Hoje iremos passear um pouquinho pela Alemanha e começaremos, bem obviamente, pela allemande, apesar de os primeiros exemplos que sobreviveram serem franceses.
A allemande (allemanda, almand, almain, etc...) existe em três versões: uma em compasso binário (dois tempos, a mais antiga), outra em quaternário (mais comum, derivada da primeira, e basicamente a mesma coisa), ambas em andamento moderado, e uma terceira, em compasso ternário (três tempos), mas que não tem parentesco algum com a allemande original, sendo mais (relativamente) recente e mais parecida com o ländler e a valsa alemães.
Allemande renascentista:
Não podemos nos esquecer de que a Alemanha, até Heinrich Schütz (século XVII), não era nada, em termos de música clássica, e a allemande alemã, mesmo em 1600, era ainda muito mais simples, em termos musicais, que as danças francesas:
Esta dança logo dá as caras em outros lugares da Europa, incluindo aquele país logo abaixo da Alemanha - a Itália. Claro que, já que italianos são italianos, a allemande, ali, não mais se limita a ser uma dança relativamente lenta. Corelli, por exemplo, ainda escreve allemandes lentas (mas você vai ter que procurar bastante para encontrá-las), porém as em andamentos rápidos parecem ser suas preferidas:
(A allemande começa em 1:15)
(A allemande começa em 3:41)
Quando esta dança chegou à França, porém, rapidamente perdeu seu caráter "camponês" (ainda evidente em Corelli, apesar do primor técnico) e se tornou muito mais estilizada, totalmente inapropriada para ser dançada:
É essa allemande "chique" que é exportada de volta para o resto da europa:
E que acaba voltando para sua terra natal, rendendo, nas mãos do Jotaésse Bach, exemplos como esses:
Simplesmente deslumbrante, e mais um alerta para aquelas pessoas (sim, conheço várias) que acham que as Suítes Francesas (essa allemande é da Suíte nº 2) não estão à altura das Suítes Inglesas ou das Partitas.
Quer mais um exemplo disso? Que tal a Suíte Francesa nº 6? Acho que é a minha favorita (a allemande é a primeira peça da suíte):
Ainda sobreviveu, por um tempo, um outro tipo de allemande '"dançável", a allemande-courante, mais rápida que a original...
... mas que também não durou muito tempo, e logo todas as allemandes "originais" (em compasso binário ou quaternário) foram esquecidas e sumiram do repertório. A "nova" allemande, em compasso ternário, parece ter dado as caras na época de Mozart e Beethoven. Tá certo que Mozart ainda escreve allemandes em compasso quaternário, mas qualquer semelhança com a allemande original parece ter desaparecido, principalmente devidos às síncopes (deslocamento de acentos) constantes, totalmente alheias ao espírito dessa dança:
(Allemande em 4:23)
Muito mais comum, nessa época, é a "nova" allemande:
Para todos os efeitos, allemande agora significa apenas "alemã", e, para meus ouvidos ao menos, allemande, valsa e ländler entram todas no mesmo balaio:
Musicalmente a valsa e o lândler são muito parecidos, porém a maneira de dançá-los é completamente diferente!
Ländler:
Valsa:
Claro que qualquer um pode dançar qualquer música de qualquer jeito, e generalizações desse tipo nunca servem para muita coisa... Se você quiser, pode dançar até um missa:
De qualquer modo, essa dança originalmente camponesa e "indecente" (Sim, a valsa era considerada indecente! Onde já se viu dançar desse jeito, agarradinhos, com o homem se esfregando na mulher, perninhas encostando, peitinhos coladinhos? Indecente demais! Até parece forró!) que vai conquistar o mundo inteiro, a partir do final do século XVII:
Acabou se tornando a dança mais popular do planeta! Todo mundo compunha e todo mundo continuava a dançá-las. Claro que nem todas as valsas eram dançadas:
Mas a maioria podia (e era!):
A mesma, agora dançada por gente "normal":
Não vou perder meu tempo procurando (nem o seu, ouvindo) muitos exemplos de valsas "populares", pois, de novelas:
... a filmes:
... passando por musicais:
... desenhos animados:
... cantigas de roda:
... jazz:
... rock:
.... TODO MUNDO escreve, compõe, toca, canta, dança valsas! Ouviremos, então, apenas algumas das minhas valsas preferidas (das que eu consigo me lembrar agora, já que, obviamente, há bilhões...). Primeiro de todos, Carl Maria von Weber, o primeiro (dizem) a se aventurar a escrever uma valsa que não era para ser dançada:
Essa "versão" para piano do Convite à Dança é uma daquelas que fazem ouvintes "esclarecidos" reclamarem, pois acham que o original é esse aqui, orquestrado por Berlioz:
Mais outro Chopin:
A ópera do "rei" da valsa, Johann Strauss II, Die Fledermaus (O Morcego), que, como qualquer um é capaz de imaginar, é pouco mais que uma coletânea de valsas - mas eu gosto!:
E, claro, não podemos nos esquecer de La Traviata:
E Offenbach...
E Debussy...
E Ravel...
E Scriabin:
E Schulhoff...
(A suíte inteira, Cinco Peças para Quarteto de Cordas:)
E Kurt Weill...
E Philip Glass...
E as valsas brasileiras que, estas sim, parecem que jamais perderão seu caráter popular (e isto não é uma crítica!):
Então chega, né?, ou passaremos séculos só ouvindo valsas!
Você sabia que a famosa Habanera, da ópera Carmen, do Georges Bizet, não é dele? Poizé... À época de sua composição, um dos músicos populares mais famosos da Espanha era o Sebastián Yradier (ou, originalmente, Iradier). "Famoso quem?", você deve estar se perguntando, mas tenho certeza de que você conhece pelo menos uma de suas canções (além da Habanera "do Bizet"), como La Paloma, gravada à exaustão por milhares de cantores (e milhões de não-cantores) nos últimos 150 anos:
Tá bom ou ainda quer mais?
E agora, com vocês, a Habanera "de verdade":
Há duas histórias diferentes sobre o porquê de o Bizet incluir El Arreglito em sua ópera:
1) Assim como muitas e muitas pessoas acham, atualmente, que La Paloma é música tradicional, folclórica, sem autor conhecido, Bizet cometeu o mesmo erro e achou que El Arreglito também era uma canção folclórica espanhola, e a enfiou (com alterações) no meio de sua ópera, só depois descobrindo que existia um compositor certo - ainda e vivo, o que era muito pior!
2) Bizet já conhecia o Yradier, e, após a estréia de Carmen (que foi um fracasso de crítica e de público), a emperatriz Eugénie de Montijo (esposa de Napoleão III) sugeriu a Bizet que incluísse a famosa El Arreglito em sua ópera.
Não sei se acredito na primeira versão da história, pois me parece difícil imaginar que Bizet não conhecesse um compositor que fazia tanto sucesso, e que em certa época morou em Paris e era amigo de Rossini e Stendhal, e também amigo de uma das cantora líricas mais famosas da época, Pauline Viardot. Como se isso não bastasse, El Arreglito era frequentadora assídua dos café-concerts de Paris...
Também não sei se acredito na segunda versão, pois nunca ouvi falar que Carmen houvesse estreado sem a Habanera. Claro que isso pode ser apenas ignorância minha, mas até eu conseguir uma edição da partitura utilizada na estreia não poderei dar uma resposta definitiva... Há, porém, ao menos um ponto a favor dessa versão: Yradier era professor de canto de Eugénie de Montijo, confirmando que ele não era, definitivamente, um personagem obscuro e desconhecido.
Independentemente de qual versão seja a verdadeira (se é que não existe uma terceira, perdida por aí), numa coisa quase todos parecem concordar: Bizet aparentemente escreveu, na partitura vocal de "sua" Habanera, a fonte original da melodia. Aparentemente, também, ninguém mais se preocupou em tomar o cuidado que o próprio Bizet tomou... Vá perguntar para qualquer cantor quem é o compositor de "L'amour est un oiseau rebelle", se duvidar de mim!
Há "literalmente" milhares de anos minha mais assídua única leitora pediu-me para escrever um post sobre danças. Ainda bem que ela me pediu para falar "apenas" de danças na música clássica, então podemos deixar de lado milhões de anos de história da dança e começaremos por onde a música clássica viva realmente começa: na Renascença. Claro que antes disso as pessoas também dançavam, mas o que sobreviveu são apenas manuais de instruções, como o S'ensuit l'art et instruction de bien dancer. Ensinava a dançar, mas o que eles dançavam é um mistério!
Para completar, as danças se dividiam entre danças aristocráticas e danças populares, e sobre essas últimas, então, é que não se sabe quase nada...
Uma das danças mais antigas que sobreviveram em música é justamente uma das mais aristocráticas e "chiques", a bassedanse, de origem medieval (lentíssima, mais um desfile de cortesões que uma dança "de verdade"). Era, também, mais uma categoria de dança que uma dança específica: bassedanse (basse danse, bassedanze) significava que era uma "dança baixa" (dããã...), ou seja, não se tiravam os pés do chão para dançar, ao contrário da haute danse.
Uma de suas formas mais comuns (embora eu duvide que se possa generalizar quando há tão poucos exemplos que sobreviveram à passagem do tempo) era aquela em compasso ternário (três tempos, cada um dividido em dois) ou em binário composto (dois tempos, cada um dividido em três). Traduzindo: podia ser 2 + 2 + 2 ou 3 + 3 tempos, e a mudança de um tipo para o outro não era nada difícil de acontecer no meio da música, já que a soma dos tratores não alterava o viaduto, e ninguém iria se perder na contagem dos passos!
Esse tipo de alternância entre compassos sobreviveu durante vários séculos em outra dança (a courante) e até em Bach ainda podemos encontrá-la, se você procurar direito (pois ela aparece disfarçada), como na courante da Suíte francesa nº 3, em si menor. Esta courante é notada em 6/4 (6 colcheias + 6 colcheias em cada compasso = 12), mas a melodia às vezes "escorrega" para 4 + 4 + 4 (também = 12, claro...).Talvez seja difícil descobrir onde é que acontece a mudança de compasso (dica: a mais óbvia - ou menos escondida - acontece bem no finalzinho da primeira parte, antes da repetição), mas se não conseguir ouvir, não se preocupe: pode acreditar em mim!
Isso posto, vamos voltar ao assunto e ouvir três dancinhas baixas, sendo que a primeira muda três vezes de tipo de compasso! Já a segunda é sempre em compasso ternário, mas as divisões e acentos dentro de cada compasso nunca são muito estáveis... (veja se consegue notar essa "instabilidade"):
E agora, uma dança baixa dançada baixamente, bem mais "estável" que essas daí de cima:
Mais outra, e nesta aqui, se você contar os tempos como se fosse uma valsa rápida (1, 2, 3; 1, 2, 3...), você irá notar (espero!) as "inconsistências" passageiras, principalmente na primeira parte:
A bassedanse é uma das minhas danças favoritas, talvez pelo fato de ser uma dança para quem odeia dançar! Outra dança para gente que não gosta de dançar é a pavane (pavin, pavana, paduana, etc, etc, etc), de origem italiana ou espanhola (há dúvidas, controvérsias e eventuais brigas de tapa a respeito), tão "animada" quanto a basse danse. Aliás, a pavana é, tecnicamente, uma basse danse, já que é dançada "baixamente", e suspeita-se que ela possa, inclusive, ter se originado da basse danse.
Apesar de a pavane ser uma "dança baixa", ela tem algumas características próprias, tanto com relação ao ritmo, muito mais estável que na bassedance (se é binário, continua binário, ao invés de ficar pulando de um para outro), quanto pelo fato de cada casal dançar apenas entre si (vá ver de novo a última basse dance daí de cima):
Esta dança costuma ser em tempo binário ou quaternário (2 ou 4 tempos, obviamente), mas se você procurar direito irá encontrar alguns exemplos em compasso ternário, só para complicar o meio de campo e provar pela "enésima ao quadrado vez" que música é uma bagunça:
A basse danse pode ser considerada, para todos os efeitos, uma dança morta, mas a pavane, apesar de também ter morrido lá pelo Barroco, ressucitou na virada do século XIX para o XX, e atualmente abundam (adoro coisas que abundam, já disse!) na música "viva". Uma das mais famosas é a Pavane pour une infante défunte, do Maurice Ravel. Com vocês, o próprio Ravel:
Rápido demais, não é? Essa gravação foi feita a partir de um rolo de piano, um recurso muito antigo, usado desde o Barroco (até onde eu sei) para gravar o que era tocado e permitir sua reprodução mais tarde, em instrumentos de teclado especiais (pianolas, "organolas", "cravolas"), capazes de reproduzir os rolos:
Eu adoro esses rolos principalmente pelas controvérsias que eles geram, pois muitas das músicas neles gravadas (incluindo alguns concertos para órgão, do Handel), soam mais ou menos como o Ravel daí de cima (rápido demais para nosso gosto atual), o que dá origem a discussões acaloradas (e mais tapas) entre os "fetichistas fiéis", que acham que sempre se deve tentar reproduzir exatamente o que o compositor queria, e os intérpretes menos fiés, que acham que a música não é algo fixo, eterno e imutável. Tenho minhas dúvidas de onde me classifico...
Voltando ao Ravel: apesar desse rolo (que supostamente reproduz exatamente o que o Ravel queria), até a década de 70 e oitenta estávamos muito mais acostumados a interpretações bem mais lentas dessa Pavane, como a do Richter:
Também não sei qual eu prefiro... Talvez a do Ravel seja mais "bonita" (para mim), mas talvez a do Richter seja mais pavane que a do Ravel... Ou talvez a do Ravel seja para ser ouvida na segunda-feira, e a do Richter, em uma manhã de domingo, sei lá...
Voltemos ao assunto!
O Ravel tem outra pavane, um pouco menos famosa que essa daí de cima, o primeiro movimento de sua suíteMa mère l'Oye:
Outra pavane famosa é a do Gabriel Fauré, e a ouviremos também com o próprio Fauré, por obra e graça de outro rolo:
Tentei voltar ao assunto, mas vou fazer mais um desvio: a música francesa (não só a francesa, claro) para piano dessa época (primeiras décadas do século XX) é, em alguns casos, mais conhecida em versões outras que não a "original" para piano, e essas duas daí de cima, inclusive, são "crássicos" da música orquestral. Primeiro, a interpretação do Baremboim:
E agora com o Seiji Osawa, mais lenta, a la Richter:
A Pavane do Fauré também tem sua versão orquestral:
Mas também existe (e também pelo próprio compositor) na encarnação para coro e orquestra:
Essa moda de alguns compositores escreverem e lançarem mais de uma versão de suas próprias criações causa, por sua vez, outro fenômeno muito divertido da música clássica, qual seja, a "certeza absoluta" de certos ouvintes (incluindo outros músicos!) de que a versão para piano é "falsa", mesmo quando ela é a mais "original" (no sentido de primeira) . Se eu fosse contar nos dedos das mãos quantas vezes eu já ouvi esse tipo de comentário, eu precisaria ser um polvo! Já disse isto por aqui, mas me repito: preconceito musical, como qualquer outro tipo de preconceito, só serve mesmo para mostrar ignorância...
Mas "re-voltemos" ao assunto: a pavane também ressucitou em alguns lugares bem improváveis, como no rock progressivo do The Alan Parson Project:
Ressucitou também lá na Suécia, no Esbjörn Svensson Trio, de formação nitidamente clássica, mas misturando jazz e elementos do rock - e até mesmo Piazzola:
A pavane já deu as caras até mesmo na música folk americana:
E, para terminar, a "Pavane: She's So Fine" da suíte John's Book of Alleged Dances, de 1994, do também americano John Adams - e talvez ele pudesse tê-la batizado de basse danse, pois o tradicional ritmo constante da pavane foi passear. Apesar disso, são "alleged dances", então "supostamente" ela possa ser uma pavane:
Duas danças é muito pouco para um post (e se eu continuar nessa toada levarei uns 200 anos para cobrir metade das danças mais "populares"), mas por hoje vai ser só isso mesmo, já que minha mania de ficar pulando de um assunto para o outro faz com que qualquer um deles se estenda muito mais que o programado...
No próximo post da série (sei lá quando) ouviremos algumas dancinhas menos lentas, para não matar ninguém de tédio!
Não precisa ficar alarmado! "Fim dos tempos" refere-se tão somente ao final de nossa (quase) interminável jornada, pois o mundo da música clássica, apesar das recorrentes notícias sobre sua morte, ainda não dá sinais de que está acabando: a quantidade de compositores ainda em atividade é alarmante, e, se a música clássica chegar a morrer, será por excesso, e não pela falta!
Da Argentina ao Canadá, de Portugal ao Japão, há tantos, tantos, mas TANTOS compositores em atividade que é humanamente impossível conhecer um zilhonésimo deles! Além disso, a música erudita é, para o grosso da população, tão instigante quanto a Teoria das Cordas: descontando-se os malucos de plantão, o interesse despertado por ambas beira o 0,0000000001%. Ou vai me dizer que você já ouviu falar em Lauri Toivio?
Duvido que muita gente, fora da Finlândia, o conheça, assim como duvido que muita gente conheça Ivan Tcherepnin, apesar de ele ter sido, por várias décadas, professor de música eletrônica em Harvard e, portanto, com mais oportunidades de divulgar seu trabalho:
Se mesmo um compositor de Harvard não tem muita circulação entre os ouvintes, imagina alguém como Eunice Katunda, uma brasileira que, apesar de ter sido professora da Universidade de Brasília e do Conservatório do Rio de Janeiro, e uma das pioneiras da música dodecafônica no Brasil, nem o YouTube conhece!
A música erudita continua viva, mas seus ouvintes, sinto informar, estão desaparecendo, e se restringem a pequenos grupos locais que continuam a prestigiar as esporádicas apresentações em Hamburgo, Colônia, Nova York, e nos festivais do IRCAM. Corrijo-me, portanto: se a música clássica um dia finalmente morrer, não será por falta de compositores, mas sim pela falta de ouvintes.
Se bem que isso pode ser apenas um exercício fútil em futurologia... Talvez daqui a 200 anos, depois que a peneira da história passar, sobre umas duas dúzias de compositores que continuarão (ou começarão) a ser tão ouvidos quanto Stravinsky, pelo menos. Quem viver, ouvirá!
Enquanto a peneira não passa, sobrou para mim fazer a seleção. Comecemos, portanto, pelos "famosos", como o americano John Adams e sua On the Transmigration of Souls, de 2002:
Mais famoso é o inglês Michael Nyman, graças às inúmeras trilhas sonoras de filmes (O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante, O Piano, Gattaca, Fim de Caso, etc). Sua música, assim como a de Kurt Weill, habita a fronteira entre o popular e o erudito, e um de seus ciclos de canções (Six Celan Songs - a partir de poemas de Paul Celan) foi composto e dedicado a Uter Lemper, ela própria moradora dessa zona nebulosa (e "especialista" em Kurt Weill). Aqui apenas a canção número 3, Psalm:
Vou fugir um pouco do assunto e colocar uma das canções mais famosas do Kurt Weill, "Die Moritat von Mackie Messer", da Ópera dos Três Vintêns, só porque eu e todo mundo a adoramos:
Und der Haifisch, der hat Zähne Und der trägt er im Gesicht, Und Macheath, der hat ein Messer Doch das Messer sieht man nicht.
An 'nem schönen blauen Sonntag Liegt ein toter Mann am Strand, Und ein Mensch geht um die Ecke Den man Mackie Messer nennt.
Und Schmul Meier bleibt verschwunden Wie so mancher reiche Mann Und sein Geld hat Mackie Messer Dem man nichts beweisen kann.
Jenny Towler ward gefunden Mit 'nem Messer in der Brust, Und am Kai geht Mackie Messer Der von allem nichts gewußt.
Und das große Feuer in Soho Sieben Kinder und ein Greis - In der Menge Mackie Messer, den Man nicht fragt und der nichts weiß.
Und die minderjährige Witwe Derer Namen jeder weiß, Wachte auf und war geschändet - Mackie, welches war dein Presis?
Denn die einen sind im Dunkeln Und die andern sind im Licht Und man sieht die im Lichte Die im Dunkeln sieht man nicht.
Adoro! Ninguém que ouve essa música sem entender a letra imagina que é uma "Balada a um Assassino": estrofes e mais estrofes descrevendo os crimes de Mackie Messer, que continua impune... (Se alguém quiser providenciar uma tradução do original alemão, mais fiel que as versões em português e inglês que circulam pela Internet, agradeço!).
Mas voltemos aos "fins dos tempos", ouvindo a finlandesa Kaija Saariaho e sua La Passion de Simone, de 2006, baseada na vida e escritos da francesa Simone Weil:
Outro "famoso" é o holandês Luis Andriessen, outro que costuma trabalhar em parceria com Peter Greenaway, como no curta-metragem M is for Man, Music, Mozart, de 1991:
Também dessa época (1992) é Three Heavens and Hells, da americana Meredith Monk, que eu adoro!:
Outro compositor com longa carreira no cinema é o japonês Ryuichi Sakamoto, responsável pela música de O Último Imperador, O Pequeno Buda, Love Is the Devil: Study for a Portrait of Francis Bacon, e muitos outros, além de compor trilhas sonoras para videogames (como Seven Samurai 20XX, para o PlayStation 2). Aqui, um clip de Love Is... :
Muitos compositores atuais - como ja deu para notar - costumam trabalhar com cineastas, mas a Meredith (que, além de compositora, é também cantora, coreógrafa, bailarina e, nas horas vagas, astronauta, costureira e estivadora) deu um passo adiante e resolveu incluir mais uma atividade em seu curriculum, escrevendo e dirigindo o filme Book of Days, além de compor sua trilha sonora:
(Antes havia o filme completo no YouTube, mas sumiu...)
De 1998 é En Écho, do francês Philippe Manoury, para soprano e aparelhos eletrônicos, sobre poemas de Emmanuel Hocquart. Aqui só a primeira canção (são 7, no total), "La Rivière":
la rivière coule sous le feuillage
dégrafe ma robe
dessous regarde je suis nue
porte moi dans cette eau
retourne-moi
glisse ta main
visite mes hanches et ma toison
suis les mouvements de mon ventre
tu emprisonnes mes poignets
tire tire
par tous les os
les bras et les jambes
viens là maintenant
tire doucement ma tête en arrière
caresse-moi
ne t'arrête plus
oui tout vient
tous les parfums de la rivière
regarde-moi
regarde ta Lolita
liée à la taille par l'eau
Recém saída do forno (de 2007, e uma das 1.000 coisas que eu ainda tenho que ver ao vivo), temos a ópera Passion, do francês Pascal Dusapin. Só encontrei pequenos trechos espalhados pelo YT, infelizmente:
De 2008, O Livro do Desassossego, a partir da obra de mesmo nome de Fernando Pessoa, é mais outra obra de um compositor multimidiático, o holandês Michel van der Aa. Aqui, apenas um trecho:
E chega, por hoje! Há música demais no século XXI, e vou precisar gastar longos meses para ouvir coisas novas e decidir o que, na minha opinião, merece aparecer por aqui! Também já ouvimos, em past posts, compositores como Pierre Boulez, Gyorgy Ligeti, Sofia Gubaidulina, Gloria Coates, todos eles ainda em atividade neste início de século, então acho que está de bom tamanho!
Quem quiser futucar por conta própria pode partir desta lista AQUI e garantir meses de diversão, pendurado no YouTube!
Depois de meses sem publicar nem uma mísera linha, resolvi dar uma passadinha pelo blog para lhe perguntar se estava com saudades minhas.
Ele me disse que não, que não tinha sequer sentido minha falta, e até acho que não me reconheceu quando, ainda com cara de sono, abriu a porta para me deixar entrar... Mesmo assim achei melhor me demorar um pouquinho e, conversa vai, conversa vem, ele acabou me confessando que, depois da última faxina, mais outros vídeos haviam desaparecido. Entendi a indireta, mas fiz questão de frisar que ele já tinha idade suficiente para limpar a própria bunda, saco!
Resumindo: desisto! Se alguém um dia chegar a sentir falta de algum vídeo, mande-me um sinal (pode ser de fumaça) e prometo que tentarei substituir o fujão.
Em breve, neste canal:
Estilistas na fase oral 12: fim dos tempos! 1.001 Coisas que me Irritam 3: música para os olhos.
Eu sou uma mula sem cabeça mesmo! No ano passado eu só me lembrei de escrever um post sobre carnaval depois de passada a folia. Lembro-me de também ter prometido que, neste ano, eu me prepararia a tempo, e conseguiríamos passar este carnaval juntos, ouvindo música clássica. Poizé... Ainda não foi desta vez!
Acabei aproveitando o feriado para fazer uma faxina aqui no blog: trocar vídeos que sumiram, corrigir formatações de texto esquisitas, jogar " " fora, homogeneizar a formatação de títulos de músicas (existem zigalhões de regras para isso, e eu odeio todas elas!!!!), editar textos (de leve, apenas). Enfim, eu estava precisando, urgentemente, limpar a bunda deste blog.
Ainda estou fazendo a faxina, na verdade, e me envolvi tanto com ela que nem notei o carnaval passar. Prometo que no ano que vem eu escreverei um post sobre carnaval a tempo (a não ser que eu me esqueça novamente)!
Agora que eu me recuperei da Sonata em mi maior, Op. 109, do Beethoven, estou pronto para voltar ao assunto variações. Prometo que não falarei mais sobre o Beetho neste post, apesar de ele haver composto outros grupos de variações, em sua fase final, tão ou mais maravilhosos que aquele ouvimos.
Continuemos, pois:
Já vimos algumas maneiras de se variar um tema: diminuição (divisio), variações sobre um baixo (ciacconas e passacaglias), variações livres, mantendo a estrutura harmônica do tema e o contorno geral da melodia.
Vimos, também, variações apresentadas em sets, mas essa não é a única opção. Variação, mais que uma forma é um processo, que pode ser aplicado a um tema inteiro (como já vimos), mas que também pode ser utilizado para dar maior interesse a qualquer passagem musical, quando de sua repetição. A forma-sonata, por exemplo, tem uma seção (exposição) que é repetida após o desenvolvimento: a reexposição; e é comum que o material da exposição volte variado, então.
Prometi que não iria mais falar do Beetho, mas não resisto, pois uma das mais linda "variações reexpositivas", digamos assim, que conheço aparece no terceiro movimento de uma de suas mais espetaculares sonatas, a "Hammerklavier", em si bemol maior, Op. 106. (Novamente: se alguém quiser fazer o dowload da partitura, pode seguir este link)
O movimento (gigantesco, durando entre 15 e 20 minutos, geralmente, quase o tamanho da Op. 109 inteira) é em forma-sonata e começa com a apresentação do primeiro tema (compassos 1 a 27; 0:00 a 2:23). Minha sugestão: ouça apenas este trecho, por hora.
Este tema é imediatamente seguido por um outro, no mesmo tom, lindíssimo, mas não nos preocuparemos com ele. Só faço uma observação: Chopin dizia que odiava Betthoven, mas eu, sinceramente, duvido! Há muita coisa em Chopin que parece ter brotado diretamente de Beethoven, inclusive deste segundo tema, que é quase uma premonição de Chopin.
Segue-se alguns minutos de exposição; depois vem um pequeno desenvolvimento, e, aos 7:07, começa a reexposição, onde nosso amigo primeiro tema volta variado. Se o segundo tema já era chopiniano, essa variação do primeiro tema parece sê-lo ainda mais, pois Beethoven o atopeta de figurações na mão direita (nossa velha conhecida técnica de variação por diminuição - ou divisão), exatamente como Chopin, nas décadas seguintes, fará em inúmeras obras (incluindo sets de variações). Ouça, agora, a reexposição do primeiro tema (7:07 a 9:28).
Lindo demais! E para completar, é seguido pela reexposição do segundo tema, ainda mais chopiniano que na exposição.
Agora, se você quiser, pode ouvir o movimento inteiro, dessa vez com o Sokolov, que o toca ainda mais lento (dura mais de 23 minutos), mas maravilhosamente bem. Vai ser difícil encontrar outra versão mais bonita, apesar de sua interpretação levemente "heterodoxa" (uma das características mais marcantes deste pianista):
Para os loucos por Beethoven, outra opção deste movimento, com o Barenboim, também linda:
Há inúmeras gravações, umas melhores, outras piores, mas todas tem algo em comum: nenhuma é perfeita. Eu sei que sou chato (principalmente com música), mas dessa vez eu juro que a culpa não é minha. O problema é que este movimento é uma das coisas mais gloriosas de toda a música clássica, um daqueles milagres que ocorrem apenas duas ou três vezes a cada 200 anos, e que necessita de outro milagre para ser realmente bem executado. Por mais que milhares de pianistas tentem, a probabilidade de o milagre novamente acontecer é ínfimo, ainda mais em gravações: milagres só acontecem ao vivo, eu acho. Porém duvido que aconteça com frequência, mesmo sendo ao vivo: não consigo imaginar acontecendo no Carneggie Hall, por exemplo, às vistas de milhares de pessoas; acho que é mais provável acontecer durante um ensaio, quando o pianista está sozinho, em paz, num silêncio absoluto; daí, quem sabe, pode ser que o Beethoven lhe faça uma visita, e o feliz pianista saberá que foi capaz de realizar uma façanha sobre-humana (pena que ninguém mais ficará sabendo...)
Bom, já deu para notar que eu não posso começar a falar de Beethoven! Mudemos de assunto.
Variações podem aparecer em sets independentes, como La Folia, que ouvimos no post anterior; pode ser um movimento inteiro, como nos vários movimentos que já ouvimos; ou pode acontecer esporadicamente, em certos trechos musicais.
Há, ainda, as famosas regiões nebulosas: "Será que isso é uma variação?"
Eu já falei que variação é mais processo do que forma. Desenvolvimento também é um processo (não necessariamente confinado dentro do desenvolvimento da forma-sonata), e às vezes é difícil distinguir se determinado material musical está sendo desenvolvido ou variado. Algumas vezes (como na "Hammerklavier"), a distinção é fácil, mas em outras ambos os processos estão tão entrelaçados que qualquer tentativa de desmembrar a criatura vai acabar por matá-la...
A língua inglesa, sempre maleável, tem um nome para isso: developing variation. O português, que eu saiba, ainda não se decidiu como chamá-la. Variação desenvolvimentista? Eca!!! Desenvolvimento variável? Tão eca quanto! Acho que eu optaria por variamento ou desenvariação...
O animal pode não ter nome, mas que existe, existe, e já há bastante tempo! Cada uma dessas criaturas, porém, tem cara diferente, e você precisa estudá-la muito de perto para conseguir reconhecer que é uma desenvariação.
O processo de se desenvariar é facilmente reconhecível em (adivinhem?) Beethoven. Eu disse que não falaria dele hoje, mas pelo visto eu menti. Como diria o Calvin: "Me processe."
O Beetho, em sua famosérrima Sonata para Piano em fá menor, Op. 57, "Appassionata", dá um pequeno show de desenvariação: a primeira parte do primeiro tema é todo construído sobre um motivo rítmico (não preciso dizer qual, pois é óbvio). Ouça, por enquanto, apenas os 12 primeiros segundos:
Ouça, agora, até os 24 segundos. Novamente o mesmo tema, agora transposto para outro tom, o que já é um procedimento "desenvolvimentista", mas não "desenvariarista".
Agora, até os 31 segundos: apareceu um detalhe novo, o pa-pa-pa-pá na mão esquerda, irmão do pa-pa-pa-pá da Sinfonia nº 5, em dó menor, Op. 67, na qual Beethoven estava trabalhando quando escreveu esta sonata. Temos, portanto, três elementos: o início do primeiro tema, com seu ritmo característico; o final do mesmo tema, com sua melodia (cujo ritmo é uma expansão do ritmo da primeira parte) e seu trinado; e o pa-pa-pa-pá da mão esquerda.
Vamos até os 50 segundos: o finalzinho do primeiro tema, antes do pa-pa-pa-pá, é novamente transposto, seguido por quatro pa-pa-pa-pás, sendo que o último enlouquece e gera uma sequência de arpejos descendentes.
Aos 52 segundos o primeiro tema volta, e agora ele está variado! Esta variação do tema vai gerar o próximo trecho da música, e isso, caros e-spectadores, é uma desenvariação: uma espécie de variação que vai propriciar o desenvolvimento da música, no sentido de gerar eventos novos, fazendo a música caminhar para frente!
Mas, calma! Ainda tem mais coisas interessantes logo depois da curva.
Ouça até os 1:35. O primeiro tema, agora desenvariado, termina aos 1:10. O que se segue (chamado pelo nome técnico de ponte - já que serve como ligação entre o primeiro e o segundo temas), é também uma espécie de desenvariação dos materiais que já haviam sido apresentados antes. O acompanhamento deste trecho, na mão esquerda, pode ser interpretado como uma sequência enorme de pa-pa-pa-pás encavalados uns nos outros, de maneira que os pás finais estão enterrados sobre os primeiros pas; ou, alternativamente, como uma sequência de pa-pa-pa-pás que perderam seus últimos pás. Enfim... as duas coisas dão o mesmo resultado.
A melodia entrecortada (que começa em 1:18), por sua vez, pode também ser interpretada como uma desenvariação da primeira parte do primeiro tema. Lembra-se da sequência inicial? Ela era composta por um paaa-pa-páaaaa descendente, seguida por dois paaa-pa-páaaaas ascendentes. Esta melodia entrecortada, agora, não é nada mais do que uma inversão (um paaa-pa-páaaaa ascendente seguido por dois paaa-pa-páaaaasdescendentes). Entenderam o porquê de eu ter riscado os paaas e os páaaaas? Eles foram riscados também da música, só sobrando o pa fraquinho do ritmo inicial.
Credo, como é difícil explicar música sem usar música!
Vamos continuar. Este trecho (a ponte) vai até 1:35, quando começa o segundo tema, que, novamente, é outra desenvariação do material do primeiro tema: o acompanhamento da mão esquerda é, obviamente, filha do acompanhamento da ponte, e a melodia (nem preciso dizer), é irmã quase gêmea do primeiro tema.
Para completar, o final do segundo tema, entre 1:52 e 2:08 é derivado do final do primeiro tema. Vá comparar os dois, para ver que eu não estou mentindo! Até os trinados reaparecem! Tudo isso é seguido (entre 2:08 e 2:18) por uma desenvariação dos arpejos que ouvimos entre 0:45 e 0:47.
Em 2:18 começa um terceiro tema, que também é construído a partir de desenvariações de materiais antigos: a melodia é filha do pa-pa-pa-pá, e o acompanhamento é filho dos nossos amigos arpejos.
Continue ouvindo até o final da exposição (2:53). Como você notou, Beethoven construiu a exposição inteira apenas desenvariando o primeiro tema, e o restante do movimento inteiro é apenas um bando de desenvariações sobre desenvariações: 11 minutos de música inteiramente derivados de aproximadamente 20 segundos de material.
Essa foi uma muito análise superficial de um exemplo "fácil" de desenvariação. Depois que Beethoven mostrou tudo que era capaz de ser criado a partir de quase nada, esse processo evoluiu ainda mais (evoluiu no sentido de se tornar diferente, mas não necessariamente melhor).
Essa evolução deu origem a toneladas incomensuráveis de música, desde coisas execráveis (como a Sonata em si menor, do Liszt, na minha opinião), passando por coisas lindas (como a Sonata para Violino e Piano, em lá maior, Op. 100, do Brahms). Vamos, então, ouvir seu primeiro movimento, todo desenvariado de um punhadinho minúsculo de materiais (Não, pelo amor de deus! Não me peça para analisar este movimento aqui no blog!):
Uma das desenvariações mais impressionantes é O Anel dos Nibelungos, a tetralogia de óperas do Wagner: 20 horas de música desenvariada de algumas dúzia de motivos, que não param de se transformar, de se quebrar, se unir, sobrepor-se uns aos outros, num quebra-cabeças caleidoscópico que, até hoje, não sei como o Wagner conseguiu acabar de montar.
No século XX, então, desenvariava-se como nunca! Schoenberg - que, aliás, é o criador da expressão developing variation - desenvariava quase tudo que fazia, quer fosse música tonal, atonal, ou serial. Schoenberg, inclusive, usa o processo de desenvariação como uma "desculpa" para criar o Dodecafonismo: "Todo mundo pegava uma melodia, um acorde, um ritmo, e escrevia uma música inteira a partir desses elementos. Ao invés de usar esses materiais, eu pego as 12 notas cromáticas, arranjo na sequência que eu quero, e uso essa sequência para escrever minha música. Qual é a diferença? Minha sequência de doze notas é tão 'natural' ou 'aleatória' quanto qualquer melodia do Beethoven!"
Não é tão simples assim, claro, mas essa é uma das ideias por trás do Dodecafonismo (Serialismo): cria-se uma série de 12 notas, e essa série é manipulada de inúmeras maneiras. Ela pode ser transposta, invertida, utilizada de trás para frente (processos comuns desde sempre, como todo mundo que leu meu primeiro post sobre fuga já sabe). Qualquer semelhança entre os métodos utilizados pelo Serialismo e os métodos "antigos" não é mera coincidência! O próprio Schoenberg jurava de pé junto que era absolutamente conservador!
Há muitas regras sobre o que é "permitido" (ou não) ao se manipular uma série, mas, como eu já disse várias vezes por aqui, nada em música é obrigatório ou proibido, e cada compositor que se aventura pelo Serialismo interpreta as regras herdadas e cria outras novas, gerando novos estilos. Pensando bem, a história da música (e das outras artes) é uma enorme desenvariação. As regras vão sendo manipuladas, transpostas, reinterpretadas, alteradas (variadas?) fazendo a música se desenvolver e caminhar para frente (ou para trás, ou para o lado, dependendo do referencial utilizado), tal qual uma sonata de Beethoven.
Porém, antes de eu chegar à conclusão de que tudo que existe no mundo são desenvariações, voltemos ao assunto do dia!
Outra habitante da região nebulosa entre variação e desenvolvimento é a forma cíclica. É uma família numerosa, que existe há séculos, com antepassados ilustre, mas não há consenso sobre quais obras devem ser consideradas como membros deste clã, pois sua definição é meio complicada. (Não... Jura? Sempre achei que tudo fosse simples, em arte!)
Resumindo: forma cíclica é uma forma musicial constituída de várias partes (trechos de uma missa ou movimentos de uma sinfonia, por exemplo), em que elementos recorrentes são utilizados em várias ou todas as partes, como uma forma de unificar a obra. É uma definição aparentemente auto-explicativa e facilmente aplicável, né?
Ledo engano...
Voltemos ao Beethoven: uma de suas sonatas (a Sonata para Piano em lá maior, Op. 101) tem este primeiro movimento (basta ouvir o início):
E estes são seus terceiro e quarto movimentos (agora você vai ter que ouvir até o início do 4º movimento):
Como ouviu, o primeiro movimento faz uma breve aparição durante a transição entre esses dois movimentos. Algumas pessoas, portanto, incluem esta sonata entre as formas cíclicas, já que há material recorrente. Outras, porém, acham que não, pois o material não é realmente reutilizado; ele simplesmente reaparece, ajudando a unificar a obra, mas não exerce influência sobre o 4º movimento.
Quer saber minha opinião?
Abre parênteses
Sinto informar: eu tenho um trabalhão desgraçado para escrever este blog porque estou tentando botar ordem nas minhas ideias, e não nas suas! Quer você queira saber, quer não, vou continuar!
Fecha parênteses
Minha opinião, portanto:
Formas cíclicas me lembram, meio obviamente, bicicletas (ou melhor, "cicletas"), que existem de vários modelos, uns mais, outros menos, estáveis. Eu incluiria esta sonata do Beetho dentro da categoria monociclo: o material volta, mas, assim como num monociclo de verdade, a existência de apenas uma rodinha torna difícil equilibrar a sonata inteira dentro da definição.
Já a Sinfonia nº 5, em dó menor, Op. 67, é outra história. Ela já pode ser considerada um ciclo: o material do primeiro tema (o ritmo mais conhecido da história da música) é utilizado em diversas formas durante o restante dos movimentos. No quarto movimento Beethoven também usa recurso similar ao utilizado na Sonata Op. 101(um pequeno trecho do terceiro movimento, juntamente com a transição do terceiro para o quarto, reaparece), mas a presença constante do pa-pa-pa-pá inicial, gerando inclusive varios outros temas durante a sinfonia, já garante à Sinfonia nº 5 um lugar cativo dentro da categoria forma cíclica.
Beethoven, aliás, foi quem recolocou na moda este recurso, amplamente utilizado nas inúmeras missas cíclicas do Renascimento, onde uma melodia (que podia ser um trecho de um canto gregoriano ou de uma música popular) servia de base para a construção de todos os trechos da missa. Qualquer dia voltaremos às missas cíclicas, porque é um assunto que vale a pena explorar melhor!
Depois da 5ª Sinfonia, formas cíclicas viraram febre, e um dos primeiros e mais conhecidos exemplos é a Symphonie fantastique: Épisode de la vie d'un artiste ... en cinq parties, Op. 14, do Hector Berlioz, onde uma melodia (representando sua amada Harriet Smithson, que eu já havia citado AQUI) reaparece constantemente:
A melodia recorrente é esta aqui, e aparece pela primeira vez, nessa gravação, aos 6:02:
Outro exemplo famoso de forma cíclica é a Fantasia "Wanderer", Op. 15 (D. 760), do Schubert, mais próxima (em termos de construção) da Sinfonia nº 5 que a Sinfonia Fantástica:
E chega, por hoje! Sei que estes dois posts sobre variações foram muito complicados, mas num outro dia voltaremos a este assunto, exlusivamente para ouvirmos variações e formas cíclicas, sem precisarmos mais nos preocupar com suas definições e características!