sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Uma câmara para 2, ou 3, ou 4, ou 5, ou 6, ou 7...

Música de câmara, como a entendemos hoje, se refere àquela executada por um número reduzido de intérpretes, cada um deles executando uma "parte" da música (partitura vem daí: a parte que você toca). Pode ter, sei lá, nove músicos, mas cada um tem uma parte diferente, e ninguém toca a mesma coisa. Digamos que seja um sexteto de cordas, para 2 violinos, 2 violas e 2 violoncelos: apesar de os instrumentos estarem em duplas, cada um deles terá sua própria parte, diferente das demais (6 partes diferentes).

Mas nem sempre foi assim... Música de câmara, no princípio, era denominada musica cubicularis, e significava simplesmente que era para ser executada em recintos privados. As outras categorias eram musica ecclesiastica e musica theatralis

Se a música era feita para ser apresentada em locais privados, era de câmara. Podia ser instrumental, podia ser vocal. Podia ser qualquer coisa, desde que fosse executada no cubículo de alguém. Também podia ter qualquer número de intérprete, dependendo apenas do tamanho do cubículo em questão. Como os recintos privados costumavam ser menores que igrejas e teatros, geralmente os grupos também eram menores, claro, pois menos volume de som era necessário para se encher o espaço.

De acordo com esta definição os Concertos Brandenburgueses, do nosso amigo Jotaésse Bach, são música de câmara, apesar de não mais entendermos concertos como de câmara. Além do mais, cada uma das partes desses Concertos pode ser executada por mais de um músico (à exceção de algumas partes para solistas). Talvez pudéssemos chegar a um meio-termo, e dar o nome de concertos de câmara a essas criaturas. Muita gente chegou a essa mesma conclusão (saco... eu não sou único em nada...), e é comum vermos rótulos como Concerto de câmara, Sinfonia de câmaraOrquestra de câmaraCantata de câmara, para designar a música composta para pequenos grupos onde pode haver uma ou mais partes executadas por mais de um músico. O adjetivo pequenos também é relativo, claro, pois existem orquestras de câmara com 50 - ou mais - músicos).

Com essa nova definição, porém, jogamos fora o sentido original de música "de câmara", e nada me impede, atualmente, de escrever uma ópera de câmara (existem algumas, por falar nisso): ela vai ser como uma ópera "de verdade", só que para menos instrumentos, talvez com menos cantores, um coro menor (se tiver coro, claro), ou duração menor que o padrão (que não existe). Vai ser theatralis, mas vai ser cubicularis.

Da mesma maneira, as antigas sonatas da chiesa, que são para pequenos grupos, deixaram de ser de igreja e passaram a ser consideradas de câmara, atualmente.

Mais uma complicação: se uma música necessita de dois ou mais músicos para ser executada, a consideramos (me recuso a escrever consideramo-la) de câmara, mas se tem um só, já a colocamos em outro compartimento, reservado aos solos e, ao invés de irmos à um recital de música de câmara, iremos, nesse último caso, a um recital de 'instrumento X'.

Portanto, surpresa!, chegamos mais uma vez à conclusão de sempre: música é uma bagunça!

Então, antes de falarmos de música de câmara (incrível!, o assunto nem começou ainda!), façamos um trato: vamos usar a definição mais comum, e chamemos "de câmara" aquela música para 2 ou mais instrumentistas, onde há apenas um músico para cada uma das partes. Deixemos de fora, portanto, toda a música vocal e toda a música em que há parte(s) executada(s) por mais de um instrumentista.

Agora ficou fácil, não ficou?

Mais ou menos, porque nem tudo é preto ou branco, e é fácil encontrarmos obras, principalmente do século XVIII, que são apresentadas hoje em dia como música de câmara (no sentido atual, com um músico por parte) mas que podiam, originalmente, também ser apresentadas com cada parte executada por mais de um músico, dependendo da ocasião. Nada impedia que uma peça composta para 4 instrumentos (digamos, um violino, um oboé, uma viola e um violoncelo) fosse executada por 8 músicos, com uma dupla de instrumentos para cada parte, ou com 7 músicos, com as cordas tocando em duplas, e apenas um oboé. Ou com 6 músicos... ou com 12... ou com qualquer número que se achasse necessário, de acordo com a quantidade de músicos disponíveis, a vontade do responsável pela execução, ou ainda do volume de som necessário para encher se o cubículo em questão.

Além do mais, as formas musicais não nasceram prontas, obviamente, e existe um imenso repertório de música de câmara, do Barroco até o Classicismo (período em que os principais gêneros atuais da música de câmara estavam evoluindo) que tem características muito instáveis, com relação à formação (número e tipos de instrumentos).

Para começo de conversa, muitas das sonatas solo do Barroco são, na verdade, para no mínimo 2 executantes: o instrumento solista propriamente dito (violino, flauta, oboé, etc...), e o grupo do basso continuo (o acompanhamento, chamemo-lo - agora me deu vontade de usar a próclise - assim), que podia ser um cravo, ou um alaúde, ou um órgão, ou um cravo + um violoncelo, ou um cravo + uma guitarra + um violoncelo, e por aí vai...

Um exemplo de música de câmara solo é a Suíte para viola da gamba nº 1, de Antoine Forqueray. "Ouvejamos" um dos seus movimentos, "La Couperin", em 4 encarnações diferentes:

(Viola da gamba + cravo)

(Viola da gamba + alaúde)

(Vola da gamba + cravo + alaúde + outra viola da gamba)

Não me pergunte qual é "o original", pois você vai ficar sem resposta! Como se não bastasse, ainda temos isso aqui, para solo de cravo:


O mesmo acontecia com a trio-sonata. É trio, mas pode ser quarteto, quinteto. O importante é que existem dois solistas (e não 3), sendo o "trio" completado pelo basso continuo que, como vimos, pode ser composto por um ou mais instrumentos, como nessa Trio-sonata em si menor, op. 1, nº 6, de Arcangelo Corelli. É uma sonata da chiesa (de igreja - mas hoje virou de câmara)  para dois violinos solistas + o grupo do basso continuo, nessa encarnação composto por órgão + violoncelo + teorbo (que é um nome mais ou menos genérico para um tipo de alaúdão com complexo de girafa):


E aqui está o teorbo, para quem quiser saber que cara tem a criança:


Porém, nem só de confusão numérica vive a música, e encontramos também música solo que é realmente para um só instrumento, como é o caso das celebérrimas Suítes para Violoncelo, do Jotaésse. Claro que, segundo nossa definição atual, música de câmara é só quando tem dois ou mais instrumentos, não é? Mas, nesse caso, quase todo mundo abre exceção. Não sei se abrem exceção porque é do Bach, ou porquê é "chique" considerar as Suítes para Violoncelo, assim como as Sonatas e Suítes para Violino, como música de câmara...

Pensando bem, acho que é preconceito mesmo. Quase todo mundo que eu conheço considera música solo (qualquer uma) como de câmara, a não ser que seja para instrumento de teclado! No caso de teclado (qualquer um), já não vale mais considerar como de câmara! Irritante, eu acho, mas, se eu pudesse mudar as pessoas eu próprio também seria diferente; então deixa como está...

Êniuêis...Aqui vai uma "palhinha" da Suíte nº 1, em sol maior, para violoncelo solo, BWV 1007 (só o Prelúdio), do Jotaésse, numa lindíssima interpretação:


Voltemos, porém, ao assunto.

Do mesmo modo que, muitas vezes, é difícil descobrir o número "certo" de executantes da música de câmara dessa época (do Barroco até o Classicismo pré-Beetho), é também difícil saber quais os instrumentos são os "corretos".

Em primeiro lugar, nós atualmente somos muito "branco é branco, preto é preto", mas a música daquela época achava que "a mulata é que era a tal". Assim como o baixo contínuo podia ser composto por uma (quase) infinidade de instrumentos, os solistas também, muitas vezes, podiam mudar: se eu tenho só um violino disponível, mas eu preciso de dois para tocar essa trio-sonata, eu vou chamar minha amiga flautista, que vai tocar aquilo que o outro violinista tocaria, e estamos resolvidos!

Isso era comum, tão comum, mas tão comum mesmo, que a música instrumental provavelmente nem existiria se não fosse essa característica intercambiável da música daquela época. Uma das razões para o aparecimento da música instrumental, segundo rezam os especialistas, foi justamente essa possibilidade de se trocar voz por instrumento numa canzona polifônica (com várias vozes), por exemplo. Faltou cantor? Vamos colocar um oboé no lugar! Faltou outro cantor? Vamos por uma flauta!

Daí foi um pulo para a música instrumental pura: Faltaram TODOS os cantores? Vamos trocar tudo por instrumentos; e toca pra frente porque o show não pode parar! Se não tem ninguém para cantare, vamos colocar gente para sonare. E se alguém suspeitou que essa é a grande diferença entre uma cantata e uma sonata, acertou!

Outro motivo para a confusão (quase) generalizada é que, desde o início do século XVI, quando começam a surgir as primeiras edições impressas de música, todo mundo (compositores e editores) queria ganhar o máximo possível de dinheiro com cada uma das edições, e era comum lançarem no mercado volumes com títulos como Primeira coleção de Madrigais e Motetos a 5 partes: para violas da gamba ou vozes (um volume de peças do compositor Orlando Gibbons). Foi publicada, na verdade, em 1612, mas essa bagunça era comum desde há muito!

Aqui estão exemplos de algumas possibilidades para a execução do madrigal "The Silver Swan" (que é a segunda peça dessa coleção daí de cima):






Aí em cima tem versões só com vozes (uma para 5, outra para 5.000), e uma versão com voz solista e instrumentos. Não encontrei nenhum vídeo apenas com violas da gamba, mas encontrei outro com um grupo de instrumentos de metal. Provavelmente os puristas irão gritar, mas, sinceramente, se o próprio Gibbons achava que voz ou viola da gamba dava no mesmo, não vejo nada de errado em também mudar o tipo de instrumento:


Essa confusão proposital com relação à instrumentação específica de muitas obras continua por muito tempo, e fica pior ainda quando o pianoforte aparece em cena. Daí é uma profusão de Peças para Cravo ou Pianoforte e, até a época de Beethoven, era comum você sair à rua, em Viena, e ouvir todo mundo tocando Mozart, Haydn, Beethoven no cravo, por mais estranho que nos pareça! A situação se complica ainda mais quando percebemos que o termo alemão Klavier significa apenas instrumento de teclado. Até hoje muitos especialistas se estapeiam, discutindo se determinadas peças do Cravo Bem-Temperado (que na verdade é Teclado Bem-Temperado), do Jotaésse, são para cravo, para órgão, clavicórdio, virginal...

Quer ver como não importa tanto assim o instrumento? Aqui estão 3 "versões" diferentes do Prelúdio e Fuga em fá menor, do primeiro volume do Teclado Bem-Temperado:

Cravo:


Órgão:


E vai com piano também! Se órgão e cravo, tão totalmente diferentes em termos de sonoridade, servem, não sei porquê o piano não pode também servir! (e os puristas gritam de novo...):


Saímos, de novo, da música de câmara. Mas foi só para mostrar que sua instrumentação nem sempre foi tão definitiva, rígida, imutável como imaginamos. Apenas lá pelo final do Classicismo (1780 pra frente, mais ou menos) é que os diversos gêneros que hoje são mais facilmente reconhecidos como "música de câmara" assumem forma mais ou menos fixa, e temos as sonatas para piano e 'instrumento X', trios para piano, violino e violoncelo, quartetos de cordas, quintetos de cordas, quintetos de sopros, etc. Está na hora, portanto, de fazermos uma pausa para digerirmos esse "angu de caroço", antes de continuarmos com o assunto!

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