Aimeudeus... não vou terminar nunca este assunto. Já estou ficando cansado, e ainda faltam os séculos XIX e XX. Socorro!!!!!!!!
Enfim, vamos lá: Classicismo 2.0! Já tratamos de música vocal de igreja, então vamos agora para música vocal de câmara e de teatro.
Música vocal cubicularis:
Eu tenho a impressão de que o Classicismo é a primeira época na história da música em que a música vocal de câmara não tinha muita importância. Quer dizer... claro que existem exemplos, aos montes, mas o século XVIII tinha basicamente duas preocupações: ópera e música instrumental (sonatas, concertos e, na segunda metade do século, sinfonias). A música instrumental desse período é tão absurdamente importante e original, abriu tantas novas possibilidades, que alguns gêneros muito característicos da música vocal parecem sumir durante este período.
Até mesmo as óperas dessa época (toneladas!) não são capazes e competir com a música instrumental. Pela primeira vez a música instrumental era o campo onde novas ideias surgiam. Até então a evolução da música esteve (quase) sempre confinada á música vocal - vide a importância da música sacra, das cantatas (sacras ou seculares), do madrigal, da ópera, no desenvolvimento dos estilos e técnicas musicais.
A paisagem do século XVIII, quando vista daqui do século XXI, parece uma floresta verde de música instrumental, apenas salpicada de vez em quando por um ipê amarelo de música vocal. Quem, hoje em dia, conhece música vocal do século XVIII em quantidade suficiente para competir com a música instrumental desse período? Ainda existem os ipês amarelos, pontinhos esparsos no matagal, exemplares maravilhosos que sobreviveram isolados, alheios ao que acontece (e aconteceu) no restante da floresta. A maior parte deles, porém, morreu...
O único compositor de ópera daquela época que realmente sobreviveu até hoje é (adivinha quem?) Mozart, claro, e isso porque, mais que qualquer ouro compositor de ópera da época, ele tinha absoluto domínio da música instrumental. Suas óperas representam quase que a totalidade dos ipês amarelos sobreviventes. Existem outros, obviamente, mas são poucos: Gluck, Cherubini, Cimarosa e uma meia dúzia de 2 ou 3 compositores que, esporadicamente, são desenterrados e colocados à prova novamente: "Vamos tirar a múmia do sarcófago e descobrir se ela ainda consegue ficar em pé!" Nessa categoria estão Salieri, Gréty, Paisiello, e alguns poucos outros.
Para piorar a situação da música vocal, o repertório "extra-igreja e extra-operístico" (lieder, chanson, árias de concerto) ainda estava engatinhando, só pegando embalo no início do século XIX. Se bem que, no caso desse repertório, o motivo pode ser outro: existe uma grande quantidade de obras que não foi devidamente catalogado e/ou editado até hoje, e mesmo aquilo que foi editado não entrou no repertório "comum" dos concertos. Cantam-se algumas canções e árias de concerto de Mozart até hoje, mas quem é que conhece as canções do Haydn? (Existem dezenas!!!). Olha só essa aqui, "A Pastoral Song" (é em inglês mesmo, ok?), como é linda!:
My mother bids me bind my hair
With bands of rosy hue,
Tie up my sleeves with ribbons rare,
And lace my bodice blue.
For why, she cries, sit still and weep,
While others dance and play?
Alas! I scarce can go or creep,
While Lubin is away.
'Tis sad to think the days are gone,
When those we love were near;
I sit upon this mossy stone,
And sigh when none can hear.
And while I spin my flaxen thread,
And sing my simple lay,
The village seems asleep, or dead,
Now Lubin is away.
Sobrevive, também, um repertório que originalmente era operístico, mas cujas molduras moreram: muitas múmias viraram pó, restando apenas uma mão ou uma orelha ainda vivas. São árias de ópera que tiveram a chance de ressuscitar como música de câmara, como, por exemplo, "O Del mio dolce ardor", que é a Pour Elise da música vocal - todo cantor, obrigatoriamente, já passou por ela em algum momento da vida, e que é (era?) uma ária da ópera Paride ed Elena, do Gluck, e que mereceu ter sobrevivido. É linda, ainda mais quando interpretada por um profissional:
Espero que ainda ressuscitem mais coisas desse repertório, porém, até lá, não posso fazer nada... Passemos logo para a ópera, deixando para trás esse repertório vocal de câmara que já foi deixado para trás há muito mais tempo.
E agora eu estou no sal! Prometi que não iria falar de Mozart, então não posso colocar nada de Don Giovanni, Così fan Tutte, A Flauta Mágica, Le Nozze di Figaro, O Rapto do Serralho, Idomeneo, Mitridate, re di Ponto, La Clemenza di Tito (sem contar as outras menos conhecidas). Saco!
Tirando Mozart, sobrou muito pouco, e algumas das exceções mais espetaculares são as óperas (algumas delas) do Gluck ("dono" dessa "ária pedaço-de-múmia" daí de cima), principalmente Alceste, Orphée et Eurydice, Iphigénie en Aulide, e Iphigénie en Tauride. Todas lindas, todas ainda no repertório, todas ainda conhecidas e ainda apresentadas atualmente (menos em Brasília, claro...), e todas em francês, pois foram compostas para serem apresentadas em Paris, apesar de Gluck ser alemão.
Ó só que linda ária (com coro) "Ô malheureuse Iphigénie", umas das mais conhecidas (e usada na trilha sonora do filme Ligações Perigosas), da ópera Iphigénie en Tauride:
Para quem quiser enfrentar a ópera inteira (com legendas), aqui vai a versão integral. Tire um dia livre e faça a si mesmo o favor de assisti-la inteira, é linda:
Ó só que linda ária (com coro) "Ô malheureuse Iphigénie", umas das mais conhecidas (e usada na trilha sonora do filme Ligações Perigosas), da ópera Iphigénie en Tauride:
IPHIGENIE
Ô malheureuse
Iphigénie!
Ta famille est
anéantie!
Vous n'avez plus de
rois, je n'ai plus de parents,
Mêlez vos cris
plaintifs à mes gémissements!
Vous n'avez plus de
rois, etc.
O malheureuse
Iphigénie!
Ta famille est
anéantie! etc.
CHOEUR DES PRÊTRESSES
Mêlons nos cris
plaintifs à ses gémissements!
IPHIGÉNIE
Vous n'avez plus de
rois, je n'ai plus de parents.
CHOEUR DES PRÊTRESSES
Nous n'avions
d'espérance, hélas! que dans Oreste!
Nous avons tout
perdu, nul espoir ne nous reste!
Para quem quiser enfrentar a ópera inteira (com legendas), aqui vai a versão integral. Tire um dia livre e faça a si mesmo o favor de assisti-la inteira, é linda:
Já que não posso colocar Mozart, vou ter que colocar alguma coisa do tão difamado Antonio Salieri. A ária "Par les larmes dont votre fille", da ópera Les Danaïdes (outra ópera encomendada para Paris), por exemplo, é linda!:
Não encontrei o libretto da ópera em lugar algum, mas se alguém se atrever a enfrentar o original francês, aqui está ela, infelizmente em versão de concerto (sem encenação):
E, já que falamos de Salieri, vamos ouvir Il Burbero di buon core, do espanhol Vicente Martín y Soler, que praticamente só sobrevive na Espanha (injustamente, porque é muito divertida!), e cujo libretto foi escrito por Lorenzo Da Ponte, o libretista responsável por Le Nozze di Figaro (que é a segunda parte de O Barbeiro), Così fan tutte, Don Giovanni, além de várias outras óperas do próprio Martín y Soler e do Salieri. Com vocês, um pequeno trecho de Il Burbero:
Aqui, as duas partes da versão integral (sem legendas novamente):
(ATUALIZAÇÃO: viu como eu tinha colocado a ópera inteira? O YT, porém, a jogou fora, e não existe mais nenhuma versão integral voando pela Internet, pelo visto...)
Martín y Soler e Salieri são considerados apenas como sub-Mozarts, hoje em dia, mas não dá para ser de outra maneira: há poucos, em quaisquer períodos da música, que não sejam sub-Mozarts. A história está cheia de sub-Shakespeares, sub-Dantes, sub-Da Vincis, sub-etc-etc-etc, que também merecem sobreviver!
Ó só outro "sub-Mozart", Domenico Cimarosa, cuja ópera Il Matrimonio Segreto foi composta para Viena, e lá estreou pouco mais de um mês após a morte de Mozart. É uma das poucas óperas deste período que ainda são reapresentadas regularmente e que não são do Mozart. Aqui, um trecho do segundo ato:
FIDALMA
Ebbene in questo punto
Vi do la mia parola
Che sarete mio sposo...
PAOLINO
Sposo?
FIDALMA
Sì, caro mio.
PAOLINO
Io?
FIDALMA
Sì, mio caro,
Sì, mio bene, consolati ...
Ma di color tu cangi? ... E che cos'hai?
PAOLINO
(Qual nuovo contrattempo è questo mai!)
Sento,
ahimè! che mi vien male,
Già mi manca quasi il fiato!
FIDALMA
Non è niente, sposo amato,
Questo è
effetto del piacer.
PAOLINO
Per pietà,
che in svenimento
Io mi sento già cader.
FIDALMA
E' l'effetto del contento,
Passerà, no, non temer.
Mio caro Paolino
Ma! .... certo è svenuto,
Porgiamogli aiuto ...
C'è alcuno di là?
L'amore, il contento
Vedete che fa?
CAROLINA
Ma cosa è accaduto?
Che cosa è mai stato?
FIDALMA
Il povero giovine
Di me innamorato,
Per gioia
in deliquio
Vedete che
sta.
Io vado a pigliare
Un certo elisire,
Non state a
partire.
Restatevi
qua.
CAROLINA
(Che creder, che dire
Da me non si sa.)
Giusto Cielo! Quale affanno,
Qual sospetto mi martella!
Su, ti scuoti, su favella!
Io mi sento lacerar.
PAOLINO
Carolina, deh, va via!
CAROLINA
Tu invaghito di mia zia,
E mi vieni ad ingannar.
PAOLINO
Taci, taci, che per ora
Non mi posso qui spiegar.
CAROLINA
Ci mancava questa ancora
Per più farmi delirar.
FIDALMA
Son qui pronta ... Son qua lesta,
Ma già in piedi ti ritrovo.
Per la gioia che ne provo
Questa man ti do a baciar.
PAOLINO
Non mi prendo tanto ardire.
CAROLINA
Mia signora, pian pianino.
FIDALMA
Bacia, bacia, Paolino,
a Carolina
Non ci avete voi da entrar.
CAROLINA, PAOLINO
Questa certa confidenza
Di fanciulla alla presenza,
Che stia bene non mi par.
FIDALMA
Di qualunque alla presenza
Posso dar tal confidenza
A colui che ho da sposar.
E a ópera inteira, outra vez sem libretto, mas quem quiser acompanhá-lo poderá encontrá-lo AQUI. O vídeo não é lá grandes coisas, mas a cavalo dado etc...
Então chega por hoje, né? Nós nos veremos no próximo século, quando teremos que ter muita paciência, pois acho que irá nos render ao menos uns três posts... Aimeudeus!
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