... vamos falar em
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As variações surgiram, segundo as más linguas, na dança; ou melhor, na música para dançar. Nas cortes de antanho (nó, como eu sou velho!) rolavam raves (nó, como eu sou jovem!) constantemente: não havia televisão, Internet, videogames, e se meu - escolha um - ( ) reino, ( ) principado, ( ) burgo, ( ) feudo, não estava em guerra com ninguém, não me restava muito mais a fazer além de comer, dormir, trocar de roupa (sem tomar banho), fofocar sobre amiguinhos e inimiguinhos, ouvir música, e dançar. Sobrava ainda outra coisa para se fazer, claro, mas, como dizia George Bernard Shaw, a dança é uma expressão vertical de um desejo horizontal; fazer uma ou outra coisa, portanto, dava no mesmo.
Para solucionar este problema resolveram repetir a música várias vezes, só que daí reclamaram que ninguém conseguia ficar 20 minutos ouvindo os mesmos 2 minutos de música em looping. Os músicos então pensaram: não podemos ficar repetindo sempre a mesma coisa, mas também não podemos simplesmente mudar tudo porque senão os dançarinos vão se perder e o rei vai acabar pisando no pé da rainha (lembrem-se de que, na França, o rei era quem usava salto alto):
Os músicos não podiam, coitados, nem repetir a música nem a alterar muito, e passaram a repetir apenas a estrutura básica da musiquinha (ritmo, andamento, marcação, harmonia), mas enfeitando a melodia o máximo que conseguiam, para ninguém morrer de tédio. Surgiu, assim, a forma básica de tema com variações, sendo que uma das maneiras mais simples de se enfeitar melodias era conhecida como divisio: pegava-se a melodia original e acrescentava-se notinhas cada vez menores, "enchendo" a melodia:
As variações eram improvisadas durante as danças, mas esse recurso se tornou tão popular que os compositores começaram a escrever e publicar suas próprias variações. Alguns dos conjuntos de variações mais antigos de que se tem notícia são do espanhol Luis de Narváez (numa edição de 1538), as Diferencias para Vihuela (diferencias é a versão espanhola para variações, e vihuela é um ancestral do violão). Vamos ouvir suas Siete Diferencias sobre "Guárdame las vacas":
come vuol mia ventura, hor piango hor canto.
(Lindíssima!!!!)
Outra ciaccona famosa é o último movimento da Partita nº 2, em ré menor, BWV 1004, do nosso outro amigo, J. S. Bach, uma das obras mais espetaculares de toda a música clássica. Aqui, porém, a linha do baixo está diluída no emaranhado de vozes e figurações, e às vezes é bastante difícil acompanhá-la:
Essa
ciaccona é tão espetacular que Brahms a transformou num Estudo para Piano, para a mão esquerda
solo, aqui numa interpretação maravilhosa do meu
monstrinho Sokolov:
Ferruccio Busoni - que transcreveu para piano solo muitas obras do Bach - também tem sua versão para essa ciaccona, agora na interpretação de outro monstrinho, Evgeny Kissin:
Outra ciaccona famosa (ou passacaglia, segundo alguns, já que as duas danças se tornaram indistinguíveis, com o tempo) é o último movimento da Sinfonia nº 4, em mi menor, Op. 98, também do Brahms. Segurem-se às suas cadeiras:
Variações, porém, não necessariamente dependem apenas de "divisão de notinhas" ou de se manter a linha do baixo original: as variações podem ser mais livres, bastando que a harmonia se mantenha constante e a estrutura de cada variação permaneça mais ou menos reconhecível, evitando que os conjuntos de variações pareçam um amontoado de trechos aleatórios.
O número de compassos de cada variação também era constante (igual ao do tema), o que já acontecia desde sempre, para que os dançarinos não se perdessem. Este padrão continuou a ser usado até o século XIX, e mesmo a ciaccona do Bach que acabamos de ouvir o utiliza. Beethoven também o segue em suas 32 Variações sobre um tema original, em dó menor, WoO 80, cujo tema é muito simples e pequeno, constituído de uma única frase de 8 compassos, e cujas variações têm exatamente o mesmo tamanho; apenas no final, após da 32ª variação, é que Beethoven acrescenta uma extensa coda, para finalizar a peça.:
O Beetho, porém, não era homem de ficar simplesmente repetindo o que outros já haviam feito, e, conforme amadurece, usa as formas herdadas cada vez com maior liberdade e segurança. Quer dizer, segurança ele já tinha desde sempre, mas em sua terceira fase ele tem certeza absoluta de que é capaz de usar qualquer forma da maneira que quiser, sem medo de jamais errar, como nas variações do último movimento de sua Sonata para Piano em mi maior, Op. 109.
Não encontrei vídeo com partitura apenas do terceiro movimento, então vai a sonata inteira:
Se alguém preferir baixar a partitura, ela está
AQUI.
Antes de falarmos das variações do terceiro movimento, ouça novamente os dois primeiros movimentos. O Vivace é construído na "velha" forma-sonata, mas com várias peculiaridades: primeiro, a pequena extensão (apenas 99 compassos). O primeiro movimento da sonata "Waldstein", em comparação, tem 302, e o da "Hammerklavier" (a sonata imediatamente anterior ao op. 109), tem 405!
A exposição inteira deste movimento se resume a 15 compassos (8 para o primeiro tema, e 7 para o segundo). O segundo tema, que costuma ser contrastante na forma-sonata, dessa vez é contrastante mesmo: além da tonalidade diferente, a fórmula de compasso é diferente (3/4, ao invés do 2/4 do primeiro tema), o andamento também é diferente, as figurações são completamente diferentes, a construção é diferente, e este tema é quase rapsódico, em oposição ao primeiro, todo "quadradinho". O desenvolvimento, inteiramente baseado na figuração do primeiro tema, é maior que a exposição, se estendendo por 33 compassos, até o momento em que, sem aviso, começa a reexposição (final do compasso 48), onde o primeiro tema é repetido, agora forte, utilizando os registros mais agudos e mais graves do piano ao mesmo tempo. Como sempre acontece na forma-sonata, o segundo tema também volta, mas agora aparece com 8 compassos (para completar o compasso "faltando" na exposição). O movimento, então, termina com uma coda também de 33 compassos, também construída sobre material do primeiro tema.
O segundo movimento, por sua vez, contrasta completamente com o primeiro. Se o Vivace, no todo, é muito calmo, o Prestissimo é violento. Beethoven também indica na partitura que o segundo movimento deve se seguir ao primeiro sem pausa: o último acorde do Vivace (em mi maior, piano), é praticamente esmagado por um acorde em mi menor, fortissimo, e o choque é quase doloroso. Este movimento também é em forma-sonata, mas agora seus dois temas são construídos com materiais tão similares que toda a exposição parece uma só avalanche de colcheias e ritmos iâmbicos (pa-páaaa, pa-páaa) e anapésticos (pa-pa-páaa, pa-pa-páaa).
Beethovem, nessa época, estava imerso no estudo das obras de Bach já há bastante tempo, e este movimento, para mim, parece um prelúdio do Cravo Bem-temperado que parou de tomar seu tarja preta, surtou, assaltou a casa do vizinho, roubou um facão, e saiu atacando todo mundo que aparecia pela frente!
Bach:
Beethoven:
Por falar nisso, eu não gosto nem um pouco da interpretação do Schnabel (aquela lá de cima) para o segundo movimento, e só a coloquei aqui no post por conta da partitura. Cada vez que eu escuto o desenvolvimento deste movimento me dá vontade de também parar de tomar meu tarja preta e atacar o Schnabel! Os porquês de eu não gostar:
1 - É prestissimo, mas no desenvolvimento ele deixa o andamento cair sem piedade. Vá lá ouvir! A partir do compasso 70 a velocidade vai caindo, caindo, caindo, até que, ao chegarmos ao compasso 100, parece que o piano murchou.
2 - O desenvolvimento é todo construído sobre uma melodia de 4 compassos que apareceu na mão esquerda, nos últimos 4 compassos da exposição, mas que, na verdade, já havia aparecido nos 4 primeiros compassos do movimento, também na mão esquerda. Vá lá ver de novo! O desenvolvimento inteiro é, basicamente, um acavalamento de versões dessa pequena frase, e não faz sentido algum imaginar que a energia está acabando justamente quando elas vão se amontoando.
3 - O acompanhamento do desenvolvimento, em sua primeira metade, é todo composto de notas repetidas (ou melhor, oitavas, o que dá mais ou menos no mesmo), e também não faz sentido imaginar que essa figura repetitiva vá, de repente, começar a girar mais vagarosamente.
Enfim...
No compasso 105 começa a reexposição, abruptamente, após uma cadência harmônica interrompida (está "faltando" um acorde antes da volta do tema), e o movimento segue sem muitas surpresas, terminando com uma pequena coda que começa exatamente no lugar onde, na exposição, havia reaparecido aquela frase que o Schnabel, por algum motivo, não suporta.
O contraste entre esses dois movimentos é ainda maior que o contraste entre os dois temas do primeiro Vivace: os dois são em forma-sonata (como eu já disse), mas nunca dois irmãos se pareceram menos!
E agora, depois desse breve passeio por territórios que não eram para serem explorados hoje, vamos às variações do último movimento:
Como eu estava dizendo antes de mudar de assunto, era comum, nessa época, que as variações mantivessem o número de compassos do tema. Estas variações do Beetho mantêm o padrão, mas com alguns desvios e detalhes muito interessantes. Ouçam-na (credo, que horrível) novamente, acompanhando a partitura atentamente:
1 - A primeira parte do tema compreende 8 compassos (o que era absolutamente comum), seguidos por sua repetição. A segunda parte é construída exatamente da mesma maneira (8 + 8). Alías, o ritmo da melodia deste tema lembra muito o ritmo do tema da Ciaccona do Bach!
2 - A Variação I já nos transporta para outro mundo, e soa como se fosse algo absolutamente novo. Dá a impressão de que Beethoven escreveu umas 3 ou 4 variações antes, alterando o tema pouco a pouco, mas as jogou fora, deixando só o resultado final. Os compassos, porém, continuam mantendo o padrão 8 + 8 mais 8 + 8.
3 - A Variação II é diferente: é uma variação dupla (oito compassos variados de uma maneira, seguidos por 8 compassos variados de uma segunda maneira, ao invés de simplesmente se repetir a primeira parte, como ocorreu no tema e na Variação I. A segunda parte desta Variação é construída do mesmo modo (8 compassos da primeira "sub-variação", seguidos por mais 8 da segunda). Até aqui, nada de muito complicado.
4 - A Variação III é construída ainda de outra maneira:
a. Primeira parte: 8 compassos (como sempre), mas divididos em dois grupos de 4, sendo que o segundo grupo (compassos 5 a 8) é uma inversão do primeiro: o que a mão esquerda estava fazendo (compassos 1 a 4) passou para a mão direita (in divisio, agora), e vice-versa. A repetição da primeira parte é feita da mesma maneira, mas a melodia agora está in divisio, preenchendo os espaços vazios das pausas;
b. A segunda parte é bem parecida, só que, ao invés de termos (4 + 4 invertidos) + (4 + 4 invertidos), temos 8 + 8 invertidos. Deu para entender? Se não conseguiu, sugiro baixar o PDF da partitura, seguindo o link que coloquei lá em cima, para ficar mais fácil acompanhar a confusão.
5 - A Variação IV mantém o padrão 8 + 8 mais 8 + 8, sem surpresas. Beethoven não é bobo e sabe muito bem que essa variação é o coração do movimento. Nada de tentar complicá-la: se mexer, estraga!
6 - A Variação V é construída ainda de outra maneira, mais intrincada que as anteriores:
a. Primeira parte: 8 compassos, seguidos por mais 8 compassos que são praticamente uma "re-variação" sobre os primeiros 8 compassos. Não chega, porém, a ser uma variação dupla, pois o material empregado é praticamente o mesmo.
b. Segunda parte: 8 compassos, seguidos por mais 8 compassos onde o Beetho mistura o recurso que ele havia usado na Variação III (inversão de vozes) com aquele que havia usado na primeira parte desta Variação V ("re-variação"). Eu sei que é difícil de entender, mas é preciso ser corajoso para enfrentar Beethoven: nada nele é simples. Vá olhar a partitura outra vez!
c. Como se não fosse suficiente, Beethoven também "tri-pete" a segunda metade desta segunda parte (ou seja, ao invés de 8 + 8 compassos, esta segunda parte tem 8 + 8 + 8). Ufa...
Já enlouqueceu? Se não, vamos à ultima variação:
7 - Variação VI: Bagunça geral! Tudo que já vimos até agora é utilizado ao mesmo tempo! Iremos desmontá-la com calma, tentando entender como ela funciona!
Primeira parte (8 compassos):
a. 4 compassos: praticamente o tema original, montado de uma maneira diferente, sendo que o acompanhamento começa a sofrer divisões logo no terceiro compasso;
b. 4 compassos: o tema pulou para o alto (quase uma inversão), e as divisões do acompanhamento já estão começando a assustar!;
Repetição da primeira parte (8 compassos):
a. 4 compassos, onde o tema volta para a voz interna (agora também dividido, assim como o baixo), e onde as divisões do acompanhamento estão furiosas!;
b. 4 compassos: o tema, como antes, pulou de novo para cima. As divisões , que já estavam furiosas, também pararam de tomar traja preta e viraram trinados duplos, para desespero do pianista!
Segunda parte:
a. 8 compassos, onde a melodia evaporou, só restando arpejos na mão direita (contruídos sobre a harmonia original da segunda parte do tema), acompanhados pela divisões enfurecida (trinados), desta vez apenas na mão esquerda;
"Re-variação" da segunda parte (Tudo em um):
a. 8 compassos: o tema volta (lá em cima, outra vez), só que agora sincopado (ao invés de as notas do tema caírem no início dos tempos, elas estão caindo no meio, intercaladas por pausas), os arpejos que estavam na mão direita agora migraram para a esquerda ("re-variados", transformando-se em escalas tortuosas misturadas com arpejos), e a "terceira mão" do pianista está tocando os trinados, que emergiram das profundezas da mão esquerda. Beethoven, nesta Variação VI, já usou divisões, usou "re-variação" (que já havia usado em Variações anteriores), usou inversão (que também já tinha usado antes), usou variação harmônica (na segunda parte); e, para completar;
b. Insere 3 compassos extras, onde o trinado vai pouco a pouco descendo de registro, as notas finais do tema também vão descendo para a região média do piano, como se fossem sumir (e realmente somem, pois no último dos 3 compassos extras a sequência de notas está incompleta), e todo o conjunto vai como que se dissolvendo, até que desembocamos na:
Coda, onde o tema original reaparece, sem artifícios, sem nem sequer repetições.
O recurso de se terminar um set com a volta do tema original não é novo. Nada aqui, aliás, é novo, mas Beethoven consegue fazer com que tudo pareça absolutamente original! Ele usa todos os recursos técnicos disponíveis, construindo 10 minutos de música que, na mão de um compositor mediano, renderiam uma hora de encheção de linguiça: a concentração é extrema, as Variações são as mais díspares possível (nenhuma se parece com nenhuma outra), e o tema, quando volta, causa um efeito quase indescritível. Em outros compositores a volta do tema é uma maneira de simplesmente se fechar o set, mas aqui, não. Sua volta é imprescindível, pois é ela que promove a catarse da obra inteira: "Vivi uma vida inteira em dez minutos, passei por todas as provações possíveis; continuo inteiro, mas não sou mais o mesmo: agora eu sei o que existe dentro de mim, e, mesmo assim, sobrevivi."
E isto, caros e-spectadores, é Beethoven: uma bagagem técnica assombrosa colocada a serviço de uma imaginação estupenda, resultando em algo cujo efeito é maravilhoso mesmo quando não temos consciência de suas causas.
Quer ainda mais variações? Então espere um próximo post, pois hoje não estou em condições de ouvir mais nada!