Pediram-me para falar um pouquinho de cadências, e graças aos céus me disseram que tipo tinham em mente pois, como todo mundo já sabe, música é uma bagunça, e essa palavra serve para designar várias coisas diferentes. O que me pediram para explicar foi isso aqui: aquela hora em que a orquestra toda para e o solista mostra o que é que ele sabe fazer com seu instrumento (ou com a boca, no caso de cantores); é o momento mais solo de um solista!
Esse nome esquisitinho, cadência, vem de um procedimento harmônico super-hiper-ultra comum que chama-se (adivinha só!) cadência, que é a "resolução" harmônica de um trecho musical. Está é um exemplo básico, conhecida como cadência autêncica perfeita:
Durante uma música (tonal ou modal - algum dia eu explico a diferença - ou não, sei lá) ocorrem várias cadências harmônicas, para "avisar" que algo terminou (uma frase musical, um período, etc), e uma coisa nova vai começar. Algumas das mais importante são aquelas que marcam o final de grandes trechos distintos da música: depois dessa cadência harmônica daí de cima, por exemplo, vem um trecho completamente diferente.
Mas vamos falar do outro tipo de cadência. Da próxima vez que você assistir a uma ópera barroca, preste atenção: quase todo personagem, ao final de sua ária, sai do palco, o que era um pretexto para a platéia aplaudir e o cantor voltar rapidinho para colher os louros devidos (e interromper o andamento da ópera, infelizmente). Para provar que eu não estou mentindo, ouça a ária "Piangeró la sorte mia", da ópera Giulio Cesare, do Handel:
Mas vamos falar do outro tipo de cadência. Da próxima vez que você assistir a uma ópera barroca, preste atenção: quase todo personagem, ao final de sua ária, sai do palco, o que era um pretexto para a platéia aplaudir e o cantor voltar rapidinho para colher os louros devidos (e interromper o andamento da ópera, infelizmente). Para provar que eu não estou mentindo, ouça a ária "Piangeró la sorte mia", da ópera Giulio Cesare, do Handel:
Os finais das árias costumavam ser mais ornamentados (os cantores é que geralmente "inventavam" os ornamentos durante a interpretação) e, com o tempo, tornou-se comum fazer uma pequena improvisação, um showzinho extra, durante a cadência harmônica final de seu solo, o que dava azo (adoro coisas que dão azo!) a mais aplausos.
Ó só essa ária "Qui l'augel da pianta in pianta", da cantata Aci, Galatea e Polifemo, do Handel:
- 4:18-4:25 - cadência harmônica que marca o final da primeira parte do solo;
- 4:39 - início da segunda parte da ária;
- 5:30-5:47 - cadência harmônica que marca o final da segunda parte, já muito ornamentada (já é uma cadência de solista);
- 5:48 - início da repetição da primeira parte da ária - note que a melodia agora está mais ornamentada;
- 10:15-10:40 - cadência (a mesma que você já ouviu em 4:18, só que agora mais longa, mais ornamentada, mais virtuosística.
Na verdade a cadência do solista adia a resolução do trecho musical - a cadência "de verdade" - e essa parte enxertada acabou ficando conhecida pelo nome do lugar que ela ocupa dentro do processo harmônico. A partir desse momento, a palavra cadência, que significava apenas um procedimento harmônico, passou também a ser usada para designar esse trecho em que a resolução propriamente dita é suspensa e o solista se exibe mais um pouco.
Viu? Ficou fácil agora, espero!
Foi, então, o festival de cadência. Todo mundo interrompia a cadência e enfiava sua cadência no meio da cadência. Esse enxerto podia ser improvisado, podia ser composto pelo próprio compositor, ou ainda podia ser previamente composta pelo intérprete, ao invés de improvisada na hora. O sucesso desse dessa empreitada dependia, obviamente, da competência do intérprete-compositor, e aposto que a maioria devia ser muito chatinha, apenas uma demonstração de pirotecnia e malabarismo vocal (ou instrumental). Tenho certeza que foi isso que levou os próprios compositores, cada vez mais, a escreverem as cadências que achavam mais apropriadas para a música em questão.
Mesmo assim, em se tratando do repertório até o Romantismo, é comum os intérpretes apresentarem suas próprias criações, inclusive no caso de já haver uma escrita pelo próprio compositor. Mozart, por exemplo, às vezes escrevia cadências para seus concertos, e às vezes não escrevia, mas o intérprete tinha (e ainda tem) total liberdade de botar de lado a cadência do Mozart e criar sua própria.
Mesmo assim, em se tratando do repertório até o Romantismo, é comum os intérpretes apresentarem suas próprias criações, inclusive no caso de já haver uma escrita pelo próprio compositor. Mozart, por exemplo, às vezes escrevia cadências para seus concertos, e às vezes não escrevia, mas o intérprete tinha (e ainda tem) total liberdade de botar de lado a cadência do Mozart e criar sua própria.
Um dos meus concertos favoritos, o Concerto para piano nº 20, em ré menor, do Mozart, é um caso célebre em que Mozart não escreveu a cadência, sendo que, geralmente, apresenta-se aquela escrita pelo Beethoven! Viu? Era também muito comum compositores escreverem cadências para obras alheias.
Aqui está a cadência do Beetho para o primeiro movimento desse concerto do Mozart:
Para quem quiser ouvir 26 minutos de exemplos, alguém teve a paciência de criar um vídeo com um monte de cadências diferentes para esse mesmo concerto. Interessantíssimo! Mas o primeiro exemplo do vídeo é a do Beethoven, e não do George Solti, como o dono do vídeo diz:
1. Georg Solti
2. Eric Heidsieck (2:26)
3. Edwin Fischer (3:46)
4. Robert Casadesus (6:06)
5. Frank Pelleg (7:10)
6. Keith Jarrett (9:08)
7. Helmut Roloff (10:53)
8. Guiomar Novaes (13:25)
9. Bruno Walter (14:09)
9. Yvonne Lefébure (16:19)
11. Arturo Benedetti Michelangeli (17:36)
12. Wilhelm Kempff (19:20)
13. Géza Anda (20:40)
14. Clara Haskil (21:57)
15. Karl Engel (23:55)
Algumas vezes a cadência pelo próprio compositor é tão fantasticamente maravilhosa que qualquer tentativa de substituí-la por outra costuma não dar certo. A cadência do 1º movimento do Concerto Brandenburguês nº 5, em ré maior, do Jotaésse Bach é um exemplo "imexível". Se alguém tentar tirar a original e inventar outra é capaz de ser atacado por uma horda de espectadores raivosos (mas eu adoraria ver alguém tentando!):
Cadência do 1º movimento:
(Dá medo! Parece que a música vai sair do instrumento e correr atrás de você para te morder!)
E o concerto inteiro, numa versão maravilhosa:
O Concerto para Piano nº 4, em sol maior, do Beethoven, é um caso levemente mais complicado, pois o Beetho escreveu duas cadências muito diferentes para o 1º movimento. Uma delas não é muito executada, pois é muito bombástica demais (na minha opinião, ao menos; mas deve ser a opinião comum, já que quase ninguém a toca). A mais conhecida é essa, seguida pelo final do movimento, quando a orquestra retorna, durante o trinado final da cadência. Maravilhosamente poético! Espetacularmente maravilhoso!:
Aqui, o 1º movimento inteiro:
Os mais corajosos podem enfrentar o concerto todo e aproveitar para identificar as cadências todas; cada movimento tem a sua. Vale a pena ouvi-lo inteiro! É uma das coisas mais impressionantemente lindas em matéria de concertos para piano, e quem assistir inteiro ainda ganha de brinde um "bachzinho":
Esse é outro daqueles casos impossíveis de serem alterados: se você quiser tocar outra cadência, pode, mas não vale a pena correr o risco. Vários tentaram escrever outras cadências para o 1º movimento (até Brahms experimentou), mas ninguém conseguiu inventar algo que chegasse perto do original.
O Beetho, por falar nisso, com seu jeito meio "não estou nem aí se isso é certo ou não; eu quero fazer e pronto!" um dia acordou particularmente intratável, xingando todo mundo, brigando com a humanidade inteira porque todo mundo colocava cadências sempre lá pelo final dos movimentos, e resolveu que "chega, cansei, a cadência é minha e eu ponho no lugar que eu quiser", e inventou de começar um concerto logo pela cadência.
Eis aqui, portanto, o Concerto para Piano nº 5, em mi bemol maior, op. 73, "Imperador", na interpretação de um dos meus "monstrinhos" favoritos, Arturo Benedetti Michelangeli. Preste atenção ao vídeo, pois não é sempre na vida que você vai "ouver" algo assim. Além de tocar divinamente bem, ter uma interpretação estupenda, um som maravilhoso, ele ainda é uma maquininha de fazer trinado; chega a ser irritante de tão bom:
Mas vamos às cadências deste concerto: já começa, de cara, com uma (pontuada por dois acordes da orquestra), antes de ter acontecido qualquer outra coisa na música, antes mesmo do primeiro tema, que só aparece quando ela acaba. Essa cadência "fora do lugar" volta aos 12:00, mais curta, para dar início à repetição da primeira parte do movimento. E ainda temos mais uma outra, pequena, no lugar "normal" (16:42), onde o Beetho escreve na partitura: "Não é pra acrescentar mais nada, é só prá tocar isso mesmo que tá escrito. E se inventar qualquer outra coisa eu volto pra te assombrar!". Essa cadência não chega a terminar direito, pois a orquestra entra "antes da hora", e o pianista a termina acompanhado.
Aliás, não procure por cadências no segundo movimento, pois não tem, para compensar os "excessos" do 1º. Mas no terceiro movimento temos uma, pequena, aos 36:02. O Beetho é f... Ele sempre consegue, de algum maneira, chegar a um equilíbrio. Já que o 1º movimento tem várias, não tem nenhuma no 2º. Mas como o do 1º veio acompanhada pela orquestra (os acordes no meio das cadências 1 e 2), a do 3º movimento também vem acompanhada, dessa vez apenas pelos tímpanos e, ao invés de acordes bombásticos, temos apenas os tímpanos marcando o ritmo! É mais uma prova de que tudo vale, na música, se for bem feito!
Só mesmo o Beetho pra pensar nisso! Na verdade ele tirou a ideia - tenho certeza - de seu próprio Concerto para Violino, em ré maior, onde os tímpanos são importantíssimos. Esse concerto começa com um solo dos tímpanos, marcando o ritmo, e essa simples marcação vai gerar o movimento inteiro. É o único concerto para violino do Beetho, mas é o mais lindo que alguém já escreveu:
A primeira entrada do violino já é uma pequena cadência também. Detalhe importante: as espetaculares cadências deste concerto não são do Beetho; geralmente toca-se, como nesse vídeo, aquelas compostas por Fritz Kreisler, apesar de existem inúmeras diferentes, por inúmeros compositores/intérpretes. E, credo!, essa orquestra é assustadoramente boa! Depois de ouvir este concerto, com essa orquestra, não dá vontade de ouvir mais nada, nunca mais...
Então vamos descansar um pouco, conversando sobre blogs:
Então vamos descansar um pouco, conversando sobre blogs:
Já descansou? Voltemos, pois!
Resumindo: cadências podem aparecer em qualquer lugar em que haja uma cadência harmônica importante; podem ser curtas, podem ser longas, mas nunca deixaram de exercer o papel de realçar esses pontos importantes na estrutura da música.
Espero que eu tenha conseguido explicar direito! Mas não se preocupe se você nem sempre conseguir reconhecer uma cadência: há casos em que é muito difícil mesmo, e até os "especialistas" se estapeiam para chegar a uma conclusão sobre se é ou não é, onde começa, onde acaba, etc, etc, etc.
Ó só esse 1º movimento do Concerto para Piano nº 2, do Prokofiev. Quase metade do movimento é reservado para a cadência, uma das maiores, mas espetaculares, e mais difíceis que conheço:
E, para terminar, mais alguns exemplos de tipos diferentes de cadências:
Cadência acompanhada, no final do 3º mov. do Concerto para Violino em si menor, do Edward Elgar (0:44-7:22). Isso é só a cadência! O concerto inteiro dura uns 45 minutos!:
Cadência numa peça solo, do 3º mov. da Sonata para Piano em si bemol maior, K. 333, do Mozart (4:11-5:14):
Cadência para o 1º mov. do Concerto para Piano nº 22, em mi bemol maior, também do Mozart, composta pelo próprio pianista (Andrew von Oeyen). Óyen só com é bonita (o):
Rapsódia Húngara nº2, para piano, em dó sustenido menor, do Liszt, com a cadência composta por Rachmaninoff (8:28-10:36) - como se a Rapsódia já não fosse difícil o suficiente...:
E a cadência acompanhada (por uma flauta), da ária "Ardon gl'incensi", da ópera Lucia di Lammermoor, do Bellini:
Aqui, a ária inteira