terça-feira, 18 de junho de 2013

Monteverdi e seus madrigais




Monteverdi (1567- 1643)



Já ouvi pessoas dizendo que a música ocidental não tem muito interesse, pois ela é mais comum (o que quer que isso queira dizer!) que músicas de outros povos... Como se o acorde de dó maior fosse algo que nasceu sozinho, debaixo de uma pedra, diferentemente de, por exemplo, um raga indiano, que demorou séculos para evoluir - um dia, talvez, voltarei a esse assunto.

Muitas pessoas também acham que música antiga (e, por extensão, a música ocidental "comum"), por ser velha, sempre foi tradicional, dando novamente a impressão de que a música ocidental nasceu pronta, que sempre foi assim e que surgiu do nada, esquecendo-se de que tudo só vira tradição porque alguém começou a fazer/escrever/produzir algo novo que outras pessoas gostaram, imitaram, reproduziram, exploraram, e que, por fim, acabou entrando no (pelo) cânone, até virar lugar-comum.

Quando hoje ouvimos a música de Monteverdi, por exemplo, nem notamos que ele foi um revolucionário. Estou falando sério! Dá para acreditar, por exemplo, que o madrigal "Cruda Amarilli" (entre outros), causou celeuma e polêmicas à época de sua publicação, por suas heterodoxias?


Poema de Giovanni Battista Guarini:


Crud'Amarilli, che col nom'ancora
D'amar, ahi lasso! amaramente insegni,
Amarilli, del candido ligustro
Più candida più bella,
Ma de l'àspido sordo 
E più sorda più fèra e più fugace,
Poi che col dir t'offendo,
i' mi morrò tacendo.
Ma grideran per me le piagge e i monti
E questa selva, a cui
Sì spesso li tuo bel nome
Di risonar insegno.
Per me piangendo i fonti
E mormorando i venti,
Diranno i miei lamenti;
Parlerà nel mie volto
La pietate e 'l dolore;
E se fia muta ogn'altra cosa, al fine
Parlerà il mio morire,
E ti dirà la morte il mio martire.

Monteverdi publicou 9 livros de madrigais, durante o período de criação da ópera, e essas obras foram o campo onde as ideias e "revoluções" de Monteverdi tomaram forma, e onde ele conseguiu realizar a ambição da música da época: obter a maior expressividade possível. Claro que a música mais antiga também era expressiva, mas buscava-se, neste período em questão, um efeito mais individual, mais pessoal para a música; era necessário que esta se tornasse mais específica, única para cada personagem e momento, para que a ópera pudesse realmente ser considerada um dramma per musica.

E Monteverdi vai, pouco a pouco, passo a passo, minando a canção da Renascença com seus experimentos cada vez mais heterodoxos. Seu Segundo livro de madrigais (1590) já mostra sinais de novidades, apesar da roupagem tradicional. Por exemplo, "Ecco mormorar l'onde":


Poema de Torquato Tasso:

Ecco mormorar l'onde
e tremolar le fronde
a l'aura mattutina e gl'arborscelli.
E sovra i [verdi]1 rami i vaghi augelli
cantar soavemente
e rider l'oriente
ecco già l'alba appare
e si specchia nel mare
e rasserena il cielo
e [le campagne] imperla il dolce gelo
e gl'alti monti indora.
O bella e vagh'aurora
l'aura è tua messagiera, e tu de l'aura
ch'ogn'arso cor ristaura.

O que é diferente, em relação aos madrigais da época, é a expressão mais controlada, mais constante, não ligada apenas a versos individuais ou palavras soltas do poema, mas mantida durante todo o madrigal. Algo parecido também ocorre com a harmonia da peça, muito mais estável e com maior direção que a música da época, e é essa estabilidade que vai fazer com que uma ária de ópera tenha foco e não se dilua em momentos lindos e desconexos. Essa grande "descoberta" do poder da tonalidade vai, então, tornando-se cada vez mais intensa, mais incisiva:


Poema de Torquato Tasso, novamente:

Piagn'e sospira, e quand'i caldi raggi 
fuggon le greggi a la dolce ombr'assise, 
ne la scorza de' pini o pur de' faggi 
segnò l'amato nome in mille guise; 
e de la sua fortuna i gravi oltraggi 
e i vari casi in dura scorza incise, 
e in rileggendo poi le proprie note 
spargea di pianto le vermiglie gote.

Depois disso, as reformas musicais de Monteverdi estão prontas. Ele já domina a expressão, a intensidade musical de suas formas, o controle da harmonia, só lhe faltando mudar a roupagem tradicional (a 5 vozes) do madrigal, totalmente inapropriada para representar indivíduos, e, portanto, inútil em uma ópera. O número de vozes é diminuído, substituídas pelo basso continuo (o instrumento ou conjunto de instrumentos "acompanhante"), que fornecerá a substância musical perdida com essa redução, como neste madrigal do sétimo livro, "Ohimè, dov'è il mio ben" - qualquer semelhança com um dueto operístico NÃO é mera coincidência):


Poema de Bernardo Tasso:

Ohimè, dov'è il mio ben? Dov'è il mio core?
Chi m'asconde il mio core: e chi me 'l toglie?
Dunque ha potuto sol desio d'honore
Darmi fera cagion di tante doglie?
Dunque ha potuto in me più che 'l mio amore
Ambitiose, e troppo lievi voglie?
Ahi sciocco mondo, e cieco! ahi cruda sorte,
Che ministro mi fai de la mia morte.

Só lhe resta agora colocar o indivíduo singular no centro do palco, e o drama estará pronto, como nesse recitativo ("Lamento di Arianna") da ópera Arianna (obra perdida,infelizmente, da qual só sobrou esse trecho):

(quem quiser acompanhar o texto, ele está disponível aqui)

Resultado: Monteverdi enterra o madrigal renascentista para várias vozes, aperfeiçoa a expressão individual de cada música, confere personalidade ao basso continuo (que é, em suas obras maduras, tão expressivo quanto o solista), e inaugura o Barroco! Duvido que sem ele o Barroco viria a se tornar o que acabou se tornando. Monty não inventou a ópera, nem inventou o basso continuo, nem inventou nada, estritamente falando, mas mostrou a todo mundo o que o novo estilo era capaz de fazer. 

Claro que o caminho foi mais complicado que isso; sua evolução tampouco é linear, e diferentes estilos e estágios convivem lado a lado em vários dos Livros, mas não dá para se escrever uma tese sobre o desenvolvimento de Monteverdi aqui no blog, claro. E nem isso bastaria: para descrever tantas experiências, tantos sucessos (e alguns fracassos), tanto trabalho e tanto gênio, nada basta! Só mesmo ouvindo seus madrigais, muitas e muitas vezes, é possível entender o que eles representam para a música.

Atualmente esses Livros já foram reabilitados entre os ouvintes, mas nem sempre foi assim. Até Otto Maria Carpeaux, em seu livro - que eu adoro! - Uma Nova História da Música (reeditado como O Livro de Ouro da História da Música), diz que essas peças nunca voltariam a integrar o "corpo vivo da música", e permaneceriam sempre  como "experiências geniais". Ainda bem que ele errou! Na verdade, o que fazia falta era familiaridade, entendimento e estudos sobre a música da época, para podermos voltar a ouvir essas obras em todo seu esplendor.

P.S.: E, apesar de tanta coisa linda, ainda nem falamos (quase) de suas óperas!

Nenhum comentário:

Postar um comentário