segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Fetiches musicais 1: fidelidade ao original

Vou logo avisando: esse post vai ser complicado, e muito técnico! Muito técnico mesmo! Se você quiser algo mais leve, divertido, pode clicar AQUI. Não diga depois que eu não avisei!


O mundo é redondo, mas as pessoas são chatas... (inclusive eu, por falar nisso!). As mais chatas, musicalmente falando, são as "fetichistas musicais", criaturas que têm uma preferência musical (qualquer uma) e que automaticamente desprezam as demais possibilidades. Como qualquer outro tipo de fetiche, várias modalidades são possíveis:

- Fetiche pelo original: "Eu só ouço o original, pois é muito melhor!";
- Fetiche (ou anti-fetiche) por épocas ou estilos: "Depois do Barroco, nada mais presta", "Não ouvi quase nada de música moderna, mas o século XX não tem nada que se aproveite!";
- Fetiches por instrumentos: "Esse cravo é tão ruim que tem som de pianola de criança, mas tudo fica mais bonito tocado nele!";
- Fetiche por número de participantes: "É claro que música de câmara é MUITO melhor que música orquestral";
- Fetichistas Definitivos, os piores de todos: sabem tudo, entendem de tudo, e têm opinião definitiva, única, sobre tudo: "Essa é a única gravação boa que existe dessa música", "Esse é o único compositor que presta", etc, etc, etc. São os Fetichistas mais bonitinhos: tão irritantes que chegam a ser engraçados. Como certo alguém que, há muito muito tempo, sorrindo da falta de cultura de outro alguém, veio me dizer que Mozart NUNCA havia escrito um quinteto de cordas. Mozart escreveu, sim, vários quintetos para cordas, mas isso não é o importante! O importante é que essa pessoa SABIA COM CERTEZA que não existia nenhum quinteto do Mozart: "Eu nunca ouvi, então é óbvio que não existe!"

Os Definitivos são hilários, mas vamos falar dos Fetichistas Fiéis, que também são engraçadinhos!

A princípio, até concordo que os originais são melhores (para mim, ao menos). Não no sentido de serem melhores por algum motivo metafísico - os céus não penduram cartazes nos avisando qual versão eles preferem, claro - mas apenas por representarem melhor a imaginação do compositor em questão. Prefiro, portanto, tentar me ater ao original.

Até aqui estou me incluindo entre os Fetichistas Fiéis, claro. O problema, a meu ver, começa quando não se compreende que o original é, via de regra, uma versão.

Vou tentar me explicar:

Para mim, toda música é uma versão de um original que nunca existiu. A música clássica é uma coisa muito chata, nesse aspecto, pois aquilo que ouvimos é uma execução de uma interpretação de um texto que é um registro (falho) daquilo que o compositor está imaginando. São tantos níveis de transcrição (cérebro - símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura - execução) que o conceito de "original" já começa a ficar meio nebuloso.

O pior é que a cada transcrição o número de possibilidades diferentes aceitáveis vai aumentando. A última (interpretação da leitura - execução) é a mais facilmente "entendível": pegue 10 instrumentistas, tranque todos eles numa sala por um mês, até que cheguem a uma conclusão comum sobre o significado de um texto musical específico. Em seguida, peça para todos tocarem a peça em questão. Todos concordaram com uma única interpretação do texto, nos mínimos detalhes, mas com toda a certeza você ouvirá 10 execuções diferentes, cada uma tão original (no sentido de fiéis) quanto a outra. 

"Mas isso é culpa do intérprete!", responde o fetichista.

Pode até ser! Mas a solução seria abolirmos os coitados dos intérpretes e passarmos a "ouvir" música apenas lendo a partitura. Ao invés de baixar música para seu Ipod você começaria a baixar partituras (que também não são necessariamente "originais") e, ao invés de ouvir, você começaria a ver filminhos de partituras passando na frente de seus olhos. Não seria muito prático, convenhamos, nem daria certo: se música fosse feita para ser apenas vista ela teria nascido pintura ou escultura...

O Stravinsky costumava chamar os intérpretes de "excrecências vãs". Para ele, os intérpretes deveriam tocar suas músicas (do Igor, claro) como se fossem máquinas de costura, sem "interpretação", sem imaginarem nada, sem tentarem expressar coisa alguma. Nada contra sua opinião - cada um tem a sua! - mas o próprio Stravinsky, quando gravava suas obras, não seguia sua própria instrução; há, por exemplo, duas gravações suas da Sagração da Primavera, uma de 1940 e outra de 1960, com diferenças consideráveis entre elas. Talvez ele tenha trocado de máquina de costura, ou a correia da máquina estava ficando já gasta em 1960, ou ele mudou a maneira de pedalar a máquina, ou sei lá o quê... só sei que são diferentes! Eu não encontrei as duas versões no Iútúbi, então não vou colocar nenhuma, mas pode confiar, são diferentes!

E isso porque só estamos falando de "interpretação da leitura - execução". A transcrição seguinte é mais complicada: a "leitura - interpretação da leitura" é um problema muito sério na música clássica. Pra começo de conversa, é muito difícil separar esse nível dos níveis acima; geralmente a sequência "símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura" é uma grande bagunça, onde os níveis se misturam constantemente, e onde a maioria das questões relativas à fidelidade ao original emergem.

Primeiro de tudo, a escrita musical é como qualquer outra escrita: ela evolui. O que significa "y", hoje, pode ter significado "x", anteriormente. Confusões "simbólicas" podem inclusive existir durante um mesmo período histórico. O Haydn e o Mozart, apesar de viverem no mesmo período, na mesma cidade (parte do tempo, ao menos), e escreverem no mesmo estilo, às vezes usavam símbolos diferentes para indicar a mesma coisa.

Segundo: a escrita musical, apesar de muito evoluída e complexa, continua sendo apenas uma representação muito capenga do "objeto" real, o som. Ela não dá conta de todos os parâmetros variáveis da música, e muitas vezes essas variáveis não são escritas pelo compositor. Nosso amigo Jotaésse Bach é um que não costumava, por exemplo, colocar indicação de andamento ("velocidade", digamos), pois todo mundo à época sabia qual era o andamento certo. Eu não acredito que era tão simples assim... Duvido que o mundo inteiro soubesse qual era a velocidade certa e, se soubessem, duvido que todos concordassem. O que eu acho que acontecia é que o Bach estava sempre por perto quando sua música era executada, sendo mais ou menos inútil indicar a velocidade "certa". Também acho que, mesmo com o Jotaésse bem ali do lado, o andamento podia muito bem mudar, dependendo das circunstâncias: uma música poderia muito bem ser tocada com um andamento mais rápido num salão cheio de cortinas que absorvem sons, ou mais lento se executada dentro de uma igreja que tivesse um acústica cheia de reverberações; ou o Bach estava animadinho naquele dia, ou estava mau humorado, ou tinha um compromisso mais tarde, sei lá...

Mas não existem dúvidas apenas a respeito de andamentos. As próprias notas musicais também apresentam inúmeros problemas. Duvida? Dê uma olhada, então, nessa página do manuscrito do Quarteto Op. 95, do Beethoven:


sábado, 26 de outubro de 2013

E o que diria a juventude?

Poizé... Muita gente, quando pensa em música clássica, imagina um bando de senhores vetustos, como estes compositores aqui:

Beethoven 


Wagner


Béla Bartók 


Verdi


Ravel


Monteverdi

Fica parecendo que todo compositor da música clássica nasceu com pelo menos 50 anos, ou que só a partir dessa idade é que decidiram mudar de vida: "Pronto, já tá na hora de começar a escrever música clássica, pois estou ficando velho demais pra tocar rock!"

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Virados pra Lua

Li recentemente um livro onde a "criatura escrevente" falava sobre a visão que o século XX (lembra-se dele?) tinha sobre sexualidade, em comparação com a visão do século XIX. Até aí, nada de novo... Mas era um livro sobre música, e o cara na verdade estava tentando explicar que essa mudança de visão sobre sexualidade havia afetado a maneira de ouvirmos e entendermos o primeiro movimento da "Sonata ao Luar", do nosso amigo Beetho. Foi uma experiência interessante, confesso, fazer "aquilo" com o Beetho! (Minha desculpa é que eu estava meio bêbado, não tinha nada pra fazer no momento, o Beetho era um cara muito interessante, a conversa estava boa, o vinho estava gostoso, a música era excelente... Resumindo: fiquei curioso e não resisti!)

Claro que a experiência daquela noite não saiu mais de minha cabeça. Passei a escutar a "Sonata ao Luar" o tempo todo (deve ser por isso que não existem ex-"lunáticos": a curiosidade só aumenta....), e comecei a futucar outros compositores que também não tinham conseguido resistir à curiosidade de experimentar esse prazer noturno. E quer saber? Muitos se renderam, ao menos uma vez, a seus encantos!

Então, por falta do que fazer, resolvi compilar uma listinha de exemplos "lunático-clássicos" (Compilar... êita verbo feio! Se alguém descobrir uma só conjugação que preste, vai ganhar um prêmio!) :

Compilemos, pois, e comecemos pelo celebérrimo "Clair de Lune", do Debussy (que, aliás, faz parte de uma suíte, a Suite Bergamasque):


Pierrot Lunaire, op. 21, do Schoenberg. Aqui vai apenas a 1ª parte, "Mondenstrucken":


Tem também a "Melodia Sentimental" (que também é parte de outra suíte, A Floresta do Amazonas) do Villa-Lobos, e uma de suas canções mais conhecidas. TODO MUNDO já gravou isso, em todos os estilos (imagináveis ou não). Até as pessoas que "não suportam" música clássica a adoram:

(Ninguém sabe pronunciar o português direito, mas, excetuando esse "problema", é uma gravação linda, a melhor de todas que já ouvi)




O nosso amigo F. Schubert é outro que compôs canções "lunáticas", como a  "Der Wanderer an den Mond", D. 870, uma de suas mais importantes canções:


Tem muitas outras ainda, pois Schubert parece ter sido fascinado por esse astro (também, basta ver sua "cara de Lua" para notarmos que ele não iria nos decepcionar).


Outra de suas canções, "An den Mond", D. 193 (poema de Ludwig Hölty) é, aliás, uma homenagem à Sonata ao Luar, do Beetho:


(Lindo demais!)

Schumann também musicou esse mesmo poema:

(Quase consegue ser ainda mais linda que a versão do Shcubert)

E Brahms, novidade!, também musicou esse mesmo poema! Mas vamos ouvir outra de suas canções, a "Mondnacht":


O Schumann também tem uma "Mondnacht", para o mesmo poema, claro... TODO MUNDO usava os mesmos poemas zilhões de vezes; alguns até usavam o mesmo poema mais de uma vez, como as duas versões do Schubert (D. 259 e D. 296) para o poema "An den Mond", do Goethe (diferente do "An den Mond", D. 193, daí de cima, que é de outro poeta):


(Para quem está deseperado por saber minha opinião: eu gosto mais da segunda versão)

Há outra canção "An den Mond", dessa vez do Hans Pfitzner, para o mesmo poema do Goethe que Schubert usou:


Ou seja: daria para montar um recital inteiro de canções com apenas 2 ou 3 poemas. (Não sei como é que ninguém pensou nisso antes. Pelo menos EU nunca soube de um recital assim, mas adoraria ouvir! Taí a dica, para quem quiser.)

O Debussy era outro com "cara de Lua":


Claro que ele também não nos decepciona, pois compôs uma renca de obras "lunáticas" (além da "famosésima" "Clair de Lune" daí de cima), entre elas:

"La Terrasse des audiencies au clair de lune", o número 7 do Segundo Livro de Prelúdios:


Ou a canção "Clair de lune: votre âme est un paysage choisi" (poema do Verlaine), que também exite em duas versões:

A versão de 1882:


E a versão de 1891:



E ainda tem a versão do Gabriel Fauré, sobre o mesmo poema:


Tem mais outra "Clair de Lune", da Suíte para órgão, Op. 53, do também francês Louis Vierne, um dos bons compositores franceses da segunda metade do século XIX que praticamente sumiram do repertório (Aliás, os franceses do século XIX eram fascinados por música para órgão, e qualquer dia eu vou ter que "postar um post" sobre esses compositores):


Até a NASA (quem diria?) também já se interessou pela Lua, e alguém lá teve o trabalho de também compilar uma lista bem interessante de músicas "lunáticas", porém com ênfase na música popular americana, cráro: http://moon.nasa.gov/moonsongs.cfm.

Então, só para não dizer que eu não falei da Lua brasileira "popular", aqui vai uma das minhas favoritas, "Lua Branca", de Chiquinha Gonzaga:

(Linda demais!!!!!!)

A Lua, porém, não sobrevive apenas em peças pequenas. Para terminarmos em grande estilo, portanto, vamos para Il Mondo della Luna, a ópera doidinha do Haydn na qual um astrônomo tenta convencer um incauto cidadão da existência de vida lá em cima, e o despacha para lá numa viagem regada a ópio, com direito a encontro com o Imperador da Lua. Eu havia colocado um vídeo da ópera inteira, mas ele foi retirado do YouTube, e teremos que nos contentar com um trechinho minúsculo:


Boa viagem!