Tadinho dos bichanos. Eles não têm culpa de nada! A gente faz bagunça, e eles levam a fama...
Meu plano, originalmente, era tentar futucar a música "clássica" século a século, ordenadamente, "cartesianamente", mas, desde o final do século XIX, a bagunça é tanta que eu não me atrevo a tentar separar nada de nada. De mais ou menos 1880 (alguns consideram 1890, outros consideram 1865 - a data de Tristão e Isolda) para cá, é uma confusão de ismos sobre o qual ninguém chegou a conclusão alguma. O balaio pertence aos gatos, mas há animais de todos os tipos lá dentro:
- Neoclassissismo (que também pode ser conhecido como neobarroco);
- Pós-romantismo (e Neo-romantismo);
- Futurismo (e Bruitismo);
- Atonalismo;
- Serialismo;
- Nova objetividade ("Neo-objetivismo");
- Minimalismo;
- Expressionismo;
- Impressionismo;
- Pós-modernismo;
- Poliestilismo;
- Nova Simplicidade;
- Música espectral;
- Música concreta (e Música Eletrônica); etc, etc, etc...
Só faltaram Canibalismo e Catastrofismo... Mas espere um pouco, pois não demorarão em aparecer, aposto.
O divertido é que tem para todos os gostos. TODOS! Tem para todos, mas as diferentes vertentes costumam não se suportar! Todo mundo discute com todo mundo, todo mundo é melhor que todo mundo, todo mundo tem certeza absoluta de que o futuro a ele pertence. Carlos não amava Dora, que não amava Lia, que não amava Léa, que não amava Paulo, que não amava Juca, que não amava Pierre Boulez, que odiava toda a quadrilha...
Claro que estou generalizando, pois há (e houve) criaturas que aceitavam outros ismos além do seu(s) próprio(s). Schoenberg, por exemplo: "pai" do Serialismo, mas perfeitamente capaz de aceitar que se fizessem música de outras maneiras. Tem também o Stravinsky, que sempre foi autoritário e achava que sempre fazia melhor que todo mundo (até concordo!), mas que mudava de estilo como quem troca de roupa. A maioria, porém, vivia em clubes exclusivíssimos, onde você tinha que provar, minuto a minuto, que merecia estar em tão extraordinária companhia. As duas Guerras Mundiais (e mais a Revolução Russa) também só serviram para exaltar ânimos de todo mundo, inclusive de músicos: temperava-se a antipatia artística com antipatias políticas, nacionalistas e "raciais".
Com o tempo, porém, os clubinhos seletos deixaram de ter tanta importância assim. Ou melhor (na minha opinião): ninguém mais ouviu falar dos clubinhos (além de seus próprios sócios e amigos/inimigos). O público da nova música, de 1950 para cá, foi, cada vez mais, desaparecendo, desaparecendo, até que a música clássica "popular" foi se tornando mais antiga, mais antiga, mais antiga, ao ponto de, atualmente, se ouvir muito mais Vivaldi, que morreu há trezentos anos, que Olivier Messiaen, que estava vivo até ontem.
A música "clássica", cada vez mais, vai se tornando um museu, em mais de um sentido: não apenas nós temos acesso hoje a músicas de todas as épocas e estilos passados (de 1200 prá cá, ao menos), como os próprios compositores podem ir buscar seus materiais, referências, preferências, nas mais diversas salas do museu, juntar o que achar interessante, levar pra casa, e cozinhar seu próprio estilo.
Ó só, pra você ver, isso aqui, do Debussy, as Chansons de Charles d'Orléans, compostas entre 1898 e 1908, com seu jeito meio "pseudo-renascentista":
Ou o
Frates, de Arvo Pärt, de 1997 (se não me engano), com sua influência ainda anterior, do início da polifonia ocidental, aqui em sua versão para 12
cellos:
Claro que a busca por estilos antigos nunca foi novidade; o diferencial é que o museu atual tem muito mais salas, cada uma com um acervo diferente, onde você pode ir apanhar o que bem entender. Também pode buscar material em salas fora da ala ocidental do museu. Ou criar coisa absolutamente original também, se quiser e tiver competência.
Ou seja, se anteriormente a música já era uma bagunça, nos últimos 130 anos ela virou um verdadeiro carnaval: cada um escolhe a fantasia que bem entende e sai pulando por aí. Cansou? Ano que vem pode escolher outra fantasia. Um ano você sai vestido de samurai, no outro sai de tirolesa, e estamos resolvidos. O compromisso é ser feliz!
Sinceramente? Eu adoro essa folia! Se até 1880 é difícil não encontrar música para agradar a qualquer pessoa, desde então ficou mais fácil ainda, e aqueles que dizem não suportar música do século XX não deveriam reclamar muito, pois há uma infinidade de séculos sendo reciclados para eles! Em qualquer década que procurarem eles irão encontrar uma gama de estilos tão grande que (provavelmente) um deles conseguirá contentá-los. Vá procurar!
O problema será eu conseguir me decidir sobre o que colocar aqui nos posts. Por outro lado, também não será tão difícil assim, pois, fora do círculo de amigos/inimigos particulares de cada estilo, quase ninguém se interessa por este assunto. Todo mundo conhece tudo sobre música popular do século XX (e XXI), e pouca coisa da música erudita, e provavelmente eu conseguirei apresentar algumas novidades.
Vamos, como sempre, começar com a música vocal sacra. E vamos começar com meu amigo Stravinsky (aquele que trocava de roupa o tempo todo) - aliás, ele trocava de roupa com tanta frequência que às vezes se esquecia de colocar a próxima:
Primeiro, a pequena Missa, do período que ele usava roupa neoclássica:
Também com roupinha neoclássica temos a espetacular (na minha opinião, claro)
Sinfonia dos Salmos, cujo texto está
AQUI:
Eu adoro Stravinksy, mas, para quem gosta de refeições menos "exóticas", aqui vai a Mass of the Children, do inglês John Rutter. Além do texto comum das missas latinas, ele incorpora poemas de Thomas Ken e William Blake, mas não os encontrei para colocar aqui:
Tem quem goste, mas eu a acho meio Mary Poppins demais para meu gosto. Muito melhor (eu acho) é o
Réquiem de Guerra, do Benjamin Britten, que eu já citei
AQUI. Primeiro, o trecho Requiem aeternam:
E a obra inteira, para quem se atrever:
(Simplesmente espetacular! Acompanhe o texto
AQUI,
que mistura o original latino com poemas pacifistas de Wilfred Owen)
Também linda, temos a Berliner Messe, do Arvo Pärt (todo mundo já notou que eu adoro sua música). Ela, como muitas das obras mais famosas do Pärt, é em seu estilo "minimalista-gregoriano". Este é o Kyrie:
Quem quiser, pode também assistir à missa inteira:
Quem realmente gostar pode procurar outras obras sacras dele, que existem aos montes, como o Te Deum, Missa Syllabica, 7 Magnificats, etc. Ah, tem também o Stabat Mater, para 3 vozes e 3 cordas (muitas obras do Pärt existem em várias versões diferentes, e o Stabat Mater também existe em versão para coro e orquestra), simplesmente maravilhoso. Quer ouvir um pedaço? Ajoelhe-se, primeiro:
Outro Stabat Mater lindo é o do meu amigo Francis Poulenc:
Há muita música sacra de qualidade do final do século XIX para cá, algumas mais, outra menos, conhecidas, porém a grande maioria delas (das que eu conheço, ao menos) não foi concebida para ser executada em igrejas, e muitas - ainda por cima - incorporam textos estranhos à liturgia: como o recinto "sacro" da música não é mais a igreja e sim a sala de concerto, muitos compositores não se preocupam tanto assim com a ortodoxia de seus textos.
Algumas obras sacras contemporâneas acabam encontrando acolhimento nas igrejas, como as do Pärt, mas a maioria, devido a suas implicações "políticas", raramente (se tanto) irão aparecer em contexto religioso. Uma das mais conhecidas obras sacras do século XX, Chichester Psalms, do Leonard Bernstein, por exemplo, usa os salmos na versão em hebreu, e, portanto, estão automaticamente fora do aceitável para uso na Igreja Católica. Não me pergunte se tem utilidade dentro da Igreja Judaica, pois não tenho a mínima ideia!
Tu es Petro, de James MacMillan, é uma das obras que foi encomendada para uma missa de verdade - a missa celebrada pelo papa Bento XVI em Westminster em 2010. Mesmo assim, é apenas um introitus (trecho musical que acompanha a entrada dos celebrantes), e o resto da missa foi celebrada com o bom - e velho - gregoriano.
Como esta obra é, para mim, meio "apocalipse cum filme de terror", duvido que vá entrar no repertório da Igreja, muito mais acostumada a isso aqui:
Ah, e também não podemos esquecer do Olivier Messiaen. Quase tudo (ou tudo) que ele faz, mesmo quando não é sacro, é sacro. Um exemplo de sua música "não-sacra mas sacra" são as Trois Petites Liturgies de la Présence divine; obviamente religiosas, mas cujo texto foi escrito pelo próprio Messiaen e, portanto, secular.
Outra criatura cuja obra é profundamente religiosa (mesmo quando não é sacra), é a Sofia Gubaidulina. Muitas obras suas, porém, são "sacras sacras", e quem tiver coragem suficiente pode enfrentar sua assustadora, assombrosa, maravilhosa Paixão Segundo São João. Não encontrei o texto em lugar algum, e o russo, para mim, parece russo... De vez em quando aparece uma legenda em alemão, então dá para saber, pelo menos, que é sobre Jesus Cristo! Mesmo assim, vale a pena:
Depois dessa catástrofe (Ei! Apareceu uma das "escolas" que faltavam, Catastrofismo!), está na hora de terminarmos o post, como quase sempre, com compositores brasileiros. Um dos mais famosos é o carioca Ernani Aguiar, cujo Salmo 150 é cantado por todo e qualquer grupo coral, pelo mundo afora. Pode procurar no YT! De Sorocaba a Taipei, passando pelos Estados Unidos, Europa, Rússia, todo mundo já cantou/está cantando/está ensaiando/quer cantar esta pequena obra:
[Alleluja] Laudate Dominum in sanctis ejus; laudate eum in firmamento virtutis ejus.
Laudate eum in virtutibus ejus; laudate eum secundum multitudinem magnitudinis ejus.
Laudate eum in sono tubae; laudate eum in psalterio et cithara.
Laudate eum in tympano et choro; laudate eum in chordis et organo.
Laudate eum in cymbalis benesonantibus; laudate eum in cymbalis jubilationis.
Omnis spiritus laudet Dominum! Alleluja.
O Camargo Guarnieri não era lá muito religioso (ou, pelo menos, sua obra não dá muita ideia de que fosse), mas sua
Missa Diligite é linda! Só encontrei, infelizmente, vídeo para o trecho Sanctus. Se alguém aqui em Brasília quiser apresentá-la na íntegra (Rá! Vou esperar deitado!), eu agradeço:
Enquanto espero, boa noite!