Você agora já sabe COM CERTEZA o que é música de câmara, certo? Parabéns pra você!, porque eu ainda tenho dúvidas! Mas vamos fazer de conta que a definição de "música de câmara" é simples e sem problemas e, já que é a primeira vez que iremos juntos para a câmara, comecemos só a 2 mesmo, e depois chamaremos outros para participar. Mas a 2 é bom, pode confiar!
Pode parecer que música de câmara para dois instrumentistas é a mais simples de todas, não é? Porém, devido justamente ao reduzido número de executantes, é também uma das mais complicadas. Explico-me (espero que consiga):
Existe, na música, uma coisa chamada registro, que significa o intervalo de notas que um instrumento (ou voz) é capaz de produzir. As vozes soprano, tenor, etc, cantam em registros diferentes (mais graves, mais agudos, mais "médios", etc). Com os instrumentos também acontece a mesma coisa, e cada família de instrumentos também tem, geralmente, membros de vários registros. As cordas têm, do mais grave para o mais agudo, contrabaixo, violoncelo, viola, violino. Por falar nisso, as antigas (atualmente ressuscitadas) violas da gamba também vinham em famílias, como nessa linda foto da família Gamba passando um domingo no parque. Faltou só a toalhinha xadrez!:
Até instrumentos que acreditávamos viver sozinhos (o saxofone, por exemplo), na verdade possuem famílias muitas vezes numerosas, mas pouco conhecidas, que não saem muito de casa:
São lindas as famílias de instrumentos! Eu queria ter todos! De todas as famílias! Mas como não posso, vou voltar para o assunto original, pois arranjar um mísero instrumentinho que esteja disposto a dividir a câmara com o meu próprio instrumento já anda difícil...
Eniuêis... Se apenas dois instrumentos vão para a câmara, há apenas duas possibilidades: ou os instrumentos são diferentes, ou são iguais (dãããã). Se são instrumentos de registros iguais, vai ficar lindo, mas tudo muito parecido, sem muitas opções para se variar; são tão parecido, mas tão parecidos, que as possibilidades vão logo se esgotar. Se são de registros diferentes, vai ficar lindo também, mas são tão diferentes, tão diferentes, que corre-se o risco de um estar tocando em Vênus e o outro estar tocando em Marte, com um monte de espaço vazio entre eles.
Para se resolver esse problema, adivinha o que usavam? O nosso já velho conhecido baixo contínuo, que não só preenchia os espaços vazios como também trazia variedade à sonoridade do grupo. Esse é um dos motivos pelos quais a música de câmara do Barroco para solo ou para duo geralmente não é nem solo nem duo, e vem acompanhada do B.C.
Porém, ai porém, no final do Classicismo o basso continuo estava desaparecendo, desaparecendo, até que desapareceu, e o repertório de música de câmara para dois instrumentos melódicos (iguais ou diferentes) praticamente desapareceu também.
Abre parênteses: instrumento melódico é aquele que, a principio, só consegue tocar uma nota de cada vez (quase todos os instrumentos), e harmônico é o instrumento capaz de tocar várias notas simultaneamente (os de teclado, os alaúdes, guitarras, violões, etc). Fecha parênteses.
Música de câmara apenas para dois instrumentos melódicos não é lá muito comum. Como estou com preguiça de procurar exemplo, nem vou tentar, e colocarei apenas 2 dos poucos de que me lembro, de época muuuuuuuito mais recente que o Classicismo. As Bachianas nº 6, para Flauta e Fagote, do Villa-Lobos (1º movimento, "Ária-choro"), para instrumentos diferentes (claro):
E o 2º movimento da Sonata para 2 Violinos, op. 56, do Prokofiev, para dois instrumentos iguais (claro de novo):
(Lindo!!!!!)
Mas agora vamos à combinação melódico+harmônico. Para a felicidade de todos os pianistas, naquela época (século XVIII) o pianoforte e o fortepiano começaram a fazer muito sucesso (para a infelicidade dos cravistas e dos demais instrumentistas, que até hoje são revoltados com o piano), e começaram a assumir a função do baixo contínuo. Mais ou menos isso, na verdade, pois o som do pianoforte e do fortepiano era mais potente e mais versátil que o do cravo e outros instrumentos de teclado antigos (à exceção do órgão, mas este estava confinado nas igrejas e teatros, e nunca foi considerado de câmara), e ele, o "pianofortista", começou a dominar a música de câmara, deixou de ser "enchimento" musical, e passou a ser protagonista.
Dessa maneira, a maior parte do repertório a 2 é para a combinação piano (ou seus ancestrais) + algum instrumento melódico. Como o piano era tão versátil e completo, os compositores o adoravam, e muitas vezes o instrumento melódico era parte dispensável da composição. Uma sonata para piano e violino do início do Classicismo podia muito bem ser tocada (e era) apenas ao piano, pois a parte do violino costumava ser apenas uma duplicação da melodia tocada pelo piano. O mesmo podia acontecer com um trio para piano, violino e violoncelo, onde o violino duplicava a melodia do piano, e o violoncelo, a linha do baixo (simplificando: aquela tocada pela mão esquerda do pianista). Claro que a sonoridade acabava prejudicada pela exclusão das cordas, mas nenhuma nota da música deixaria de ser tocada.
Como já vimos neste post, um dos fatores para tamanha versatilidade/indefinição/bagunça era o fato de se tentar apelar ao maior número possível de compradores de partituras. Os cubículos já não eram apenas aristocráticos; todo burguês que se prezasse também queria fazer música em sua própria casa, e a música de câmara dessa época, mais que todas as outras épocas, talvez, era dirigida principalmente a amadores. Os compositores faziam o possível para que suas músicas pudessem chegar ao maior número de lares, que não necessariamente tinham um cravo (ou outro instrumento de teclado) e mais um violino (ou flauta ou obóe, ou etc.), e mais um violoncelo (ou viola da gamba, ou fagote, etc, etc.). Escrevia-se música que posse passível de ser interpretada de várias diferentes maneiras, e cada câmara (ou salão aristocrático, ou tavernas, ou etc.) usava os instrumentos que tinha: "Se só tem tu, vai tu mesmo".
Os compositores conseguiram, pela primeira e última vez na história, levar música clássica ao vivo para todo mundo. A música "clássica" era tão "popular" que revistas semanais chegavam a publicar partituras como se fossem capítulos de novelas. Ó só que maravilha: toda semana você comprava uma edição de Caras e, ao invés de ganhar uma faca para churrasco, ganhava um movimento de música. No final do mês você tinha uma sonata inteirinha para tocar, além de ficar bem informado de todas as fofocas da cidade!
Essa música aí em cima é o 3º movimento da Sonata em ré menor, op. 14, nº 4, do Johann Schobert (com "o" mesmo, não é o Schubert!), para pianoforte e violino ad libitum. Como todo mundo notou, cadê o violino? Como todo mundo notou também: fez falta?
A Sonata para violino e piano nº 2, em ré maior, K. 7, do Mozart, está nessa categoria. Aliás, ela foi publicada originalmente como 'Sonata para teclado que pode ser acompanhada por um violino'. Ou seja: ad libitum, baby! E notem também que ela é para teclado (cravo, clavicórdio, pianoforte...); ainda não estamos no período "branco é branco, preto é preto".
Até hoje é comum os outros instrumentistas virarem para o pianista, durante um ensaio de, por exemplo, alguns trios do Haydn, e reclamarem que o pianista não está tocando direito; que ele (o pianista) está cobrindo o som dos outros instrumentos; e que aquilo é um trio, e não um solo, totalmente ignorantes de que as partes acessórias são eles, e não o piano. Até nessa gravação do Mozart que você (espero) acabou de ouvir, o violino age como se ele fosse o principal. Eu (note bem: EU) acho que está errado, mas outros vão discordar, claro. Resultado? Todo mundo fica bravo, e a culpa é sempre do pianista!
Tentando evitar o genocídio dos tecladistas (aposto que foi isso mesmo que aconteceu, à época), os compositores começaram a prestar mais atenção às características individuais de todos os instrumentos envolvidos, e aos poucos as partes individuais vão se diferenciando, até que aparecem sonatas para piano e intrumento obbligato: o instrumento melódico deixa de ser optativo (ad libitum), e passa a ser obrigatório. Os instrumentos melódicos vão se desligando da parte do teclado e se tornando independentes, apesar de o caminho não ter sido tanto de "evolução" quanto de "opção": os compositores escreviam num estilo ou no outro, indiscriminadamente. Até Mozart, no final de sua carreira, ainda escrevia sonatas onde o violino era coadjuvante, mesmo após já ter composto esta Sonata para violino e piano nº 32, em si bemol maior, K. 454, na qual os dois instrumentistas já tem função bem definidas, e a distribuição das partes é bem balanceada:
(Lindo!!! Lindo!!!)
Foi a felicidade geral, e todos, agora mais felizes, começaram a ir para a câmara com os tecladistas. Quando eu era mais jovem eu ia com todo mundo que me chamava: cantor, cantora, flautista, violinista, violoncelista, trompista, clarinetista, oboísta, etc, etc, etc. Bons tempos, aqueles... Só não fui para a câmara com fagotistas. Você já viu o tamanho do instrumento deles? É tão grande que já vem dobrado!
A 2 é muito gostoso mesmo! Ainda mais quando passamos por Mozart e Haydn e desembocamos em Beethoven e todos os outros que vieram depois. Tem sonatas para piano e "qualquer coisa", apesar de o violino nunca ter perdido a liderança. Os violinistas ficam todos orgulhosos disso, e nem notam o pianista sorrindo, discretamente, já que este continua sendo o mais requisitado!
Eu não ia colocar mais exemplos de sonatas para violino e piano, mas não é possível passar por esse repertório "a 2" sem ouvirmos ao menos o 1º movimento da Sonata nº 9, em lá maior, Op. 47, Kreutzer, do Beetho, aqui interpretado por dois "monstrinhos": minha "monstrinha" Yuja Wang, e Joshua Bell. Aumentem o volume!
Pare por aqui um pouco, e vá lá no IúTúbi ouvir os outros movimentos. Vale a pena!!!
Acabei também me lembrando de outra de minhas favoritas, a Sonata para Piano e Violino em lá maior, do César Franck. Esse é o 3º movimento, que é para se ouvir sozinho, no escuro, num silêncio absoluto, com as luzes apagadas, olhos fechados e, de preferência, de joelhos. Abaixo dele, os links para a sonata inteira, que é ainda mais linda que a Kreutzer do Beetho:
Depois de ouvirmos a sonata do Cesarzinho, e se alguém ainda quiser escutar qualquer outra coisa no mundo, vamos às "sonatas para piano e qualquer coisa menos violino", e comecemos com seu irmão maior, o violoncelo, no deslumbrante primeiro movimento da Sonata para Violoncelo e Piano, em mi menor, op. 38, de Brahms, interpretada por dois outros "monstrinhos", Mstislav Rostropovich e Sviatoslav Richter:
Até Chopin, que não costuma escrever para outros instrumentos além do piano, se rendeu ao cello, e sua única sonata que não é para piano solo é a Op. 65, em sol menor, para violoncelo e piano. Esse é o 1º movimento:
A irmã do meio da família do violino, a viola, nunca fez tanto sucesso quanto seus irmão, durante o período clássico (ou períodos posteriores, na verdade). Existem vários exemplos, claro, alguns muito lindos, porém este nunca foi um gênero muito comum de música de câmara a 2. Mas aqui vai o 1º movimento da Sonata para Viola e Piano, em dó menor, do Mendelssohn, que era à época um "velhinho" de 15 anos:
Os sopros, por falar nisso, também não têm um repertório tão extenso quanto as cordas. Não tenho certeza do porquê disso, mas suspeito que seja uma questão física: é muito difícil ficar meia hora soprando feito um maluco. Além de extremamente cansativos de serem tocados, alguns instrumentos de sopro ainda não são muito bons para a saúde, na verdade. No oboé, assim como em outros instrumentos de palheta dupla (tô com preguiça de explicar o que é isso, mas é fácil achar no Google), o pobre músico fica soprando seu instrumento através de um "apito" (eles vão me odiar, mas parece um apitinho mesmo!) que fica constantemente vibrando. É tanta vibração, mas tanta vibração, que acaba machucando os lábios, e é comum você ver oboístas (e outros "palhetistas duplos") chegarem ao final da apresentação com os lábios ensanguentados. Sério mesmo!
Com os trompistas, por sua vez, é comum aparecerem problemas nos dentes. A boca fica toda comprimida, enfiada num bocal de metal, e é tanta, mas tanta, pressão de ar que os dentes, com o tempo, tendem a amolecer. Novamente: é sério! Além do mais, as mulheres "sopristas" nem podem usar batom, pois os lábios têm que estar limpos e secos para poderem produzir a vibração do ar. Não basta soprar, também tem que fazer o ar vibrar! Não é surpresa, portanto, que o repertório solo dos sopros seja muito menor que o das cordas, que são praticamente incansáveis e não precisam respirar!
Os sopros tendem a aparecer geralmente em conjuntos maiores, onde podem se revezar e ter um merecido descanso de vez em quando. Mas isso não impede que existam exemplos de sonatas para piano e "sopro X", de todas as épocas, como a Sonata para Trompa e Piano, em fá maior, op. 17, do Beetho (1º movimento):
É... o mundo ficaria mais pobre sem ela... mas não muito! Felizmente existem opções mais interessantes para sonatas para piano e "sopro X", como essa Sonata para Trompa (ou Trompa alto, ou Saxofone) e Piano, do Hindemith (Viu? É de 1943, mas a liberdade de escolher o instrumento não desapareceu totalmente!). Com vocês, a "opção" com saxofone:
Temos também a lindíssima Sonata para Oboé e Piano, do Poulenc:
Poulenc, aliás, era um grande compositor para sopros, e há várias obras suas para diferentes instrumentos, como essa daqui, a Sonata para Clarineta e Piano (só o 2º movimento, "maravilhosamente lindo"):
Ou a Sonata para Flauta e Piano, que eu adoro, cujo 3º movimento já apareceu neste post aqui, mas que agora vai completa:
Ainda bem que existe essa sonata do Poulenc (e algumas outras), pois a maioria da música para flauta está, para mim, na categoria "Ai que bonitinho". Nada existe de mais "rococó-cócó-cócó" que música para flauta. São bonitinhas, divertidinhas, engraçadinhas, gostosinhas, mas poucas são as que não merecem um adjetivo terminado por inha. (E daqui a pouco eu vou levar uma flautada na cabeça, se algum flautista estiver lendo isto!)
Ó que "gracinha" este 1º movimento da Sonata para Flauta e Piano, em dó maior, do Mozart:
O Jotaésse Bach foi mais feliz em sua música para flauta, como fica obviamente ululante quando ouvimos sua Sonata para Flauta e Teclado em si menor, BWV 1030 (aqui, numa encarnação para flauta e órgão):
Ah, antes que eu me esqueça: apesar de até aqui estarmos ouvindo apenas sonatas, isso não significa que essa seja a única forma musical disponível na música de câmara para 2 instrumentos. Sonata é apenas uma das opções, usada geralmente para peças que possuem vários movimentos. Como música é uma bagunça mesmo, claro que existem sonatas com um só movimento, e composições com vários movimentos que não são sonatas: pode ser suíte, por exemplo; pode ser serenata; pode ser qualquer outra coisa que dê na telha do compositor. Posso simplesmente chamar de duo (ou dueto), e estamos resolvidos, como no Duo para Flauta e Piano, do americano Aaron Copland (1º movimento):
Quem sabe eu consiga me redimir definitivamente com os flautistas se eu colocar outra música que é para flauta, que não é sonata, e que não é apenas "bonitinha", as Variações sobre "Trockne Blumen", D. 802, do Schubert:
Já que estamos descobrindo composições que não são sonatas, aproveito e mostro também uma das combinações mais "esotéricas" da música de câmara para 2 instrumentos: contrabaixo e piano. Grande parte do repertório "solo" de alguns instrumentos menos "óbvios" (trombone, fagote, tuba, contrabaixo, etc) é dedicado ao ensino, e criado por compositores que eram especialistas nesses instrumentos. Poucas pessoas além desses instrumentistas conhece esse repertório "esotérico", mas às vezes algumas surpresas aparecem pela frente, como esta Elegia nº 1, para Contrabaixo e Piano, de Giovanni Bottesini, um compositor do século XIX que era um virtuose do contrabaixo, obviamente:
Mas acho que está bom, por hoje! Temos já música suficiente para render ao menos uma semana de boas audições (assim espero). Portanto, terminemos com outra combinação "esotérica", a Sonata para Violoncelo e Violão, do brasileiro Radamés Gnattali:
E não percam o próximo episódio dessa série: "A 2 é bom, mas a 3 é melhor ainda!"
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