Concerto, como tudo na música, pode significar ene coisas. Você pode ir a um concerto, mesmo que não vá ouvir nenhum concerto. Você pode ir a um recital de música de câmara, para, digamos, 4 instrumentos, e mesmo assim ouvir um concerto. Pode inclusive ir a um recital solo e, de repente, ler no programa que uma das peças é um concerto, apesar de só haver um mísero músico, sozinho, no palco.
A palavra concerto originalmente servia apenas para designar uma obra musical que utilizava diferentes grupos de instrumentos e vozes, onde cada um dos grupos era mais ou menos independente dos restantes, mas atuando "em concerto". Isso foi uma "invenção" do final da Renascença, quando virou moda a escrita policoral. Lá na Igreja de São Marcos, em Veneza, devido à distância entre os diversos coros (local onde os cantores ficam), tornou-se comum escrever para diferentes grupos, cada um colocado em seu coro). Às vezes cantavam juntos, às vezes cantavam separadamente, e devia ser espetacular você ver e ouvir a música vindo de, digamos, quatro locais diferentes. (E depois dizem que música stereo é invenção do século XX...)
A existência de diferentes coros (agora no sentido atual, de grupo), formados por diferentes combinações de vozes (um grupo podia ter só 4 solistas, ou ser um coro completo, com muitos cantores, ser um coro só de crianças; podia ser qualquer coisa!) levou os compositores a experimentarem com grupos cada vez mais diferentes, incluindo grupos instrumentais. As palavras de ordem eram diferenciação e integração: "Vamos misturar tudo e ver como é que fica!"
A existência de diferentes coros (agora no sentido atual, de grupo), formados por diferentes combinações de vozes (um grupo podia ter só 4 solistas, ou ser um coro completo, com muitos cantores, ser um coro só de crianças; podia ser qualquer coisa!) levou os compositores a experimentarem com grupos cada vez mais diferentes, incluindo grupos instrumentais. As palavras de ordem eram diferenciação e integração: "Vamos misturar tudo e ver como é que fica!"
Infelizmente aqui em Brasília só ouvimos Mozart, Beethoven, algum Bach, e toneladas de Românticos. Oh, povo sem imaginação... E não é por falta de espaço! No Teatro Nacional caberiam folgadamente uns 53 coros espalhados por todos os lados, mas nunca temos a oportunidade de ouvir música policoral. No Teatro Nacional é impossível (apesar de ser possível); em casa, é mais difícil ainda, pois nenhum "rômi-tchíchi" consegue dar ideia do que era essa música ao vivo! Vou ter que ir à Itália (ou qualquer outro lugar decente) só para ouvir "policoros" berrando de todos os lados! Vou adorar!
Enquanto isso, o jeito é nos contentarmos com uma vaga, pálida, ínfima ideia da coisa real, aqui no blog mesmo. Com você, o mestre dos mestres da policoralidade, Giovanni Gabrielli, e seu In ecclesiis, com quatro coros:
1 - Solistas vocais (contratenor, alto, tenor e barítono);
2 - Coro vocal (alto 1, alto 2, tenor e baixo);
3 - Cornetos (cornetos 1, 2 e 3);
4 - Violino, trombone tenor, trombone baixo.
1 - Solistas vocais (contratenor, alto, tenor e barítono);
2 - Coro vocal (alto 1, alto 2, tenor e baixo);
3 - Cornetos (cornetos 1, 2 e 3);
4 - Violino, trombone tenor, trombone baixo.
("Chega-dói" de tão lindo!)
Viu? Agora você já começou a entender como é que funciona um concerto! E também já entendeu que não tem nada a ver com forma: pode ser forma-sonata, pode ser forma de ária com ritornello, pode até ter forma de batata, se eu quiser! Pode ter um só movimento, pode ter vários, pode ter inúmeros! Uma cantata, digamos, pode muito bem ser classificada como concerto. Tem vozes, não tem? Tem instrumentos, não tem? Esses grupos são utilizados de forma contrastante, não são? Mas às vezes estão "homogeneamente" juntos, não estão? Logo, uma cantata pode ser um concerto. Um oratório também pode. Qualquer coisa pode ser um concerto, se se adequar à definição que acabamos de dar para a criatura!
Quer ver como é verdade? Ó só o Schütz, que nós já vimos AQUI, com um de seus Pequenos Concertos Espirituais, SWV 335:
Foi a festa! Profusão de música para toda e qualquer combinação que passasse pela cabeça dos compositores, mas sempre com utilização de vozes e instrumentos, o que acabou ficando conhecido como stilo concertato (também às vezes designado como concertato con istrumenti); e vôalá, habemus concerto! Aliás, a palavra sinfonia é apenas uma tradução livre da palavra concerto, e também só significava, originalmente, tocar junto, tocar em harmonia, concordar, combinar, etc...
Vamos ouvir agora uma das Sinfonias Sacras, também do Schütz, onde o estilo concertato é mais evidente ainda. Sinfonia Sacra op. 6, nº 13, Fili mi Absalon:
O texto é tudo isso aqui:
Fili mi Absalom fili mi Absalom
quis mihi tribuat ut ego moriar pro te
Absalom fili mi fili mi.
Um concerto (ou sinfonia), portanto, era só isso; vozes e instrumentos cantando e tocando juntos, e separados, e novamente juntos, etc, etc, etc, nas mais diferentes combinações possíveis: nós quatro, eu com ela, eu sem ela, nós por cima, nós por baixo, e por aí vai...
É um concerto, mas é uma sinfonia, também é uma cantata, e nosso amigo Jotaésse vai adotar integralmente esse stilo concertato em suas próprias cantatas. Foi um caminho sem volta, e a música do Barroco se resumiria a um repeteco do Renascimento se não fosse por essa invenção maravilhosa (e pela ópera)! Tudo virou concerto; tudo tinha concerto! Pra qualquer lugar que você olhasse lá estava um concerto olhando pra sua cara, dando risada: "Oiê, sou eu de novoooo!"
Mas, como dizia o Cazuza, o tempo não para (uma salva de palmas para o Cazuza e sua incrível originalidade!), e alguém acabou pensando, já lá pelo meio do Barroco: "Quero escrever um concerto, mas não quero usar vozes. Não sou obrigado(a)!". Tá bom! Não quer, não use. Já falei inúmeras vezes que em música nada é obrigatório (contanto que dê certo!).
E finalmente a música instrumental ficou livre da gritaria! Claro que às vezes ela ficava com saudades dos antigos coleguinhas, e os chamava para comemorações especiais (confraternização de fim de ano, por exemplo - vide o Messias, do Handel), ou para a missa de domingo (vide as cantatas do Bach), porém agora aparece o "nosso" concerto, aquele que a gente jurava ser o de verdade: um grupo de instrumentos (a orquestra), contrastando (e harmonizando) com um grupo menor de instrumentos (ou apenas um), agora sem as vozes, mas trazendo consigo todo o drama da música vocal concertada!
Ó só este Concerto para Violino e Orquestra, em ré menor, do Giuseppe Tartini. É outro que "chega-dói" de tão lindo, e outro daqueles que você nunca poderá ouvir em Brasília, saco!
Ó só este Concerto para Violino e Orquestra, em ré menor, do Giuseppe Tartini. É outro que "chega-dói" de tão lindo, e outro daqueles que você nunca poderá ouvir em Brasília, saco!
Aliás, o concerto "de verdade" começa pelo violino (e sua família) justamente por ele ser o instrumento que mais conseguia "falar" sem palavras. Se não tinha vozes cantando, precisava-se de um instrumento tão ágil, expressivo, e tão cantabile quanto as vozes (a expressão cantabile, até hoje comum em qualquer partitura instrumental, vem daí, dessa necessidade de se imitar o canto).
Ó só como é "dramático" e "cantabile" o Concerto para Violino e Orquestra, op. 8, nº 4, O Inverno, do Vivaldi:
Adoro a interpretação do primeiro movimento deste concerto pelo Concerto Italiano, pois acho que eles captaram muito bem essa dramaticidade do Barroco, que, ao contrário do que se pensa, não tinha nada de comportado. O Barroco musical, assim como nas artes plásticas, é marcado pelo excesso, pelo exagero, feito para "estupidificar", assombrar, deixar a plateia de boca aberta; não era musica (quando bem feita) para se ouvir com cara de "Ai, que meigo"!
Concertos para outros instrumentos tornam-se também populares, depois, e há concertos para absolutamente qualquer instrumentos que você conseguir imaginar. Deve haver até algum concerto para triângulo e orquestra perdido por aí. Eu exagero (como sempre), pero no mucho: apesar de eu não conhecer nenhum Concerto para Triângulo e Orquestra, há, ao menos, o Concerto para Piano e Orquestra nº 1, do Franz Liszt, conhecido (por alguns) como Concerto para Piano e Orquestra nº 1, "com Triângulo", devido a importância desse instrumentinho em seu quarto movimento (aqui está o concerto inteiro, com seus movimentos ininterruptos, numa interpretação maravilhosa do Nelson Freire):
Mas voltemos ao assunto de antes! No Barroco o concerto era tão importante que acabou criando para si mesmo uma forma musical conhecida, obviamente, como forma de movimento de concerto, que basicamente seguia um esquema bem simples: A (orquestra) - B (solista) - A' (orquestra) - B' (solista) - A'' (orquestra) - B'' - A''', etc...
As parte As também contavam com a presença do solista (ele tocava junto com a orquestra), e as partes Bs (os solos) podiam ser baseadas ou não nas partes As. Ouça de novo o Tartini daí de cima (1º mov), um exemplo onde as partes Bs são baseadas nas partes da orquestra.
Foi? Viu? Venceu? Então agora ouça o primeiro movimento do famosérrimo Concerto para Teclado e Orquestra, em ré menor, do nosso amigo Jotaésse Bach, onde a maioria do material das partes Bs não é derivada de A, numa interpretação espetacular de Trevor Pinnock e The English Concert:
Vai ser lindo assim lá em casa!
Devido à popularidade gigantesca dessa forma de concerto é que vamos encontrar concertos para solistas sem orquestra, como o Concerto Italiano, também do nosso amigo Jotaésse, para teclado solo. Note que o primeiro movimento, estruturalmente, é igual ao concerto com orquestra daí de cima (em escala menor); dá para se ouvir claramente as entradas do "solista":
Concerto, a partir de então, pode assumir inúmeras formas diferentes, mais ou menos contrastantes, mais ou menos "cooperativas", e também pode assumir estruturas diferentes (algumas derivadas da forma-sonata), mas sempre guardando essa característica de "grupos diferentes de instrumentos tocando juntos", mesmo quando não há orquestra, como também é o caso do Concerto para Piano, Violino e Quarteto de cordas, de 1891, do Ernest Chausson:
Ou o Concerto para Cravo, Flauta, Oboé, Clarineta, Violino e Violoncelo, de 1926, do Manuel de Falla, um dos meus concertos "estranhos" favoritos:
Do outro lado do espectro musical (romântico, sonhador, suave, delicado, "impressionista") - mas também do Manuel de Falla - ouçam só que lindo o Noches en los Jardínes de España. O Mané o chamou de "impressões sinfônicas", mas o caráter concertístico da obra é inegável, só não tendo sido chamado de concerto por alguma frescura do compositor!:
Mas, voltando a concertos estranhos, mais um dos meus favoritos, o Concerto para Violoncelo e Orquestra do György Ligeti, fantasmagórico como o seu Requiem:
Bom... eu pulei quase 200 anos de concertos, mas tenho dois motivos:
1 - Não vou falar dos concertos do Classicismo e do Romantismo porque eles são os mais famosos de todos, e todo mundo está careca de conhecê-los (nós mesmos já ouvimos alguns deles aqui, quando falei sobre cadência);
2 - Porque concerto é uma das formas mais presentes em toda a música clássica, nunca tendo saído de moda, e mais popular do que nunca durante o século XX (e nesse pedacinho de século XXI também). Não que a forma musical seja sempre a mesma, claro, pois ele pode assumir diversas, mas a definição de concerto como uma obra musical para um ou mais solistas (vocais ou instrumentais, verdadeiros ou "subentendidos") com acompanhamento de orquestra (ou qualquer outro grupo de instrumentos) permite variações infinitas, possibilitando que os mais diferentes estilos e linguagens harmônicas - dos mais "simples" aos mais "complexos" - sejam utilizados, como, por exemplo, neste Concerto para Orquestra, Instrumentos turcos e Vozes, de 2002 (revisado em 2009 - qual será a versão "original"?), do compositor turco-americano Kamran Ince. Aqui, apenas o segundo movimento:
Ou o Concerto para Marimba, Coro e Percussão, de 2010, do americano Gene Koshinski:
Interessante, mas enjoa rapidinho. Se você quiser experimentar um concerto para percussão, tente este aqui, o Concerto para dois Pianos, Percussão e Orquestra, do Béla Bartók, muito mais interessante:
Por falar em Bartók, existem também vários exemplos de concertos para orquestra. Apesar desse nome meio estranho (cadê o solista?), significa apenas que os diversos grupos (ou instrumentos individuais) da própria orquestra são tratados como solistas ao longo da obra: às vezes pode ser o grupo das cordas, ou o grupo das madeiras, ou posso resolver tratar as trompas como solistas, ou qualquer outra ideia que me ocorrer. O importante é que não existe apenas um solista (ou grupo), mas que o solo será distribuído entre os diversos membros (ou grupos) da orquestra. Ó só o 5º movimento do Concerto para Orquestra, do Bartók, um dos mais famosos:
(Este é um vídeo com a Orquestra Jovem do Canadá, onde, pelo visto, só tem músicos maravilhosos! Prestem atenção à precisão dos violinos, principalmente no início do movimento, com sua música virtuosística, bem "solística". Aproveite a deixa e vá lá no YouTube ouvir todos os movimentos!)
Outra classe de concertos que habita a zona desmilitarizada na fronteira entre concertos e sinfonias é a sinfonia concertante, onde o instrumento solista (ou mais de um), apesar de ser tratado com destaque, não chega a ter uma posição tão "solista" quanto num concerto "de verdade". Claro que o que mais há na música são regiões cinzentas, e muitas vezes é difícil distinguir o porquê de uma determinada obra ser um concerto, ou uma sinfonia concertante, ou um concerto para orquestra. Algumas vezes é o próprio compositor que faz esta distinção, como, por exemplo, a Sinfonia concertante para Violino, Viola e Orquestra, em mi bemol maior, K. 364, do Mozart (primeiro movimento):
Apesar de o título não especificar o gênero, algumas obras são também geralmente classificadas na categoria sinfonia concertante, como a Sinfonia Harold en Italie, que tem o subtítulo "em quatro movimentos, com viola obbligato", do Hector Berlioz (primeiro movimento):
Ou a Symphonie Espagnole, do Édouard Lalo, que na verdade (???) é uma sinfonia concertante para violino e orquestra (ou pelo menos é geralmente assim considerada - não pergunte qual a minha opinião, pois eu nunca consegui chegar à conclusão nenhuma; quer dizer... chegar, eu chego, mas depois eu pego o ônibus outra vez e acabo indo parar em outro lugar; minha opinião, pelo menos sobre esta sinfonia/concerto é um Grande Circular, que fica dando voltas e mais voltas...):
Ou seja: ao lado da suíte, o concerto é uma das coisas mais adaptáveis do planeta, e todo mundo, em todos os estilos, todos os países, absolutamente TODO MUNDO MESMO, escreveu concertos para agradar a qualquer paladar!
Concerto para Bandoneón e Orquestra, do Astor Piazzolla (primeiro movimento):
Concerto para Gaita e Orquestra (viu como tem concertos para tudo?), do nosso Villa-Lobos (só o segundo movimento, lindíssimo):
Concerto para Quarteto de Saxofones e Orquestra, do Philip Glass (primeiro movimento, lindo também!):
Há concertos suficientes para durarem umas 3 eternidades enfileiradas mas, como não temos tanto tempo assim, vamos ficar por aqui mesmo! Então, para terminarmos, o Concerto para dois Bandolins, em sol maior, RV 532, do Vivaldi:
(Lindo demais!!!!)