, dis, et la tienne,
Dont s’exhale l’humble antienne
Par ce tiède soir, tout bas?


"Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir" vem de um poema de Charles Baudelaire, Harmonie du soir:

Voici venir les temps où vibrant sur sa tige
Chaque fleur s'évapore ainsi qu'un encensoir;
Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir;
Valse mélancolique et langoureux vertige!

Chaque fleur s'évapore ainsi qu'un encensoir;
Le violon frémit comme un coeur qu'on afflige;
Valse mélancolique et langoureux vertige!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir.

Le violon frémit comme un coeur qu'on afflige,
Un coeur tendre, qui hait le néant vaste et noir!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir;
Le soleil s'est noyé dans son sang qui se fige.

Un coeur tendre, qui hait le néant vaste et noir,
Du passé lumineux recueille tout vestige!
Le soleil s'est noyé dans son sang qui se fige...
Ton souvenir en moi luit comme un ostensoir!



"Ce qu'a vu le vent d'ouest", um dos prelúdios tecnicamente mais difíceis, é inspirado por um conto de Hans Christian Andersen, O Jardim do Paraíso, onde cada um dos quatro ventos do mundo se encontram. Não encontrei o texto em português, e teremos que nos contentar com a versão em inglês do trecho no qual o Vento do Oeste descreve de onde veio:

"I come from the forest wilderness," he said, "where the thorny vines make a fence between every tree, where the water snake lurks in the wet grass, and where people seem unnecessary."

"What were you doing there?"

"I gazed into the deepest of rivers, and saw how it rushed through the rapids and threw up a cloud of spray large enough to hold the rainbow. I saw a wild buffalo wading in the river, but it swept him away. He swam with a flock of wild ducks, that flew up when the river went over a waterfall. But the buffalo had to plunge down it. That amused me so much that I blew up a storm, which broke age-old trees into splinters."

"Haven't you done anything else?"

"I turned somersaults across the plains, stroked the wild horses, and shook cocoanuts down from the palm trees. Yes indeed, I have tales worth telling, but one shouldn't tell all he knows."


"La cathédrale engloutie" é inspirada por uma lenda sobre uma catedral na Ilha de Ys, submersa pelas águas do mar, mas que, em dias ensolarados, emerge, e conseguimos ouvir os sons de seus sinos, seu antigo órgão tocando, seus monges cantando, até que ela novamente afunda no mar:


Depois disso, 

Pausa para meditação.


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Pronto, podemos voltar aos Prelúdios. Já ouvimos os 5 mais "climáticos", mas talvez possamos incluir entre estes o número 2 "Voiles" (Véus? Velas?):


No Segundo Livro de Prelúdios não rolam tantos climas quanto no primeiro, mas "Brouillards", o primeiro prelúdio da série, já nos arrasta para as névoas. É um dos mais estranhos, e confesso que levei um certo tempo para encontrar meu caminho dentro deste prelúdio realmente brumoso:


"Brouillards" é o mais explicitamente "climático", mas temos também "La terrasse des audiences au clair de lune" (o número 7), e talvez possamos incluir na lista os números 2 ("Feuilles mortes") e  8 ("Ondine"), inspirado nas ilustrações de Arthur Rackham para um conto de Friedrich de la Motte Fouqué, no qual Undine, um espírito das águas casa-se com um humano para, assim, poder ter uma alma. Undine, aliás, poderia reder um post inteiro!

"La Terrasse":


"Feuilles mortes":


"Ondine":



E estas são algumas das ilustrações para o livro (as ilustrações são de 1909):

  

Os prelúdios individuais são lindos, mas lindo mesmo é ouvir todos os 12 do primeiro livro, em sequência, e, no dia seguinte (para não embaralhar tudo) os 12 do segundo. Aproveitemos, então, para ouvir o monstrinho Sviatoslav Richter tocando todos os 24:


Primeiro dia, Livro 1:

00:00 - 1. Danseuses de Delphes
03:00 - 2. Voiles
06:26 - 3. "Le vent dans la plaine"
08:27 - 4. "Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir"
11:33 - 5. Les collines d'Anacapri
14:22 - 6. Des pas sur la neige
18:00 - 7. Ce qu'a vu le vent d'ouest
21:20 - 8. La fille aux cheveux de lin
23:42 - 9. La sérénade interrompue
25:49 - 10. La cathédrale engloutie
31:13 - 11. La danse de Puck
33:33 - 12. Minstrels

Segundo dia, Livro 2:

35:36 - 1. Brouillards
38:21 - 2. Feuilles mortes
41:10 - 3. La puerta del Vino
44:09 - 4. "Les fées sont d'exquises danseuses"
47:12 - 5. Bruyères
49:50 - 6. Général Lavine - eccentric
52:18 - 7. La terrasse des audiences du clair de lune
56:49 - 8. Ondine
1:00:05 - 9. Hommage à S. Pickwick Esq. P.P.M.P.C.
1:02:34 - 10. Canope
1:05:27 - 11. Les tierces alternées
1:08:13 - 12. Feux d'artifice


Lindo demais, sô!

Debussy, depois dos dois livros de prelúdios, parece ter esgotado essa sua fonte de inspiração, e sua música vai ficando cada vez mais abstrata, menos romântica e sonhadora (o que já era audível no Segundo Livro - vide "Les Tierces alternées"), e até os títulos vão se tornando mais abstratos: Estudos para Piano (onde os títulos dos estudos individuais são meras descrições do problema técnico enfrentado em cada um deles: "Para os graus cromáticos", "Para os cinco dedos", "Para as quartas", "Para oa arpegios", etc), Sonata para Violino e Piano, suíte Em Branco e Preto (para dois pianos)...

O assunto de hoje, portanto, está encerrado!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Tá rolando um clima!

Debate-se, há décadas, se os compositores impressionistas não deveriam ser, na verdade, classificados como simbolistas. Claude Debussy, principalmente, parece ter se sentido sempre muito à vontade entre estes, haja vista suas muitas obras baseadas em poetas simbolistas: (Cinq poèmes de Baudelaire), sua ópera Pelléas et Mélisande (libreto de Maurice Maeterlinck), Prélude à l'après-midi d'un faune (a partir do poema de Mallarmé), entre inúmeras outras.

É inegável, porém, seu impressionismo, muito "visível" em suas formas musicais incompletas, fragmentárias, sua preferências por impressões passageiras, ao invés de um discurso musical mais evolutivo, à la Beethoven ou Wagner.

Essa discussão entre seu Impressionismo e/ou Simbolismo acontece desde que existe Debussy, e os argumentos tendem para um ou outro lado, sem nunca chegarem a qualquer conclusão. O problema, a meu ver (não estou sozinho, claro...), é que Impressionismo é um rótulo essencialmente pictórico, e Simbolismo é essencialmente literário. São movimentos com objetivos diferentes (mas não antagônicos), criados para propósitos não-musicais (como quase todos os rótulos musicais atualmente utilizados, à exceção de Ars nova, do Classicismo - talvez - e de algumas escolas do século XX), e que não necessariamente são encaixáveis à musica.

Para completar, a música, quando tenta retratar alguma coisa, é simbólica por excelência: todos os referenciais descritivos, narrativos, espaciais, são externos à própria música - ou, melhor, externos aos sons. Isso, porém, nunca impediu que compositores tentassem, de uma maneira ou de outra, descrever alguma coisa/lugar/circunstância.

Quer um exemplo básico? Bach, em sua Cantata Ich will den Kreuzstab gerne tragen, BWV 56, logo no segundo compasso da melodia do cantor, usa uma nota com sustenido (dó sustenido) para a palavra Kreuz, que, em alemão, significa tanto cruz quanto sustenido. Quando você ouve um dó sustenido ele não vem acompanhado de uma cruzinha, assim como um X no mapa não significa que no terreno de verdade vai haver um X gigante marcando o local do tesouro; ambos têm a mesma função: simbolizar algo externo ao próprio meio, escondido e enterrado, e você só vai descobrir que o significante está ali se estiver familiarizado com as convenções simbólicas utilizadas por quem fez/compôs o mapa/partitura...

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Outro tipo de simbolismo básico da música é o espacial, tão enraizado nos ouvidos ocidentais que é difícil até o reconhecermos como símbolo: o movimento "pra cima" e "pra baixo" da música, por exemplo, só é interpretado como pra cima ou pra baixo devido à convenção de escrevermos sons mais "altos" no alto na partitura, e sons mais "baixos" na parte de baixo da mesma. Nenhum deles, na verdade, está mais alto ou mais baixo, espacialmente falando, assim como o norte da Terra não está acima do Sul: do lado de fora do universo não existe uma seta indicando "Este lado para cima"!

Esse sobe e desce da música, porém, está tão presente que algumas obras perderiam muito de seus sentidos se, de repente, o referencial espacial fosse retirado. Quer um exemplo? Que tal o nº 3 de Miroirs, "Une Barque sur l'Ocean", do Ravel com suas ondas do mar subindo e descendo, subindo e descendo, subindo e descendo...


Assim como simbolismos abundam (adoro coisas que abundam!) na música (e em todas as outras artes, claro), elementos impressionistas também estão presentes - em um grau ainda maior - mesmo que seja apenas no sentido de passageiro, transitório. A música é essencialmente temporal, claro, e tudo nela é passageiro e transitório: ela só faz sentido quando suas partes aparecem e desaparecem, diferentemente, por exemplo, da arquitetura. Uma obra musical existindo por inteiro em um único momento é tão ilógico quanto imaginar o lado de dentro da Notre Dame existindo sem o lado de fora. O efeito da música pode ser tão duradouro quanto o efeito de uma catedral, mas o "objeto" nunca existe por inteiro. Aliás, nunca existe, apenas acontece.

Junte-se a isso toda a vagueza e imprecisão fundamentais da música e você terá um dos terrenos mais férteis possíveis para o impressionismo: nada na música tem substância, definição, contorno, e mesmo o contorno de uma melodia é, a princípio, apenas uma metáfora. Uma melodia tem um início e um fim temporal, mas não espacial; você pode dobrar a velocidade para fazer a melodia caber na metade do tempo, mas duvido que você consiga fazer uma melodia ocupar menos espaço (a não ser que você a escreva em notas menores, em um papelzinho microscópico...). 

Mas, voltemos ao Debussy. Eu acho que ele, na verdade, era debussiniano, ainda mais se considerarmos que, diferentemente dos pintores impressionistas e dos escritores simbolistas, Debussy não tinha colegas músicos contemporâneos nem remotamente parecidos com ele! Debussy criou um estilo próprio, sui generis, só posteriormente adotado (com ressalvas) por outros compositores. O mais próximo que alguém chegou de compartilhar seu estilo foi Ravel, mas este era mais novo que o próprio criador do estilo, tendo depois enveredado por um caminho muito diferente, bem pouco debussiniano (mas este é um outro assunto!).

Enfim... Você já está ficando maluco com este assunto? Eu, já. Partamos, pois, para o assunto "de verdade" de hoje!

Não importa o que o Debussy seja: o importante, para este post, é sua fascinação por fenômenos climáticos, principalmente aqueles envolvendo água, em todos os seus estados físicos! A expressão "um mar de som", no caso do Debussy, é quase literal, e mostra sua afinidade tanto com os poetas simbolistas e sua mania por água (como em Pelléas) quanto com os pintores impressionistas e seus milhares de paisagens aquáticas ("aguarelas"?):

(Monet, Saint-Georges majeur au crépuscule)

Assim como os impressionistas e simbolistas, Debussy não foi o primeiro, o único, nem o último a se sentir fascinado pela água, mas a presença desse elemento em sua música é constante: nada, em Debussy, é mais recorrente do que a água (nem mesmo a Lua, outra de suas obsessões favoritas). Comecemos, então, pela ópera Pelléas et Melissande, a qual, graças ao Maeterlinck, já nasceu aquática. Tudo na ópera faz referência, de uma maneira ou de outra, à água!

Logo na primeira cena nossa heroína, Mélisande, se encontra com seu futuro marido, Golaud, aos pés de uma fonte...

- Água 1: fonte.

A segunda cena, apesar de ambientada em um aposento do castelo do pai do Golaud, novamente faz referências à água: nesta cena o rei-pai lê uma carta do Golaud, onde este conta de seu casamento com Mélisande. Se a reação do pai for positiva, seu irmão (do Golaud), Pelléas, deverá acender uma tocha (lanterna) na murada do castelo, em frente ao mar; se a reação for negativa, necas de tocha, e o Golaud pegará seu barquinho (supõe-se que ele vai ficar esperando pela resposta dentro de seu barquinho) e nunca mais voltará pra casa.

- Água 2: mar; barquinho.

Cena três: Mélisande e sua BFF (best friend forever) Geneviève estão caminhando nas redondezas do castelo, olhando para o (adivinhem?) mar, e Mélisande (que, além de heroína, também tinha visões), vê um navio e um farol, e prediz que ele (o navio, não o farol) irá afundar.

- Água 3: outro barquinho; farol.

Segundo ato, cena 1: Mélisande agora está sentada à beira de um poço, e nosso futuro herói, Pelléas, ali a encontra e admira seus longos cabelos, quem de tão longos, tocam (adivinhem?) a água. Conversa vai, conversa vem, nossa heroína, apesar de suas visões, não consegue prever que seu anel de casamento irá escorregar de seu dedo e parar lá no fundo da (adivinhem?) água.

- Água 4: poço; cabelo na água, anel na água, tudo na água...

Segundo ato, cena 2: papai-rei está muito doente. Nossa heroína não se conforma, debulha-se em lágrimas, quase morrendo, ela também, afogada... Maridão chega, não vê o anel no dedo da heroína, e esta lhe diz que o perdeu dentro de uma gruta, perto do (adivinhem?) mar. Maridão diz que, quando a maré baixar, ela terá que ir procurar pelo anel.

- Água 5: lágrimas, lágrimas, lágrimas; maré, e gruta (provisoriamente) alagada.

Segundo ato, cena 3: heroína com medo de entrar na caverna sozinha. Pelléas é chamado para acompanhá-la (e mais uma vez a "pré-visão" de nossa heroína não serve para nada...). Vão até a caverna. Heroína, mesmo assim, com medo de entrar, pois está muito escuro, mas nossa velha amiga, a Lua, aparece, iluminando tudo!

- Água 6: nada de novo, mas temos a Lua, pelo menos, e sua influência sobre a maré!

Terceiro ato, cena 1: heroína em seus aposentos, penteando os longos cabelos, em companhia do cunhadão (de bobinha, Mélisande não tem nada!), que, a determinado momento, arruma seus cabelos (da heroína, claro) com raminhos de salgueiro.

- Água 7: salgueiro, que, como todo mundo sabe, costuma deitar seus longos cabelos sobre as águas:


Terceiro ato, cena 2: maridão leva cunhadão para conhecer os subterrâneos do castelo (eita programão!), chegando juntos a um poço de água estagnada, lá nas "entranhas do subsolo das masmorras embaixo do castelo" (repito-me: que programão, véi!). Heroína teve medo de buraco escuro sem água (caverna), e agora é hora de o cunhadão ter medo de buraco escuro com água...

- Água 8: poço estagnado, parado, cheio de monstros!

Terceiro ato, cena 3: cunhadão sai do buraco cheio de água, e, dali mesmo da entrada para o subsolo, olha para cima, e vê a heroína e sua BFF sentadas à uma das janelas do castelo (olhando para o mar?).

- Água 9: nada de novo, aqui. Em compensação, é meio-dia, o Sol está brilhando furiosamente lá em cima, e a Lua está do outro lado do planeta. Supõe-se que a maré está baixa novamente, o mar está lindo e brilhante, inundado de luz, mas nosso cunhadão favorito está ainda na entrada para o poço "mal-assombrado": "O mundo é lindo, o mar é lindo, mas eu estou ainda muito perto demais desse poço sem fundo com cheiro de morte... Carái, véi! Que medo!"

Terceiro ato, cena 4: maridão submete o filho a uma sessão de interrogatório, até que este acaba confessando que viu o cunhadão dar um beijo na heroína num dia em que estava chovendo.

- Água 10: chuva.

Quarto ato, cena 1: cunhadão diz para heroína que papai-rei está melhor de saúde (apesar do chororô de Mélisande, anteriormente), e que ele, cunhadão, vai viajar (de navio, claro!). Antes de viajar, porém, eles combinam de se encontrar junto ao "poço do anel".

- Água 11: repeteco de águas passadas: Nunca fomos tão felizes quanto à beira da água!

Quarto ato, cena 2: maridão ameaça heroína: "Se você não parar de olhar para os outros eu vou fechar seus olhos para sempre, sua isso, sua aquilo!".

- Água 12: nenhuma... mas, pela segunda vez na ópera, há outros líquidos: maridão chegou com um corte na cabeça, sangrando, e, aparentemente, também estava meio bêbado. Antes havia surgido lágrimas, e agora surgem álcool e sangue: a água, pelo visto, está se transformando em substâncias muito mais problemáticas!

- Quarto ato, cena 3: filhinho brincando à beira do "poço do anel", vendo fileiras de ovelhinhas marchando em direção a algum lugar que ele não sabe qual é, mas um prestativo pastor logo lhe informa que as ovelhinhas não estão voltando para casa.

- Água 13: repeteco e antítese, para ninguém ter dúvida daquilo que nos aguarda: água pura + água problemática (ovelhinhas indo para o matadouro).

- Quarto ato, cena 4: cunhadão à beira do "poço do anel", confessando a si mesmo que está a finzaço da heroína. (Não... Jura? Nem havia notado!). Heroína chega, ele confessa a mesma coisa para ela, e ela, claro, também confessa que o amou desde o primeiro momento (desde a primeira vez ele a havia deixado "aguadinha", pelo visto...). Maridão pega os dois no flagra, mata cunhadão, e heroína foge para o mato (o que, a bem da verdade, é meio estranho, pois ela deveria ter corrido para o mar!).

- Água 14: repeteco da Água 13.

Quinto ato: heroína em trabalho de parto. Maridão chega pedindo desculpas, mas mesmo assim a atazana para que ela confesse que havia chegado às vias de fato com o cunhadão. Heroína nega até o último momento, dá à luz seu rebento (que, estranhamente, não chora), e, por falta de perspectiva na vida, resolve morrer.

- Água 15: a fonte secou completamente: heroína dentro do quarto, sem mar, sem poço, sem sequer uma mísera lágrima no rosto de seu filho. Em resumo: no water, no future.

The End


As óperas (as trágicas) costumam acabar por falta de personagens; esta é a única que eu conheço que acaba por falta d´água! Pelléas et Mélisande, ou, Tragédia na Cantareira.

Apesar de não parecer, esta é uma de minhas óperas favoritas de todos os tempos! O único problema é que as montagens recentes insistem em se esquecer de que Pelléas deveria ser encenada dentro de uma piscina, com água brotando, jorrando, subindo, descendo, caindo, se acumulando, apodrecendo, secando, evaporando, espirrando do teto, inundando o teatro, molhando os espectadores, etc, etc, etc. Água, água, água, para todos os lados! Nas montagens modernas depois de um certo tempo você jura estar assistindo à Sansão e Dalila, no meio do deserto. Uma pena... Tadinho do Debussy. Tadinho do Maeterlinck...


(Tá certo que o fundo azul constante remete, obviamente, a agua, mas para mim isso está longe de ser o suficiente!)


Acho que este post está grande o suficiente, e já temos quase 3 horas de música para ouvir. Voltaremos ao Debussy logo depois da próxima chuva!

sábado, 29 de novembro de 2014

Antes tarde do que mais tarde...

Ó só a notícia que descobri AQUI:


A soprano Tati Helene e o contratenor Sergio Anders participam como artistas convidados na estreia brasileira da obra L’incoronazione di Poppea, de Claudio Monteverdi. Numa iniciativa inovadora em Ópera Studio do Estúdio VOCE – Voz, corpo e equilíbrio, dirigido pela renomada soprano carioca Mirna Rubim, que assina a direção geral do espetáculo. A montagem também conta com Marília Zangrandi, dividindo com Helene o papel de Poppea cantando nos dias 11 e 12 de dezembro; com a direção cênica da mundialmente famosa mezzosoprano Graciela Araya e direção musical de Vitor Philomeno.

Serviço:

L’incoronazione di Poppea
Música de Claudio Monteverdi
Libretto de Giovanni Francesco Busenello

10, 11, 12 e 13 de dezembro de 2014 – 20:00hs

Planetário do Rio de Janeiro – Cúpula Carl Sagan
Rua Vice Governador Rubens Berardo, 100 – Gávea, Rio de Janeiro
Informações: (21) 3251-3456



Parece que, finalmente, depois de um ligeiro atraso de 371 anos, teremos a oportunidade de assistir ao vivo a esta ópera, que é, na minha modestíssima (?) opinião, uma das melhores de todos os tempos.

Se alguém quiser enfrentá-la, aconselho a fazê-lo urgentemente. Vale a pena!

(O libreto está AQUI, em italiano)

Aproveite a chance de assistir a uma ópera onde a mocinha não é nem "mocinha" nem morre no final, a virtude não triunfa, e cujo final (amoral? imoral?) já deixou muita gente de cabelo em pé!