domingo, 10 de novembro de 2013

Fetiches musicais 2: Estilistas

Não, não são costureiros, apesar de não faltarem fetiches no reino da moda, claro:



Os Fetichistas Estilistas, na música, como o nome já indica, são aqueles que só gostam de um estilo (ou período), e acham que todos os outros são "nhém-nhém": "Barroco é que é bom!!!". Também tem aqueles que acham que determinado período não presta: "Não tem nada que preste no século XX". Ou aqueles que acham, por exemplo, que Beethoven é o melhor (ou o pior) de todos, e que absolutamente tudo do Beetho é lindo (ou horroroso).

Enfim...

Eu também às vezes me pego "fetichizando". Acho Rachmaninoff, por exemplo, boring no úrtimo... Mas até eu consigo descobrir maravilhas em sua música (não toda), quando ela é extremamente bem executada, como todo mundo que leu meu post sobre "monstros do piano" sabe. Mesmo não sendo fã nº 1 do Rach, não acho que todo mundo que goste dele esteja errado!

O pior, em se tratando de fetichistas, é que eles são capazes de brigar com você se por um acaso você não partilhar de suas preferências. Isso serve para todos os fetichistas, de qualquer tipo, de qualquer arte. Quantas vezes você não se pegou discutindo com outra pessoa sobre, por exemplo, cinema? Vá dizer a um "fetichista hitchcockiano" que você não gostou de Os 39 Degraus. Sente-se perto da saída de emergência, pois a discussão pode sair do controle!

Existem, pelas minhas contas, 1.895.754 sub-gêneros de "fetichistas estilistas", e fico em dúvida sobre qual deles é mais interessante (alguns sub-gêneros são hilários!). É comum, depois de anos e anos convivendo com músicos (ou apreciadores de música), de repente você se descobrir cara-a-cara com um deles. Você até então achava que ele/ela era "normal como você" (pressupondo que você seja "normal", claro!), e então ouvir ele/ela dizer: "O melhor compositor para música de câmara é o Joseph Bodin de Boismortier!"

Para os que não são "fetichistas boismortierianos", aqui vai a Trio-sonata para Oboé, Fagote e Baixo contínuo, em mi menor, op. 37, nº 2, nessa encarnação representada por oboé, cello (no lugar do fagote), cravo e viola da gamba:


É lindo (eu acho), mas daí a dizer que é o melhor do mundo...

Também já me aconteceu de ouvir pianista dizendo que odeia Beethoven. Quem sou eu para dizer que ele/ela deveria gostar do Beethoven? Mas confesso que acho estranho alguém passar 20 anos estudando piano e não conseguir reconhecer a beleza disto aqui, por exemplo:


Mas essas duas sub-categorias (e algumas outras) de "fetichistas estilistas" são, a meu ver, apenas a maneira que eles adotaram para tentarem se diferenciar daqueles que gostam das coisas mais "comuns". É engraçadinho mas meio inócuo, pois todo mundo descobre a tática na hora!

Mais problemático, na (adivinha de quem?) minha opinião, é o "fetichista estilista de carteirinha", do tipo que só gosta de Classicismo ou qualquer outro(s) período(s) e automaticamente despreza tudo o mais que existe no universo. Não é muito diferente das pessoas que dizem "Não suporto música clássica", ou "Não suporto música popular", numa mistura de elitismo com ignorância (no sentido verdadeiro de não conhecer) que beira o preconceito (estou sendo eufemista!), e que me dá uma tristeeeeeza...

Porque as pessoas acabam gostando, sim, de muita coisa, se forem apresentadas devidamente a elas. Nada é mais comum do que alguém dizer que não gosta de música clássica e depois de 5 minutos você escutar o celular dela tocando Bach! Ela não sabe que aquilo é música clássica, e muito menos que aquilo é o Jotaésse. Quando você diz a ela que é música clássica ela toma um susto, e logo vem perguntar se você tem uma gravação da música inteira para ela ouvir! Fato verídico! Já aconteceu comigo! E o Bachzinho que ela adorou era esse aqui:


Claro que só a conhecia tocada naquele sonzinho irritante de celular. Mas já gostava! 

E, por falar em sonzinho irritante, descobri um vídeo no IúTúbi  dessa fuga tocada em taças de cristal. Adorei!:


Mas, voltando ao assunto: quem não gosta de música clássica e também não gosta dessa fuga do Bach, provavelmente gosta disso aqui:


Se não gosta nem do Bach, nem do Vivaldi, deve gostar disso:


Se não gosta do Bach, nem do Vivaldi, nem do Ravel, deve gostar disso aqui:


Se não gosta de Bach, nem de Vivaldi, nem de Ravel, nem de Satie, desisto, e dou meus parabéns a essa pessoa: ela conhece tudo mesmo e realmente não gosta de música clássica. Ou é muito teimosa para admitir que gosta.

Mas eu sou chato (surpresa!!!!), e mais teimoso do que ela, e vou tentar de novo:


Se não gostar nem mesmo do Gershwin, já começa a parecer fundamentalismo. Para lutar com fundamentalistas, só mesmo apelando para isso aqui:


Doze entre dez noivos que não gostam de música clássica escolhem isso para tocar no casamento, parece. E daí são os fundamentalistas da música clássica que vão torcer a boca, revirar os olhos, e fazer cara de pouco caso. Os dois estão errado, acho:

- Quem não gosta de música clássica e gosta da Ave Maria do Bach/Gounod acabou de confessar que gosta sim!, nem que seja só dessa música e de poucas outras;

- Quem gosta de música clássica e não gosta disso é porque, a meu ver, deixa seu preconceito tomar a dianteira, e confessa sem querer que não entende de música clássica.

Obviamente nem todo mundo que gosta de música clássica é obrigado a gostar da Ave Maria, porém o mais comum é tentarem racionalizar/explicar o porquê, e dizerem que não gostam por ser uma "deturpação" da música do Bach, sem saberem (ou se esquecerem) que o próprio Bach adorava fazer isso, como é mais do que claro ao se ouvir (quase) qualquer uma das cantatas do Jotaésse, onde ele pega uma melodia que não é dele e a usa como base para sua música, como no coral do vídeo abaixo, uma das obras mais conhecidas por todo mundo que não gosta de música clássica. E não, não é necessário se acreditar em nada (nem em Shakespeare) para se gostar desse coral:


O procedimento de se pegar música alheia e jogar mais música por cima é uma das coisas mais comuns e antigas da música clássica, e acredito que, se não fosse isso, estaríamos condenados a ouvir cantochão pelo resto da eternidade. Não quer gostar da Ave Maria, não goste, mas não venha me dizer que o motivo é esse! Tadinho do Gounod... Ele só estava fazendo o que era comum se fazer desde o século IX, pelo menos, e que não deixou de acontecer desde então. É como alguém dizer que não gosta de "Renascer", cantada pela Zizi Possi, porque ela é uma "deturpação" do original "O Cisne", do Saint-Saëns:




É possível gostar das duas coisas ao mesmo tempo, creio... E se não gostar, também não tem problema, fique à vontade. Mas não diga que não gosta porque não é a versão "de verdade", pois você gosta de um monte de coisas que não são "de verdade", aposto!

Por falar em "O Cisne"/"Renascer" e Prelúdio em dó maior/Ave Maria, me lembrei de uma versão espetacular (para mim), da Ave Maria:


Como sempre, eu vou emendando uma ideia na outra e acabo me perdendo... Eu já tinha avisado neste post que eu caminho em círculos; eu juro que eu tento ser straight (pelo menos aqui no Blog), mas sempre acabo entrando pelo cano né? Falei , falei, falei, e acabei não chegando aonde eu queria, que era mostrar que em todo e qualquer período tem coisas boas, coisas ruins, coisas excelentes, coisas medíocres (medianas). Teremos que dar uma volta de mil anos pela música clássica se quisermos descobrir ao menos 1 ou dois exemplos excelentes de cada período, e isso vai levar um certo tempo (menos que 1.000 anos, espero), então vamos deixar para uma outra vez, ok?

Portanto, está na hora de terminarmos, ouvindo mais uma exemplo de "apropriação indébita" de música alheia. O coral Deum verum, de Étienne de Liège, do final do século IX, em que ele pega o canto gregoriano original e simplesmente adiciona outras vozes, em certos trechos, exatamente como o tadinho do Gounod fez:


Duvido que alguém dirá que é uma "deturpação"!

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