segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Estilistas na fase oral 6 : século XIX 2.0

E agora eu estou no sal novamente! Quero só ver como é que eu vou conseguir destrinchar a quantidade assombrosa de música vocal de câmara e de teatro do século XIX.

Por falar em quantidade assombrosa, no post anterior eu esqueci de comentar que, apesar de ter mostrado obras (relativamente) desconhecidas, todas elas eram de compositores famosos até hoje, e deixei de escanteio montanhas de compositores que atualmente só são conhecidos por meia dúzia de pessoas. 

Você se lembra daquele filme? Aquele! Com aquele diretor que foi casado com aquela atriz, que fez aquele filme que passou naquele cinema e que a gente viu naquele dia em que nós tínhamos tinha ido à casa daquele amigo daquele seu ex-namorado! Aquele filme, onde tinha aquela música daquele compositor, o Luigi Arditi,  lembra?


Poizé... E o Arditi, dentre os praticamente desconhecidos, é um dos mais famosos! Alguns outros também estão incluídos nessa categoria de "famosos": Theodor Kirchner, Giuseppe Bottesini, Joseph Joachin, Jean-Baptiste Arban, Franz von Suppé, Charles-Valentin Alkan, Fanny Mendelssohn (irmã do Felix), Alexander Dargomyzhsky, Ferdinand David, etc, etc, etc... Sem contar aqueles que morreram (provavelmente) para todo o sempre!

Todo mundo, àquela época (todo mundo com certo poder aquisitivo, claro), tinha um piano em casa. Os que não tinham piano, tinham um violino, uma viola, um cello, uma flauta. Aqueles que não tinham nem isso, pelo menos tinham boca e podiam cantar! Mais importante ainda: NINGUÉM TINHA VITROLA, e todo mundo queria ouvir música em casa. Resultado: música de câmara, tanto puramente instrumental quanto vocal, era feita a rodo; você comprava um peixe e ele vinha embalado numa partitura para voz e piano. Só na Alemanha já temos as centenas de canções do Schubert, mais as canções de Schumann e Brahms, e esse trio já seria suficiente para encher o mundo com boa música; mas ainda temos toneladas de canções francesas, inglesas, espanholas, russas, tchecas, húngaras, norte-americanas, brasileiras, argentinas, mexicanas, finlandesas, irlandesas, polonesas, etc, etc, etc.

Como ninguém tem tempo ou paciência para ouvir tudo e tentar chegar a alguma conclusão sobre o que está além do patamar de meramente sofrível, não serei eu que me aventurarei, e teremos que nos contentar com aqueles compositores que melhor resistiram (por qualquer motivo) à passagem do tempo. Claro que, como sempre, vou tentar mostrar coisas menos "populares", mas não será possível sair muito do círculo central do Paraíso...

Então, sem mais delongas!

Um dos gêneros mais comuns de música vocal de câmara "para se fazer em casa" era, obviamente, aquela para piano e voz. Nós praticamente só ouvimos canções para piano e uma voz, mas pequenas canções para piano e 2, 3, 4 vozes eram extremamente comuns:

"Aus Meinen Tränen Spriessen", da Fanny Mendelssohn, para piano e duas vozes:


Aus meinen Tränen sprießen
Viel blühende Blumen hervor,
Und meine Seufzer werden
Ein Nachtigallenchor.

Und wenn du mich lieb hast, Kindchen,
Schenk' ich dir die Blumen all',
Und vor deinem Fenster soll klingen
Das Lied der Nachtigall.

 E, em inglês:

From my tears sprout forth
Many blooming flowers,
And my sighing become joined with
The chorus of the nightingales.

And if you love me, dear child,
I will send you so many flowers;
And before your window should sound
The song of the nightingale.

Obviamente todos conhecem inúmeras canções (lieder) do Schubert, mas suas canções para mais de uma voz são bem menos conhecidas, apesar de serem também lindas, como a "Licht und Liebe", D. 352, também para piano e duas vozes:


Liebe ist ein süßes Licht.
Wie die Erde strebt zur Sonne
Und zu jenen hellen Sternen
In den weiten blauen Fernen,
Strebt das Herz nach Liebeswonne;
Denn sie ist ein süßes Licht.

Sieh, wie hoch in stiller Feier
Droben helle Sterne funkeln:
Von der Erde fliehn die dunkeln,
Schwermutsvollen trüben Schleier.
Wehe mir! [doch]1 wie so trübe
Fühl' ich tief mich im Gemüte,
Das in Freuden sonst erblüte,
Nun vereinsamt, ohne Liebe.

Liebe ist ein süßes Licht.
Wie die Erde strebt zur Sonne
Und zu jenen hellen Sternen
In den weiten blauen Fernen,
Strebt das Herz nach Liebeswonne:
Liebe ist ein süßes Licht.

Versão em inglês:

Love is a sweet light
 As the Earth yearns for the su
 And for each bright star
 In the wide blue faraway
 So yearns the heart for the joy of Love
 For it is a sweet light.

 See how high, in silent celebration
 Far over there, bright stars sparkle!
 From the earth they flee, [from] that dark
 Confusion-filled, troubled veil.
 Woe is me, how troubled
 I feel, deep in my soul,
 Which in joy once bloomed;
 Now made desolate, without Love.

 Love is a sweet light
 As the Earth yearns for the sun
 And for each bright star
 In the wide blue faraway
 So yearns the heart for the joy of Love:

 Love is a sweet light.

Dentre os exemplos de outras combinações de vozes que Schubert usava temos "Ständchen" (Serenata), D. 920, para piano, contralto e coro masculino:



Zögernd, leise,
In des Dunkels nächt'ger Hülle
Sind wir hier.
Und den Finger sanft gekrümmt,
Leise, leise,
Pochen wir
An des Liebchens Kammerthür.

Doch nun steigend,
Schwellend, hebend,
Mit vereinter Stimme, laut
Rufen aus wir hochvertraut:
Schlaf du nicht,
Wenn der Neigung Stimme spricht!

Sucht' ein Weiser nah und ferne
Menschen einst mit der Laterne;
Wie viel seltner dann als Gold,
Menschen uns geneigt und hold?
Drum, wenn Freundschaft, Liebe spricht,
Freundin, Liebchen, schlaf du nicht!

Aber was in allen Reichen
Wär' dem Schlummer zu vergleichen?
Drum statt Worten und statt Gaben
Sollst du nun auch Ruhe haben.
Noch ein Grüßchen, noch ein Wort,
Es verstummt die frohe Weise,
Leise, leise,
Schleichen wir uns wieder fort!

E, em inglês:

Softly, quietly,
in the dark silence of night
we approach.
With a gently bent finger,
quietly, quietly,
we knock
on darling's door.

Presently,
rising, swelling,
lifting our voices, loudly
we exclaim, intimately:
Do not sleep,
when love's voice speaks.

Did not a wise man once look high and low
for humans with a lantern?
How much rarer than gold
are people who like us?
So when friendship, love are speaking,
dearest, darling, don't you sleep.

But what in all the world
could be compared to slumber?
So instead of words and gifts
you shall have your peace.
One more greeting, one more word,
the cheerful song falls silent;
softly, quietly,
we slink away.

Quer escutar mais uma canção diferente? Que tal, também do Schubert, a lindíssima "Der Hirt auf dem Felsen" (O Pastor Sobre o Rochedo), D. 965, para voz, piano e clarineta?


Wenn auf dem höchsten Fels ich steh',
In's tiefe Tal hernieder seh',
Und singe.

Fern aus dem tiefen dunkeln Tal
Schwingt sich empor der Widerhall
Der Klüfte.

Je weiter meine Stimme dringt,
Je heller sie mir wieder klingt
Von unten.

Mein Liebchen wohnt so weit von mir,
Drum sehn' ich mich so heiß nach ihr
Hinüber.

In tiefem Gram verzehr ich mich,
Mir ist die Freude hin,
Auf Erden mir die Hoffnung wich,
Ich hier so einsam bin.

So sehnend klang im Wald das Lied,
So sehnend klang es durch die Nacht,
Die Herzen es zum Himmel zieht
Mit wunderbarer Macht.

Der Frühling will kommen,
Der Frühling, meine Freud',
Nun mach' ich mich fertig
Zum Wandern bereit.

E em inglês:

When, from the highest rock up here,
Down to the valley deep I peer,
And sing,

Far from the valley dark and deep
Echoes rush through, in upward sweep,
The chasm.

The farther that my voice resounds,
So much the brighter it rebounds
From under.

My sweetheart dwells so far from me,
I hotly long with her to be
O'er yonder.

I am consumed in misery,
I have no use for cheer,
Hope has on earth eluded me,
I am so lonesome here.

So longingly did sound the song,
So longingly through wood and night,
Towards heav'n it draws all hearts along
With unsuspected might.

The Springtime is coming,
The Springtime, my cheer,
Now must I make ready
On wanderings to fare.


O problema, agora, será decidir como continuar com o assunto; quase tudo o mais parecerá feio, em comparação...

Exagero meu, como sempre, pois há muitos outros compositores que conseguem competir com Schubert neste gênero (apesar de quase nunca conseguirem ultrapassá-lo). Dentre esses compositores, alguns dos melhores e mais conhecidos são Brahms e Schumann (como eu já disse), porém nós os deixaremos de lado (por hora) e iremos procurar coisas menos conhecidas. 

Dentre os alemães "famosos", um dos principais é o Hugo Wolf, que, infelizmente, frequenta mais os livros de história da música que o repertório vivo. Não consigo entender o porquê... Todos os músicos o adoram, mas poucos se dignam a apresentá-lo.

Wolf  tinha o costume de agrupar suas canções em livros, e um deles é o Mörike-Lieder, sobre poemas de Eduard Mörike. Estas são as duas primeiras canções deste livro, "Der Genesene and die Hoffnung" e "Der Knabe und das Immlein" (quem quiser acompanhar o texto, tem todos eles AQUI):


Nós já ouvimos um pouco da chanson francesa quando falamos do Henri Duparc, que ainda pertence ao Romatismo, porém não precisaremos dele hoje, pois o repertório francês desse período deve ser no mínimo tão grande quanto o alemão. E mais divertido também, eu acho!

Eu queria colocar exemplos menos conhecidos, mas não vou resistir à tentação de incluir a "Chanson d'amour", do Gabriel Fauré, umas das mais "populares", e que eu adoro:


J'aime tes yeux, j'aime ton front,
Ô ma rebelle, ô ma farouche,
J'aime tex yeux, j'aime ta bouche
Où mes baisers s'épuiseront.

J'aime ta voix, j'aime l'étrange
Grâce de tout ce que tu dis,
Ô ma rebelle, ô mon cher ange,
Mon enfer et mon paradis!

J'aime tout ce qui te fait belle,
De tes pieds jusqu'à tes cheveux,
Ô toi vers qui montent mes voeux,
Ô ma farouche, ô ma rebelle

Batido, mas lindimáis!

Outra chanson linda do Fauré é "Après un rêve":



Dans un sommeil que charmait ton image
Je rêvais le bonheur, ardent mirage;
Tes yeux étaient plus doux, ta voix pure et sonore
Tu rayonnais comme un ciel éclairé par l'aurore;
Tu m'appelais, et je quittais la terre
Pour m'enfuir avec toi vers la lumière;
Les cieux pour nous entr'ouvraient leurs nues;
Splendeurs inconnues, lueurs divines entrevues...
Hélas, hélas, triste réveil des songes !
Je t'apelle, ô nuit, rends-moi tes mensonges;
Reviens, reviens radieuse

Reviens, ô nuit mystérieuse

Ou, ainda, "Mandoline":


Les donneurs de sérénades
Et les belles écouteuses
Échangent des propos fades
Sous les ramures chanteuses.

C'est Tircis et c'est Aminte,
Et c'est l'éternel Clitandre,
Et c'est Damis qui pour mainte
Cruelle [fait]1 maint vers tendre.

Leurs courtes vestes de soie,
Leurs longues robes à queues,
Leur élégance, leur joie
Et leurs molles ombres bleues,

Tourbillonnent dans l'extase
D'une lune rose et grise,
Et la mandoline jase
Parmi les frissons de brise.

Acho que já deu para notar que eu gosto "um pouco" do Fauré, né? Confesso que também adoro uma criatura meio esquisitinha, Emmanuel Chabrier, com suas canções "Joli Dragon", "Chants d'oiseaux", "Villanelle des petits canards", "Ballade des gros dindons", e otras cositas más. Adoro, mas é quase impossível encontrar alguma gravação (ou vídeo) que preste, e a única versão legal que encontrei é está aqui, para a "Pastorale des cochons roses":


Chabrier parece um pouco o "tio" do Eric Satie, que, por sinal, o adorava. Sua música de câmara quase nunca é muito séria, mas é sempre bem feita, divertida, interessante. Também tem as coisas sérias, mas estas ficam reservadas para obras de maior envergadura, como óperas e música orquestral, da qual falaremos outro dia (talvez). 

Mas este post já está grande demais, e ainda estamos na França! Pulemos, pois, para o outro extremo da Europa, para nos encontrarmos com Modest Mussorgsky e suas deslumbrantes Canções e danças da morte:


(Quem quiser o texto original em russo - mas também tem versões em outros idiomas - ele pode ser encontrado AQUI.)

O Mussogsky devia ser um pessoa "muito pra cima"! Um de seus outros ciclos de canções tem o título - muito apropriado - de Sem Sol, e é o "Hino Oficial da Depressão", tão "feliz" quanto as canções daí de cima:




(Os textos, em russo, alemão ou inglês, pode ser encontrado AQUI)

Um pouquinho mais à esquerda do mapa temos o Norueguês Edvard Grieg, com seu cliclo Noruega, op. 58, cinco canções sobre poemas de John Olaf Paulsen, para voz e piano:


Atualização: desapareceram do YouTube, e não sobrou nenhuma...

Quem quiser, novamente, pode acompanhar os textos: , , , , .

Existe um outro ciclo dele, Romances e Canções, bem legal, onde a maioria dos poemas são do Hans Christian Andersen, mas não consegui encontrá-lo em lugar nenhum...

E, para não dizer que a Inglaterra nunca fez nada de interessante entre Henry Purcell e Benjamin Britten, vamos ouvir "The Snow", para coro feminino, 2 violinos e piano. Geralmente essa canção é apresentada em concerto, no teatro, mas eu a incluiria em "música de câmara". Enfim... ela está naquela zona nebulosa, e minha opinião vale tanto (ou tão pouco) quanto qualquer outra. Não importa o que seja, pois continuará sempre bonita:



O snow, which sinks so light,
Brown earth is hid from sight,
O soul, be thou as white,
O soul, be thou as white as snow,

O snow, which falls so slow,
Dear earth quite warm below;
O heart, so keep thy glow,
Beneath the snow.

O snow, in thy soft grave,
Sad flowers the winter brave;
O heart, so soothe and save, as does the snow.

The snow must melt, must go,
Fast as water flow.
Not thus, my soul, O sow,
Thy gifts to fade like snow.

O snow, thou'rt white no more,
Thy sparkling too, is o'er;
O soul, be as before, was bright the snow.

Then as the snow all pure,
O heart be, but endure;
Through all the years full sure,

Not as the snow.

Já que chegamos à beiradinha da Europa, vamos pular para o outro lado do Atlântico, antes que este post vire um livro, e ouvir um pouquinho dos brasileiros Alberto Nepomuceno e Carlos Gomes:

Nepomuceno, "Coração Triste", sobre poema de Machado de Assis:


Também dele, "Cantilena", sobre poema de Henrique Coelho Neto:


E ainda uma terceira, "Trovas", op. 29, nº 1, com poema de Osório Duque Estrada:


Nosso mais importante compositor do século XIX, Carlos Gomes, escreveu pouquíssimas canções de câmara, mas "Quem Sabe?", sobre poema de Francisco Bittencourt Sampaio, chegou a ser tão popular que praticamente migrou para a categoria "música folclórica":


Também tem a singela e linda "Suspiro d'Alma", sobre um poema de Almeida Garret:


(Apesar de o poema completo ter três estrofes, em todas as versões que eu conheço só se canta a primeira, não sei porquê. Gostaria de conhecer o original (se é que existe), só para saber se é para ser assim mesmo ou se é para se cantar o poema inteiro, simplesmente repetindo a música para as demais estrofes.)

Apesar de já ser do século XX, a música do também brasileiro Joaquim Antônio Barrozo Netto ainda é completamente romântica, então acho que podemos inclui-lo aqui, com sua linda "Canção da Felicidade":


Joaquim Antonio Barrozo Netto é outra criatura que praticamente sumiu do mapa de compositores, e encontrar alguma coisa sobre ele, mesmo no Gúgou, é difícil, pois nem mesmo o seu nome costuma aparecer correto: às vezes aparece Barroso Neto, ou Barrozo Neto, ou Barroso Netto. Ele sobrevive, principalmente, por conta dos pianistas, devido às inúmeras edições de suas revisões de livros de estudo de piano (do Czerny, por exemplo), que todo aluno de piano já encontrou pela frente.

Não falamos até agora dos italianos, pois, durante o século XIX, eles só pareciam interessados em ópera, e tudo o mais foi relegado a segundo (ou terceiro, ou quarto) plano. Um dos poucos que ainda sobrevivem, na música vocal de câmara, é justamente um dos mais famosos compositores operísticos, o Gioachino Rossini.

As três canções de La Regata veneziana são apenas um pequeno exemplo de suas muitas canções:

(O texto das canções estão AQUI)

Fora Rossini, pouca coisa mais sobrevive fora da Itália. Apesar de tudo, algumas das canções mais populares do planeta, por incrível que pareça, são "Romântico-italianas", apesar das datas (relativamente) recentes. Com vocês, a canção de 1898, do compositor Eduardo di Capua:


E a canção de 1904, de Fermo Dante Marchetti, em sua versão original francesa:


E na versão que fez sucesso mundial (a primeira de muitas), em inglês:


Mas acabamos saindo do assunto música de câmara, e interromperemos por hoje nossa programação!

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Estilistas na fase oral 5 : século XIX

Aimeudeus... Vamos lá, a mais outro capítulo de nossa saga interminável, mostrando um pouco da música do século XIX. Vai ser difícil descobrir coisas diferentes para colocar aqui neste post, mas vou tentar, prometo!

Claro que este será um post (quase) desnecessário, pois todo mundo já conhece bilhões de exemplos dessa época. De Schubert a Rimsky-Korsakov, passando por Berlioz, Chopin, Liszt, Verdi, Wagner, Tchaikovsky, este é o período mais popular de toda a história da música. Ao mesmo tempo, por ser tão popular, é um dos que mais sofrem preconceitos, e uma das espécies mais comuns de estilistas é justamente o de pessoas que não suportam música do século XIX. 

No post sobre Classicismo eu disse que a música vocal de câmara não era, comparativamente, muito importante. Agora, no século XIX, ela volta com toda a força, com a proliferação de chansons francesas, lieder alemães, além de outras formas vocais de câmara (canções típicas dos diversos países, música coral, serenatas, etc). Para compensar, parece que a música vocal de igreja é que acabou ficando em segundo plano. Ainda se produzia missas e outros tipos de música sacra vocal (Stabat Mater, Pater Nostri, Ave Marias, etc), mas, no todo, é um estilo que não atraía muito a atenção dos compositores, que reservavam suas forças para a música sinfônica ou de câmara, ou para a ópera, mais popular do que nunca.

As missas do Classicismo eram muito criticadas por serem alegres demais, e as missas do século XIX, como operísticas demais. Ó só como não deixam de ter razão:

Agnus Dei, da Petite Messe solennelle, de Gioachino Rossini:


Escrevia-se óperas demais, e era difícil escapar dessa influência. Além do mais, o século XIX, dominado pelo Romantismo, era o século do subjetivismo, do compositor individual, único, especial, do "eu, eu, e só eu mesmo", o que, na minha opinião, não combina muito com a música sacra. Apesar de tudo, muita coisa boa existe, se você souber onde procurar (no IúTúbi, claro).

Deutsche Messe, D. 872, do Franz Schubert, escrita num estilo propositadamente simples, para ser cantada pela própria congregação durante o culto, e cujo texto são hinos (em alemão) de autoria Johann Philipp Neumann:


Outra obra (relativamente) desconhecida de Schubert é seu Stabat Mater em fá menor, D. 383, simplesmente deslumbrante. Diferentemente da maioria, essa versão usa um texto em alemão (de Friedrich Klopstock) adaptado do original latim. Aqui, só a primeira parte da obra:


Também deslumbrante, e também (quase) desconhecido, é o oratório Christus, S. 3, do Franz Liszt, que, apesar de suas mais de 3 horas de duração, e de ser para grande orquestra, solistas e coro, consegue, ainda assim, ser intimista. Quem quiser se aventurar a ouvi-lo inteiro, aqui estão as três partes, sem libreto, infelizmente:

- 1º parte, Oratório de Natal:


- 2º parte, Epifania:


- 3ª parte, Paixão e ressurreição:


Outra maravilha escondida é o oratório L'Enfance du Christ, do Hector Berlioz:


(O libreto está AQUI, para quem quiser acompanhá-lo)

Algumas obras sacras do século XIX acabaram entrando no repertório (ou na coleção de CDs dos ouvintes), como o Requiem e as Quattro pezzi sacri (ambos do Verdi), o Requiem do Fauré, o Requiem Alemão, do Brahms, as Missas do Bruckner. A maioria, porém, praticamente sumiu na poeira no tempo, infelizmente. Mas a razão não é apenas musical: a música para a igreja, depois de tantas "reformas" e "contra-reformas", principalmente no século XX, foi se tornando cada vez mais simples, mais comum, mais desimportante, totalmente irrelevante para a história da música. Resultado: muito da música sacra séria deixou de ter uso litúrgico, migrando para a categoria música para o teatro, que, por sua vez, já estava abarrotada de toneladas de música sinfônica e operística. Tadinha da música sacra... não sobrou espaço (nem tempo) para ela.

Vamos, porém, tentar resgatar mais alguns exemplos!

Charles Gounod, Messe solennelle à Sainte Cécile:


Tem quem goste, mas, na minha opinião, parece a versão musical das flores de plástico que enfeitam tantas igrejas hoje em dia... Muito mais importante, lindo, maravilhoso, é o oratório Les Béatitudes, de César Franck. Aqui, um trecho da "Septième béatitude: Bienheureux les pacifiques":


E, aqui, o oratório inteiro. A gravação não é lá grandes coisas, mas foi a única versão integral que encontrei:


Também foi quase impossível encontrar o libreto online, e a única opção que descobri foi esta AQUI. Les Béatitudes é umas das obras mais importantes do César Franck, e uma das obras sacras mais espetaculares do século XIX, e a dificuldade em encontrá-la na Internet é uma boa indicação do desinteresse quase geral nesse repertório. Ainda bem que aqui, pelo menos, a gente consegue conhecer um pouco dele!

Da categoria "menos desconhecida mas também quase esquecida", temos o Stabat Mater do tcheco Antonín Dvorák, espetacularmente lindo (e dramático). O primeiro trecho (para se ouvir de joelhos!) está aqui: 


E ele inteiro, aqui:


Para terminarmos o post de hoje - antes de chegarmos à conclusão de que música sacra era o gênero mais popular do século XIX - vamos ouvir só mais uma obra: o lindo, calmo e feliz Oratorio de Noël, Op. 12, de Camille Saint-Saëns, que, infelizmente, também sumiu na poeira dos tempos.



Outro dia voltaremos com os demais gêneros de música vocal do século XIX, pois hoje já estamos com o sacro cheio...

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Pra que facilitar, se a gente pode complicar?

Não sou de fazer isso, mas não resisti:




Antes de continuarmos, vamos ouvir alguns exemplos dessa "escola" assim chamada New Complexity:

Terrain, para violino solo e grupo de câmara, do inglês Brian Ferneyhough:


English Country Tunes: "Green Meadows", do também inglês Michael Finnissy:


Ti.re-Ti-ke-Dha, do escocês James Dillon:


E preste atenção!, eu adoro música contemporânea! Espero que minha repulsa a este tipo de "erro" não seja puro preconceito meu. Já li muita coisa, muitas opiniões, muitas considerações, contra e a favor de tal música (A maioria das coisas que li - até hoje, pelo menos - está dentro da categoria "Pô! Isso é espetacularmente importante e significativo!").

Uma opinião bastante comum é a de que os compositores desta "sei lá o quê" estão buscando, através dessa complexidade, uma maior dedicação e esforço por parte dos intérpretes, e, consequentemente, uma maior valorização dos mesmos. Minha crítica: sinto muito... vocês estão valorizando apenas os intérpretes de suas próprias músicas, claro, pois a interpretação de todo o resto da música, parece, pode ficar relegada a intérpretes que, obviamente, não têm dedicação suficiente.

Também tenho a impressão de que - no fundo, no fundo - nem nestes poucos intérpretes vocês confiam! Se é necessário tanto esforço, tanta limitação, tantas instruções diferentes e simultâneas, para manter o intérprete atento ao que está fazendo, não deve ser porque confiam muito neles... Juro que fica parecendo - para mim, ao menos - que foram criadas inúmeras cercas eletrificadas, de todos os modelos e tamanhos imagináveis, para manter as galinhas caminhando na trilha "certa", pois elas, obviamente, não têm competência suficiente para descobrirem, sozinhas, para onde ir.

Isso combina com outra crítica a favor que frequentemente encontro: "Essa música soa como improvisação, mas ela é feita com esse intuito mesmo. Ao contrário de ser aleatória, esta música é feita para obrigar o intérprete a oferecer um tipo de improvisação controlada, já que não se pode contar com a seriedade da intenção do intérprete e deixá-los livre para improvisar por conta própria". Juro! Li várias vezes essa mesma opinião, em diversos textos: não se pode confiar no intérprete, pois a maioria, claro, não é confiável.

Outra opinião comum a respeito dessas obras é a seguinte: É importante essa dificuldade extrema, pois é uma maneira de se transmitir "fisicamente" o tamanho da exigência feita ao intérprete. É uma maneira de o intérprete mostrar visualmente a complexidade da música.

De novo, minha crítica, a dois pontos dessa opinião:

- Música visual? Feita para quê? Para acompanhar um balé escrito? Ou como trilha sonora de um filme esculpido em mármore? Me parece que há alguma confusão nessa tentativa de visualização da música: além de não confiarem nos intérpretes, também me parece que não confiam nem na própria música e seus recursos "meramente" auditivos...

- Elas (essas obras) só são realmente complexas quando você está vendo a partitura. Se depender apenas do seu ouvido, ela soa realmente aleatória, muito pouco complexa, na verdade. Quer ver? Vamos fazer um teste: ouça este "Estudo Transcendental nº 5" sem ver a partitura. Feche os olhos!


Atualização: sumiu do YouTube, e não sobrou mais nenhum desses estudos com a partitura, saco. Mas, se alguém quiser ouvir os Concertos Transcendentais 1 a 4, aqui vão eles:


Agora ouça novamente, tentando ler a partitura.

(Pode usar a primeira partitura lá de cima, só para ter uma ideia da complexidade da escrita)

Tá vendo? A complexidade da escrita musical não parece ter muito efeito sobre a complexidade do som. Claro que o som é "complexo" (entre aspas mesmo), mas a quilômetros de distância da complexidade da escrita. A grande maioria das obras da New Complexity, apesar de soarem complicadas, estão, "sonoramente" falando, muitos graus abaixo da correspondente complexidade visual. Novamente chegamos à concepção de música para os olhos...

Ouça outro Estudo Transcendental, agora do Fraz Liszt (o nº 2):


Aposto que você, mesmo sem olhar a partitura, conseguiu ouvir a dificuldade. Mas talvez o intérprete não tenha necessitado se esforçar tanto... (Estou sendo irônico, ok?)

Ou seja: os meios da New Complexity me parecem um tanto quanto exagerados para o fim a que se destinam. É como exigir de uma criança que ela aprenda a calçar meia usando apenas a boca. O resultado seria o mesmo se você a deixasse utilizar as mãos, mas ao usar só a boca a criança seria obrigada a mostrar empenho verdadeiro...

Claro que todos os membros dessa escola (movimento?, seita?) são absolutamente contrários ao uso da expressão "new complexity" para categorizar suas músicas, mas isso, a meu ver, só reforça a faceta mais estereotipada de todo este movimento: a recusa em aceitar o óbvio, pois o diferencial dessa música é a complexidade da escrita, nada mais que isso (para mim, ao menos).

Isso também combina com outra opinião comum a respeito dessa música, qual seja, a de que ela não é feita para ser tocada exatamente como está escrita, o que também é óbvio: Primeiro, porque é impossível ser executada corretamente; em segundo lugar (e mais problemático ainda, a meu ver), porque, mesmo que seja executada com precisão absoluta, é impossível (inclusive para o compositor), saber se está "certa" ou não. É humanamente impossível, enquanto se ouve, rotular, separar, analisar e calcular  as inúmeras gradações rítmicas, dinâmicas, expressivas, e se chegar a uma conclusão sobre a correção da execução.

A essa crítica, respondem que um dos intuitos dessa música é justamente esse, a busca pela perfeição, mesmo sabendo-se desde o princípio que essa perfeição é inalcançável. Mais uma vez é não se aceitar o óbvio: qualquer arte performática está sempre sujeita a erros, tropeços, falhas, e a perfeição é inalcançável. Ou vai me dizer que um Mozart perfeito é mais fácil de ser atingido? Esse, decididamente, não é o diferencial dessa música!

Enfim... Se quer complicar, fique à vontade! E quem quiser se aventurar a tocar suas músicas, fique à vontade também! O que me irrita, na verdade, é a discrepância entre o resultado e o esforço. Não é música (para mim, ao menos) feita para se ouvir. É música feita para comprovar a "genialidade" do intérprete e do compositor. 

E também não tenho nada contra pessoas geniais! O problema é que a música não é genial. Os intérpretes e os compositores podem ter as personalidade mais marcantes do universo, e serem geniais (principalmente os intérpretes), mas a música não tem muita personalidade. Ouça cada uma das peças abaixo e descubra: O que elas "falam"? O que elas "pensam"? Quem elas "são"? Para mim, elas soam sempre como um único indivíduo, indistinguíveis entre si. As plumagens mudam, mas o passarinho continua o mesmo...





Pode ser que chegue o dia em que eu seja obrigado a morder minha própria língua, mas duvido. Preconceito meu? Talvez. Mas, sinceramente, essa música, para mim, tem tanto valor (e tanta personalidade) quanto o Baloon Dog (Orange), do Jeff Koons, vendido por 58,4 milhões de dólares:


Que, obviamente, é completamente diferente do Baloon Dog (Blue):


Que, claro, é completamente diferente do Baloon Dog (Pink):


Que - chega a doer de tão óbvio - é completamente diferente do Baloon Rabbit:


Que não tem, é claro, a mesma personalidade que o Sacred Heart:


Enfim... eu sou chato mesmo!