quinta-feira, 13 de junho de 2013

Vamos falar de Webern?


Credit: NASAESA, and H. Bond (STScI)

Para comemorar os 100 anos de composição das 5 Peças para Orquestra, Op. 10, vamos falar um pouquinho (pouquinho mesmo!) dessa obra que, assim como quase todas as outras do Anton Webern (1883-1945), ainda assusta  (quase) todos os ouvintes, mesmo depois de um século. Mas venhamos e convenhamos: Webern, principalmente depois que ele realmente define seu estilo espartano, é um tanto quanto indigesto. Ouvir Webern é parecido com comer escargots: você não é obrigado a gostar, mas tem que pensar bastante antes de  decidir se quer provar!

Apesar de indigesto, o estilo maduro de Webern causa estranheza menos pelo excesso de temperos que pela frugalidade da refeição. Para se ter uma ideia, a primeira dessas peças tem a extensão de apenas DOZE (!) compassos, num total de cerca de 40 segundos, mas requer flauta, clarineta, trompa, trombone, celesta, harpa, sinos tubulares, violino, viola e violoncelo, com cada um deles tocando apenas algumas poucas notas. Outros instrumentos mais são necessários para a execução das demais peças do ciclo, que  duram em torno de 5 minutos, no total. É uma música que causa estranheza principalmente pelo que ela não tem, quando comparada com o grosso das obras que fazem parte do cardápio comum de (quase) todo mundo: ela não tem harmonia (no sentido tradicional de harmonia, ou no sentido de harmonia tradicional), não tem melodia (no sentido tradicional de melodia, ou no sentido de melodia tradicional), não tem ritmo (no sentido etc., etc...), e nem forma (novamente etc., etc...). Antes que me atirem pedra, é melhor eu tentar me explicar mais claramente:


- A harmonia, nessa fase de Webern, ainda não pode ser considerada dodecafônica (mas está quase lá - qualquer dia eu falo sobre dodecafonismo), estando no estágio conhecido como atonalismo. Isso significa que ele evita conscientemente construir blocos, sequências, acordes, que possam ser reconhecidos como relações harmônicas tradicionais, e mesmo quando algum acorde isolado assume formas semelhantes a acordes tradicionais, o próximo acorde  destrói o efeito do anterior, jogando com a percepção e a expectativa do ouvinte;

- A melodia de Webern é conhecida pelo termo técnico de Klagenfarbermelodie, que significa literalmente melodia de timbres. Isso normalmente é explicado como a divisão de uma melodia entre vários diferentes instrumentos, cada um tocando uma ou mais notas da melodia. Para mim, isso é apenas parte do que acontece em Webern: o que ouço nessas obras é que a melodia é constituída também de uma sequência de timbres (isolados ou combinados). Além de sons em alturas diferentes, formando o que poderia ser considerado melodia, a própria sequência de timbres é, em si, também parte da melodia total, que é constituída não apenas de diferentes notas, mas também de diferentes timbres, sendo impossível alguma divisão entre os dois aspectos;

- O ritmo, por sua vez, longe de funcionar como um elemento unificador, é usado como mais uma fonte de estranhamento. Assim como a sequência de notas, de timbres e de harmonias, o ritmo nunca é utilizado de forma a confirmar nossas expectativas. Apesar de seu aspecto relativamente descomplicado no papel, qualquer tentativa de se prever seu comportamento é tão inútil quanto tentar prever qualquer outro dos aspectos anteriores.

Todos esses elementos são, em Webern, inseparáveis dos outros elementos. É impossível dizer o que é mais importante em qualquer momento da peça. Claro que  esses mesmos elementos formam um todo coeso e indissolúvel em qualquer música, mas geralmente é possível distinguir não só certo grau de hierarquização entre eles, como também ouvir “camadas” diferentes, formadas por diferentes elementos. Em Webern, não! Tudo é misturado, moído, condensado e espremido num espaço exíguo – é o Big Bang ao contrário!

E, por falar em Big Bang, a impressão que a música de Webern me passa é de uma foto feita por algum telescópio - ouvimos pontos de luz, aglomerados, explosões, nebulosas, cometas... e enormes espaços vazios. Muitos acham que a música de Webern reflete bem a era de caos, conflituosa, que foi a primeira metade do século XX. Não para mim: quando ouço essa música, acho que ela não é desse mundo...

Parece séria e cerebral demais sua música? Certamente! Mas isso não pode ser considerado ponto negativo, a priori. Se formos considerar seriedade e cerebralismo como necessariamente negativos, muita coisa iria para o baú de inutilidades, a começar pela Divina Comédia – é difícil imaginar  algo mais sério e cerebral que ela (quanto à seriedade, não acho que muita gente vá discordar; quanto ao cerebralismo, o uso da terza rima obviamente pressupõe malabarismos mentais acima do normal para ser mantido por milhares e milhares de tercetos: absolutamente nenhum tipo de aleatoriedade é permitida!).

Aliás, por falar em seriedade, este texto aqui está também sério demais, mas acho impossível adotar qualquer outro tom ao se falar sobre Webern. Ele é sério, a culpa não é minha, e é essa seriedade que faz com que a música de Webern tenha valor para além de um mero exercício cerebral: a “gramática” é estranha, as “palavras” são estranhas, a “língua” é estranha, mas, também estranhamente, a sensação que se tem (que eu tenho) é que Webern tem algo muito importante a dizer! Não consigo me convencer de que eu já entendi a mensagem mas, apesar disso, quanto mais tento, mais gosto da estranheza que ouço.

É necessário muito tempo para se digerir esses 5 minutos, e esse tempo tem que ser exclusivamente dedicado a esse único propósito, pois é impossível tentar entender Webern enquanto se dirige, lava-se louça, toma-se banho. Para você realmente ver o céu, à noite, não dá para ocupar seus olhos com mais nada, e o mesmo ocorre com Webern: ou você presta atenção, ou desiste e vai fazer qualquer outra coisa!


Para quem quiser a partitura, ela está aqui, numa edição cujo copyright já expirou. Pode usá-la à vontade! 

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