domingo, 30 de junho de 2013

Isso é canto gregoriano???

Aimeudeus... Algumas pessoas (uma) vieram me dizer (reclamar?) que minha definição de canto gregoriano é muito genérica. Tá bom, eu concordo, mas eu não queria complicar ainda mais um assunto que já é muito complicado. Mas vou tentar explicar:

Existe muita confusão sobre o que é realmente canto gregoriano. Alguns consideram como gregoriano autêntico aquele composto e utilizado originalmente apenas pela igreja católica em Roma. Outros consideram como autêntico aquele repertório que foi compilado pelos francos na época de Pepino, o Breve e Carlos Magno, que tentaram estabilizar e unificar o canto da igreja em seu Império.

O quanto desse canto levado de Roma, porém, pode ser considerado "autêntico", ninguém tem certeza absoluta, e especialistas saem aos tapas para provar seus pontos de vista; nem os francos daquela época tinham certeza da autenticidade da música que vinha de Roma, pois reclamavam que o Vaticano mandava cantores instruídos a ensinar um canto diferente, de propósito, para não acabar com a exclusividade de Roma...

Também pode ser considerado gregoriano autêntico apenas aquele repertório mais ou menos estável já nos séculos  VIII e XIX (ou V e VI, ou IV a VII, ou qualquer combinação que apeteça ao musicólogo em questão), que corresponde às primeiras tentativas de unificação pelos francos, e menos autêntico todo o repertório monofônico composto após essa época, pelos próprios francos (e é um repertório ENORME!)

Outros consideram como autêntico o repertório coletado principalmente pelos monges de Solesmes, os grandes responsáveis por nossa maneira de executar o gregoriano (o que quer que ele seja). Aliás, se o gregoriano já é difícil de definir (não me diga!), é melhor nem entrarmos na questão de sua execução... A maneira de o executarmos atualmente é obra e graça desses mesmos monges, sendo que a forma "correta" de cantá-lo pode render anos e anos de discussões (e mais tapas!), já que não temos gravações do período (dãããã). Mesmo que tivéssemos, duvido (não só eu, claro!) que todas as igrejas que adotavam o gregoriano conseguissem cantar sempre tudo igual.

Para aumentar a bagunça, a música autêntica e antiga da Igreja Católica não é necessariamente romana, existindo repertórios completamente diferentes, como por exemplo os Moçárabe e Ambrosiano, usados respectivamente na região de Toledo, na Espanha, e Milão, na Itália (mas esses não são gregorianos mesmo, apesar de serem também católicos).

Portanto, dando o braço a torcer às inúmeras pessoas (uma) que fizeram a observação (reclamação?), confesso: errei! Essa música tem um nome técnico muito específico, cantochão, que pode ser definido, grosso modo, como o canto cristão monofônico, independentemente da origem gregoriana, ambrosiana, moçárabe (etc), do século IV, V, VI (etc), da França, da Itália (etc), de mosteiros ou de igrejas (etc).

Só para colocar musiquinha no post, aqui estão alguns exemplos de cantochão:

Moçárabe:


Ambrosiano:


Gregoriano (romano!):


Prometo que, daqui para a frente, utilizarei o termo cantochão - a não ser que eu me esqueça!

Já de volta para a missa!

Já que eu falei em missa, achei por bem apresentar aqui a Missa de Notre Dame, do Guillaume de Machaut (c.1330-1377), que é o primeiro exemplo conhecido (provavelmente da década de 1360) de missa cujo Ordinário foi inteiramente composto por uma só pessoa, pois, antes de Machaut (e depois também, por falar nisso), era comum que os diferentes trechos fossem concebido apenas em pares - Gloria e Credo, ou Sanctus e Agnus Dei, etc.

A Missa do Machaut é a primeira que usa as cinco partes mais comuns do Ordinário (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei), e mais o Ite, missa est, que não é geralmente musicado nas missas. E, como foi composta pela mesma pessoa, à mesma época, apresenta uma unidade estilística muito maior, obviamente, que as missas anteriores, que costumavam ser colchas de retalhos, com diferentes trechos - tanto do Próprio quanto do Ordinário - de diferentes épocas, estilos, por diferentes compositores, etc.

Machaut é o maior exemplo, para muitos, da Ars nova, um estilo que brotou no século XIV a partir do desenvolvimento de uma nova forma de escrita musical mais clara e que tornou possível a composição de linhas melódicas ritmicamente mais variadas que na música da época anterior.

Pode ser meio difícil, atualmente, notar essa riqueza rítmica; então, para ilustrar a diferença, abaixo estão dois trechos de uma missa compilada mais ou menos à mesma época (na década de 1340), conhecida como Missa de Tournais, com trechos composto em diferentes estilos. O primeiro vídeo é do Sanctus, composto no estilo antigo - conhecido, depois da Ars nova, como Ars antiqua - e o segundo é o Credo, já no novo estilo:

(Sanctus)


(Credo)

Conseguiu notar a diferença?

Essa nova notação da Ars nova vai permitir estripulias visuais como "Belle, bonee, sage", um rondó de Baude Cordie (algum lugar entre 1330 e 1440), notado desta maneira:

 

e cujo resultado é este:


Belle, bonne, sage, plaisante et gente,
A ce jour cy que l'an se renouvelle,

Vous fais le don d'une chanson nouvelle
Dedans mon cuer qui a vous se presente.
De recevoir ce don ne soyés lente,
Je vous suppli,ma doulce damoyselle.

Belle, bonne, sage… (etc.)

Car tant vous aim qu'aillours n'ay mon entente,
Et sy scay que vous estes seulle celle.
Qui fame avés que chascun vous appelle:
Flour de beauté sur toutes excellente.

Belle, bonne, sage... (etc.)

Para se ter uma ideia melhor do que era uma missa no século XIV, com sua música de diferentes estilos (como eu disse mais acima), resolvi colocar a versão pelo Ensemble Gilles Binchois, em que eles executam não só o Ordinário, composto por Machaut, mas também o Próprio (Introitus Gaudeamus omnes in Domino, Regina mundi e outros trechos) intercalado com a música original de Machaut).

Gostei de eles terem acrescentado um Introitus polifônico (mais antigo que a Missa, me parece), pois nos dá a chance de também contrastá-lo com o mesmo Introitus em sua versão original, em gregoriano:

- Introitus em gregoriano:


E a missa inteira, como poderia ter sido executada àquela época: o Ordinário: Kyrie, Gloria, CredoSanctusAgnus DeiIte, missa est), e mais o Próprio: Introitus, Gradual, Alleluia, Leitura, Regina mundi:


Para aqueles que quiserem ouvir mais uma gravação da mesma obra, segue a execução pelo Ensemble Organum. Confesso que acho muito estranha a versão que eles deram para a Missa, muito "oriental" demais para o meu gosto, mais Bizâncio que Roma. Claro que isso pode ser apenas preconceito meu, acostumado que estou com o estilo "tradicional" de se executar música antiga. Como ninguém tem certeza absoluta do como essa música soava, originalmente, acho que a interpretação deles também tá valendo!:





E agora, ite, post est!

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Da igreja para o cabaré!

Para aliviar a seriedade da postagem anterior, vamos tirar a mitra, colocar o "grand chapeau Greenaway", e falar de uma música mais divertida!



(Um dos desenhos de Kate Greenaway)



La Diva de L'Empire


Sous le grand chapeau Greenaway,
Mettant l'éclat d'un sourire,
D'un rire charmant et frais
De baby étonné qui soupire,
Little girl aux yeux veloutés,
C'est la Diva de "L'Empire",
C'est la rein'dont s'épren'nt
Les gentlemen et tous les dandys
De Piccadilly

Dan uns seul "yes" elle me tant de doucer
Que tous les snobs en gilet à coeur
L'accueillant de hourras frénétiques,
Sur la scène lancent des gerbes de fleurs,
Sans remarquer le rire narquois
De son joli minois.

Sous le grand chapeau Greeaway etc...

Elle danse presque automatiquemente,
Et soulève, aoh! très pioudiquement,
Ses jolis dessous de franfreluches
De ses jambres montrat le trétillement.
D'est à la fois très inocent
Et très excitant.

Sous le grand chapeaus Greeaway etc...

E a música de Erik Satie para o poema de Dominique Bonnaud e Numa Blès:



Começo por Satie por dois motivos: ele é geralmente conhecidos por suas 3 Gymnopedies:



Romântico, não é?, ainda mais acompanhadas por paisagens também românticas! Mas Satie era totalmente iconoclasta e irônico, meio "não tô nem aí para o que pensam sobre minha música", e se ele se preocupasse com o destino de suas peças, acho que ficaria horrorizado em saber que ele é visto atualmente como "romântico", pois um de seus grandes objetivos, por incrível que pareça, era justamente acabar com a música romântica (para a qual, por falar nisso, ele não tinha o menor talento).

Hoje é difícil perceber, depois de ouvirmos as Gymnopedies milhares de vezes, o quanto elas são estranhas para os padrões da época. Sem querer ser muito técnico: a primeira delas fica por mais de uma página repetindo apenas dois acordes, e é, harmonicamente falando, de uma pobreza franciscana (sem conotação negativa, OK?), pois o que Satie queria mesmo era jogar no lixo toda a complexidade rítmica e harmônica do Romantismo.

Nada se parece menos com a "Gymnopedie nº 1" que outra obra terminada no mesmo ano, a Sinfonia nº 1, em Ré maior, do Mahler:

(só o 4º movimento, aqui)

Outra "prova" de que Satie não tinha respeito algum pela tradição são suas peças Embryons desséchés - cujo nome não deixa dúvidas sobre seu intuito - nas quais ele tira sarro da música clássica, como na peça nº 3, "Podophthalmia" (nome científico de uma das ordens dos crustáceos, que engloba camarão, caranguejo, lagosta...), com sua bagunça estilística e seu final "beethoveniano-macarrônico":


Segundo motivo para eu ter citado Satie: ele foi como um "tio" para toda uma geração de compositores ativos nas primeiras décadas do século XX, em Paris, que também sucumbiram (também sem conotação negativa) a um estilo musical mais leve, mais descompromissado, mais das ruas que das salas de concerto, como que tentando recuperar a Belle Époque, interrompida pela Primeira Gerra Mundial. Esse novo estilo, mais leve, foi também uma reação à então nova música germânica, com seus radicais experimentos em atonalismo e serialismo; a Debussy, àquela época considerado como "o último romântico"; e a Wagner, com seu estilo nebuloso, denso e soturno, continuado por Mahler e Strauss. Esses compositores sofreram, além do mais, uma grande influência do jazz e de outros ritmos americanos (não apenas norte-americanos) levados para a Europa pelos soldados (basta conferir a canção acima - La Diva... - que é um tipo de rag-time.

Até Debussy acaba aderindo de passagem à moda, como no "Golliwogg's Cakewalk" (cakewalk é também um ritmo de jazz da época), da suíte Children's Corner. Aliás, Debussy aproveita, na seção mais lenta da peça, para fazer gozação com Wagner, citando a abertura de sua ópera Tristão e Isolda:


Ninguém em Paris escapa desse estilo, incluindo Stravinsky, a esponja que absorvia tudo, como em seu Tango para piano:


Ou Darius Milhaud, que leva para Paris sua experiência com a música brasileira, após passar dois anos no Rio de Janeiro como secretário de Paul Claudel, embaixador da França no Brasil. Esse é o terceiro movimento de Scaramouche, "Brasileira", uma das muitas obras de Milhaud influenciadas pelo Brasil, e que ninguém jamais ouve nem apresenta por aqui, infelizmente...


Milhaud, junto com 5 outros, fazia parte de um grupo chamado Les Six (dããã...), do qual não vou falar agora, pois  o clima de cabaré era muito mais disseminado e eu não quero dar a impressão de que esse grupo dominava o panorama. De qualquer maneira, um de seus membros era o François Poulenc, que tinha mais talento que todos os outros, na minha opinião, e cuja música apresenta as mesmas características de cabaré, apesar de sua música ser estilisticamente mais variada. Mas, de qualquer maneira, o cabaré está muitas vezes presente, como no terceiro movimento de sua Sonata para Flauta e Piano, onde quase conseguimos enxergar as coquettes coqueteando:


Assim como Satie, Poulenc também era capaz de se equilibrar, quando queria, sobre a fronteira entre a música clássica e a popular, e isso fica ainda mais claro quando sua música é interpretada por um cantor popular (desculpe-me Jessye Norman, mas prefiro esta versão aqui!):

"Les Chemins D'Amour" (de Jean Anouilh)


Ninguém, naquela época, escapa do cabaré (a não ser aqueles que querem escapar, claro)! Até compositores longe de Paris são "contaminados" pelo cabaré e pelo jazz, como Shostakovich na Rússia pós-revolução, em sua Suite for Jazz Orchestra nº 1, com seus movimentos Valsa, Polca, e Foxtrot:


A ária "Alabama Song", da ópera (ou, para ser mais exato, SingspielAscenção e Queda da Cidade de Mahagonny (1927), é de outro compositor da mesma época, também longe de Paris, que não só habitava a fronteira clássico-popular, como também tinha "dupla cidadania", transitando tranquilamente de-lá-pra-cá e de-cá-pra-lá quando lhe dava na venêta: Kurt Weill. Esta é uma gravação com a cantora original, Lotte Lenya, para quem Weill compunha quase toda sua música, mas existem versões para todos os gostos, desde cantoras (e cantores) de ópera, passando por Ella Fitzgerald e The Doors, até chegar a Marylin Manson (é verdade, pode procurar no YouTube!):


Ou que tal o tcheco Erwin Schulhof, cuja música é toda jazzística? Os seus 5 Études de Jazz também mostram claramente a influência parisiense, inclusive no título francês. A quem tiver curiosidade, aconselho ouvir todos os 5 Estudos (abaixo), e depois ouvir Kitten on the Keys, de Zez Confrey, (mais abaixo), que serviu como ponto de partida para a última peça desse ciclo do Schulhof:




Para concluir, antes que este post vire um livro: como eu já disse, Paris não vivia só de jazz, e não é surpresa que o Fandango (esse foi o nome que o compositor inicialmente deu a esta obra), uma das músicas mais populares de todos os tempos, seja desse período, mais precisamente de 1928:




Então? Ainda tem alguém achando que música clássica, principalmente a do século XX, é sempre chata?

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A Missa

Eu sei que para muitos este pode ser um assunto chato, mas é impossível gostar de música clássica sem ao menos se ter uma ideia musical do que é uma missa.

A missa católica é formada por duas partes distintas, liturgicamente falando. Synaxis, a primeira, é derivada do rito judeu e composta basicamente de salmos, leituras e orações, cercada e entremeada por música:

- Introitus (procissão de entrada do celebrante e acólitos);
- Kyrie;
- Gloria (à exceção da Quaresma e Advento, quando o Gloria não está presente);
- Coleta (oração do dia);
- Primeira leitura (geralmente do antigo Testamento ou das Epístolas)
- Gradual (ou Alleluia);
- Alleluia (ou Tractus);
- Leitura do Evangelho:
- Credo.

A segunda parte, Eucaristia, é especificamente cristão e liturgicamente mais importante, englobando:

- Offertorium;
- Prefácio (diálogo entre o celebrante e a congregação: "Corações ao alto"; "O nosso coração está em Deus"; etc...);
- Sanctus (com Benedictus);
- Cânon (feito silenciosamente pelo celebrante) e consagração do pão e vinho;
- Pater noster;
- Agnus Dei;
- Comunhão;
- Ite, missa est, e benção final.

Essa lista não representa absolutamente todas as partes de uma missa, mas são as mais estáveis, e/ou mais importantes musicalmente (algumas mais que outras). Em uma missa cantada, aqueles itens que apresentei em negrito são executados pelo coro (e/ou cantada pela própria congregação), e os demais são entoados pelo celebrante, de acordo com fórmulas recitativas muito simples, com as quais não vou nem me preocupar por enquanto.

Os trechos musicalmente mais importantes (aqueles em negrito), porém, são de dois tipos muito diferentes entre si. O primeiro grupo é conhecido como Próprio, cujo nome deriva do fato de que há textos apropriados para a ocasião: para o dia do Natal, a Sexta-feira Santa, o Domingo de Páscoa, etc); para a missa em questão (primeira missa de Natal, segunda missa de Natal, terceira missa etc...); para a festa celebrada (dias de santos, por exemplo),; ou, ainda, para a época (Quaresma, Advento, etc).

O Próprio inclui Introitus, Gradual, Alleluia, Tractus, Offertorium, Comunhão, além de outros trechos menos fixos, sendo que a música também muda de acordo com o texto: cada trecho do Próprio costuma ter sua música própria, grosso modo.

Próprio é a parte mais antiga da missa, e essa "música antiga" geralmente corresponde ao que conhecemos como canto gregoriano: cada trecho de texto pode ser cantado por uma pessoa apenas (celebrante) ou por vários cantores (coro e/ou congregação), mas é sempre uma música monofônica. Ou seja: todo mundo canta a mesma coisa, independentemente do número de executantes:



(Próprios para o terceiro domingo após a Páscoa, com IntroitusAlleluiaAlleluiaOffertorium e Comunhão)

MARAVILHOSO!



ABRE PARÊNTESES (

A repetição AlleluiaAlleluia (na minha legenda, abaixo do vídeo) não é erro, não! O par de trechos composto por Gradual + Alleluia é substituído por Gradual + Tractus durante épocas de penitência (Quaresma) e missas de Requiem, ou substituído por duas Alleluias durante a época mais alegre que se segue à Páscoa, como no exemplo acima.


) FECHA PARÊNTESES


A música do Próprio, porém, não precisa necessariamente ser monofônica, e existem muitos exemplos de composições polifônicas para esse grupo, incluindo o Magnus liber organi de Léonin, posteriormente retrabalhado, digamos assim, por Pérotin  (um dia, quem sabe, falo um pouco deles), que estão entre os exemplos mais antigos de polifonia:
 
(Gradual "Viderunt omnes" de Léonin, para uma missa de Natal)


(O mesmo Gradual, de Pérotin)

O segundo grupo de textos e toda missa é conhecido como Ordinário, alguns deles incluídos muito mais recentemente na missa que aqueles do Próprio. Este grupo engloba os trechos "comuns", como KyrieGloria, CredoSanctus (com Benedictus) Agnus Dei, cujos textos são fixos, invariáveis.

Apesar de ordinários (invariáveis), era comum que alguns desses trechos, principalmente durante a Idade Média, fossem interpolados com novos textos, tornando-os próprios. O Kyrie, por exemplo, podia receber um texto diferente, apropriado ao dia, acrescentado ao texto original:


Tibi Christe supplices exoramus cunctipotens,
ut nostri digneris eleison,
Tibi laus decet cum tripudio iugiter
atque tibi petimus dona eis eleison,
O bone Rex qui super astra sedes
et Domine qui cuncta gubernas eleison,
etc...

Esse tipo de alteração acabou caindo em desuso e/ou sendo proibida, o Ordinário assumiu sua forma definitiva, fixa até hoje, e a maioria de seus textos caiu no gosto dos compositores e  nunca parou de ser musicada.:

I. Kyrie

Kyrie eleison
(
3 vezes)
Christe eleison (3 vezes)
Kyrie eleison (3 vezes)


II. Gloria

Gloria in excelsis Deo
et in terra pax hominibus bonae voluntatis.
Laudamus te,
benedicimus te,
adoramus te,
glorificamus te,
gratias agimus tibi
propter magnam gloriam tuam,
Domine Deus, Rex caelestis,
Deus Pater omnipotens.
Domine Fili unigenite Jesu Christe,
Domine Deus, Agnus Dei, Filius Patris,
qui tollis peccata mundi, miserere nobis.
Qui tollis peccata mundi,
suscipe deprecationem nostram.
Qui sedes ad dexteram Patris,
miserere nobis.
Quoniam tu solus sanctus,
tu solus Dominus,
tu solus altissimus, Jesus Christe,
cum sancto Spiritu, in gloria Dei Patris.
Amen.


III. Credo

Credo in unum Deum Patrem omnipotentem,
Factorem cæli et terræ,
visibilium omnium et invisibilium
Et in unum Dominum, Iesum Christum,
Filium Dei unigenitum
Et ex Patre natum, ante omnia sæcula
Deum de Deo, lumen de lumine,
Deum verum de Deo vero
Genitum, non Factum, consubstatialem Patri:
Per quem omnia facta sunt
Qui propter nos homines,
Et propter nostram salutem,
Descendit de cælis
Et incarnatus est de Spiritu Sancto,
Ex Maria Virgine: et homo factus est
Crucifixus etiam pro nobis:
Sub Pontio Pilato,
Passus et sepultus est
Et resurrexit tertia die,
Secundum Scripturas
Et ascendit in cælum:
Sedet ad dexteram Patris
Et iterum venturus est cum gloria,
Iudicare vivos et mortuos:
Cuius non erit finis
Et in Spiritum Sanctum,
Dominum et vivificantem:
Qui ex Patre Filioque procedit
Qui cum Patre et Filio,
Simul adoratur, et conglorificatur:
Qui locutus est per Prophetas
Et unam, sanctam, catholicam,
Et apostolicam Ecclesiam
Confiteor unum baptisma,
In remissionem peccatorum
Et exspecto resurrectionem mortuorum
Et vitam venturi sæculi
Amen.


IV. Sanctus (com Benedictus)

Sanctus, Sanctus, Sanctus

Dominus, Deus Sabaoth
Pleni sunt cæli et terra gloria tua.
Hosanna in excelsis.


Benedictus qui venit
In nomine Domini.


Hosanna in excelsis.


VI. Agnus Dei

Agnus Dei
Qui tollis peccata mundi
miserere nobis 
(2 vezes)
Agnus Dei
Qui tollis peccata mundi
Dona nobis pacem


Outros trechos também são ordinários, mas nunca receberam tanta atenção dos compositores e não fazem parte, tradicionalmente, do gênero musical Missa (como o Pater Noster e o Ite, missa est):


(Pater noster gregoriano)

(De "brinde", o Pater Noster de Villa-Lobos - com o Coral da Unb, quem diria!!!!)

Concluindo: quando falamos em missas, na música do século XV em diante, estamos falando desse grupo geralmente composto por Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus (com Benedictus) e Agnus Dei. Os compositores, porém, têm a liberdade de acrescentar, retirar, substituir um ou mais trechos, ainda mais se a missa em questão não for composta para ser apresentada durante a celebração.

PS: Sobre missa de requiem, um tanto quanto diferente, falaremos outro dia!

terça-feira, 18 de junho de 2013

Monteverdi e seus madrigais




Monteverdi (1567- 1643)



Já ouvi pessoas dizendo que a música ocidental não tem muito interesse, pois ela é mais comum (o que quer que isso queira dizer!) que músicas de outros povos... Como se o acorde de dó maior fosse algo que nasceu sozinho, debaixo de uma pedra, diferentemente de, por exemplo, um raga indiano, que demorou séculos para evoluir - um dia, talvez, voltarei a esse assunto.

Muitas pessoas também acham que música antiga (e, por extensão, a música ocidental "comum"), por ser velha, sempre foi tradicional, dando novamente a impressão de que a música ocidental nasceu pronta, que sempre foi assim e que surgiu do nada, esquecendo-se de que tudo só vira tradição porque alguém começou a fazer/escrever/produzir algo novo que outras pessoas gostaram, imitaram, reproduziram, exploraram, e que, por fim, acabou entrando no (pelo) cânone, até virar lugar-comum.

Quando hoje ouvimos a música de Monteverdi, por exemplo, nem notamos que ele foi um revolucionário. Estou falando sério! Dá para acreditar, por exemplo, que o madrigal "Cruda Amarilli" (entre outros), causou celeuma e polêmicas à época de sua publicação, por suas heterodoxias?


Poema de Giovanni Battista Guarini:


Crud'Amarilli, che col nom'ancora
D'amar, ahi lasso! amaramente insegni,
Amarilli, del candido ligustro
Più candida più bella,
Ma de l'àspido sordo 
E più sorda più fèra e più fugace,
Poi che col dir t'offendo,
i' mi morrò tacendo.
Ma grideran per me le piagge e i monti
E questa selva, a cui
Sì spesso li tuo bel nome
Di risonar insegno.
Per me piangendo i fonti
E mormorando i venti,
Diranno i miei lamenti;
Parlerà nel mie volto
La pietate e 'l dolore;
E se fia muta ogn'altra cosa, al fine
Parlerà il mio morire,
E ti dirà la morte il mio martire.

Monteverdi publicou 9 livros de madrigais, durante o período de criação da ópera, e essas obras foram o campo onde as ideias e "revoluções" de Monteverdi tomaram forma, e onde ele conseguiu realizar a ambição da música da época: obter a maior expressividade possível. Claro que a música mais antiga também era expressiva, mas buscava-se, neste período em questão, um efeito mais individual, mais pessoal para a música; era necessário que esta se tornasse mais específica, única para cada personagem e momento, para que a ópera pudesse realmente ser considerada um dramma per musica.

E Monteverdi vai, pouco a pouco, passo a passo, minando a canção da Renascença com seus experimentos cada vez mais heterodoxos. Seu Segundo livro de madrigais (1590) já mostra sinais de novidades, apesar da roupagem tradicional. Por exemplo, "Ecco mormorar l'onde":


Poema de Torquato Tasso:

Ecco mormorar l'onde
e tremolar le fronde
a l'aura mattutina e gl'arborscelli.
E sovra i [verdi]1 rami i vaghi augelli
cantar soavemente
e rider l'oriente
ecco già l'alba appare
e si specchia nel mare
e rasserena il cielo
e [le campagne] imperla il dolce gelo
e gl'alti monti indora.
O bella e vagh'aurora
l'aura è tua messagiera, e tu de l'aura
ch'ogn'arso cor ristaura.

O que é diferente, em relação aos madrigais da época, é a expressão mais controlada, mais constante, não ligada apenas a versos individuais ou palavras soltas do poema, mas mantida durante todo o madrigal. Algo parecido também ocorre com a harmonia da peça, muito mais estável e com maior direção que a música da época, e é essa estabilidade que vai fazer com que uma ária de ópera tenha foco e não se dilua em momentos lindos e desconexos. Essa grande "descoberta" do poder da tonalidade vai, então, tornando-se cada vez mais intensa, mais incisiva:


Poema de Torquato Tasso, novamente:

Piagn'e sospira, e quand'i caldi raggi 
fuggon le greggi a la dolce ombr'assise, 
ne la scorza de' pini o pur de' faggi 
segnò l'amato nome in mille guise; 
e de la sua fortuna i gravi oltraggi 
e i vari casi in dura scorza incise, 
e in rileggendo poi le proprie note 
spargea di pianto le vermiglie gote.

Depois disso, as reformas musicais de Monteverdi estão prontas. Ele já domina a expressão, a intensidade musical de suas formas, o controle da harmonia, só lhe faltando mudar a roupagem tradicional (a 5 vozes) do madrigal, totalmente inapropriada para representar indivíduos, e, portanto, inútil em uma ópera. O número de vozes é diminuído, substituídas pelo basso continuo (o instrumento ou conjunto de instrumentos "acompanhante"), que fornecerá a substância musical perdida com essa redução, como neste madrigal do sétimo livro, "Ohimè, dov'è il mio ben" - qualquer semelhança com um dueto operístico NÃO é mera coincidência):


Poema de Bernardo Tasso:

Ohimè, dov'è il mio ben? Dov'è il mio core?
Chi m'asconde il mio core: e chi me 'l toglie?
Dunque ha potuto sol desio d'honore
Darmi fera cagion di tante doglie?
Dunque ha potuto in me più che 'l mio amore
Ambitiose, e troppo lievi voglie?
Ahi sciocco mondo, e cieco! ahi cruda sorte,
Che ministro mi fai de la mia morte.

Só lhe resta agora colocar o indivíduo singular no centro do palco, e o drama estará pronto, como nesse recitativo ("Lamento di Arianna") da ópera Arianna (obra perdida,infelizmente, da qual só sobrou esse trecho):

(quem quiser acompanhar o texto, ele está disponível aqui)

Resultado: Monteverdi enterra o madrigal renascentista para várias vozes, aperfeiçoa a expressão individual de cada música, confere personalidade ao basso continuo (que é, em suas obras maduras, tão expressivo quanto o solista), e inaugura o Barroco! Duvido que sem ele o Barroco viria a se tornar o que acabou se tornando. Monty não inventou a ópera, nem inventou o basso continuo, nem inventou nada, estritamente falando, mas mostrou a todo mundo o que o novo estilo era capaz de fazer. 

Claro que o caminho foi mais complicado que isso; sua evolução tampouco é linear, e diferentes estilos e estágios convivem lado a lado em vários dos Livros, mas não dá para se escrever uma tese sobre o desenvolvimento de Monteverdi aqui no blog, claro. E nem isso bastaria: para descrever tantas experiências, tantos sucessos (e alguns fracassos), tanto trabalho e tanto gênio, nada basta! Só mesmo ouvindo seus madrigais, muitas e muitas vezes, é possível entender o que eles representam para a música.

Atualmente esses Livros já foram reabilitados entre os ouvintes, mas nem sempre foi assim. Até Otto Maria Carpeaux, em seu livro - que eu adoro! - Uma Nova História da Música (reeditado como O Livro de Ouro da História da Música), diz que essas peças nunca voltariam a integrar o "corpo vivo da música", e permaneceriam sempre  como "experiências geniais". Ainda bem que ele errou! Na verdade, o que fazia falta era familiaridade, entendimento e estudos sobre a música da época, para podermos voltar a ouvir essas obras em todo seu esplendor.

P.S.: E, apesar de tanta coisa linda, ainda nem falamos (quase) de suas óperas!

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Vamos falar de Webern?


Credit: NASAESA, and H. Bond (STScI)

Para comemorar os 100 anos de composição das 5 Peças para Orquestra, Op. 10, vamos falar um pouquinho (pouquinho mesmo!) dessa obra que, assim como quase todas as outras do Anton Webern (1883-1945), ainda assusta  (quase) todos os ouvintes, mesmo depois de um século. Mas venhamos e convenhamos: Webern, principalmente depois que ele realmente define seu estilo espartano, é um tanto quanto indigesto. Ouvir Webern é parecido com comer escargots: você não é obrigado a gostar, mas tem que pensar bastante antes de  decidir se quer provar!

Apesar de indigesto, o estilo maduro de Webern causa estranheza menos pelo excesso de temperos que pela frugalidade da refeição. Para se ter uma ideia, a primeira dessas peças tem a extensão de apenas DOZE (!) compassos, num total de cerca de 40 segundos, mas requer flauta, clarineta, trompa, trombone, celesta, harpa, sinos tubulares, violino, viola e violoncelo, com cada um deles tocando apenas algumas poucas notas. Outros instrumentos mais são necessários para a execução das demais peças do ciclo, que  duram em torno de 5 minutos, no total. É uma música que causa estranheza principalmente pelo que ela não tem, quando comparada com o grosso das obras que fazem parte do cardápio comum de (quase) todo mundo: ela não tem harmonia (no sentido tradicional de harmonia, ou no sentido de harmonia tradicional), não tem melodia (no sentido tradicional de melodia, ou no sentido de melodia tradicional), não tem ritmo (no sentido etc., etc...), e nem forma (novamente etc., etc...). Antes que me atirem pedra, é melhor eu tentar me explicar mais claramente:


- A harmonia, nessa fase de Webern, ainda não pode ser considerada dodecafônica (mas está quase lá - qualquer dia eu falo sobre dodecafonismo), estando no estágio conhecido como atonalismo. Isso significa que ele evita conscientemente construir blocos, sequências, acordes, que possam ser reconhecidos como relações harmônicas tradicionais, e mesmo quando algum acorde isolado assume formas semelhantes a acordes tradicionais, o próximo acorde  destrói o efeito do anterior, jogando com a percepção e a expectativa do ouvinte;

- A melodia de Webern é conhecida pelo termo técnico de Klagenfarbermelodie, que significa literalmente melodia de timbres. Isso normalmente é explicado como a divisão de uma melodia entre vários diferentes instrumentos, cada um tocando uma ou mais notas da melodia. Para mim, isso é apenas parte do que acontece em Webern: o que ouço nessas obras é que a melodia é constituída também de uma sequência de timbres (isolados ou combinados). Além de sons em alturas diferentes, formando o que poderia ser considerado melodia, a própria sequência de timbres é, em si, também parte da melodia total, que é constituída não apenas de diferentes notas, mas também de diferentes timbres, sendo impossível alguma divisão entre os dois aspectos;

- O ritmo, por sua vez, longe de funcionar como um elemento unificador, é usado como mais uma fonte de estranhamento. Assim como a sequência de notas, de timbres e de harmonias, o ritmo nunca é utilizado de forma a confirmar nossas expectativas. Apesar de seu aspecto relativamente descomplicado no papel, qualquer tentativa de se prever seu comportamento é tão inútil quanto tentar prever qualquer outro dos aspectos anteriores.

Todos esses elementos são, em Webern, inseparáveis dos outros elementos. É impossível dizer o que é mais importante em qualquer momento da peça. Claro que  esses mesmos elementos formam um todo coeso e indissolúvel em qualquer música, mas geralmente é possível distinguir não só certo grau de hierarquização entre eles, como também ouvir “camadas” diferentes, formadas por diferentes elementos. Em Webern, não! Tudo é misturado, moído, condensado e espremido num espaço exíguo – é o Big Bang ao contrário!

E, por falar em Big Bang, a impressão que a música de Webern me passa é de uma foto feita por algum telescópio - ouvimos pontos de luz, aglomerados, explosões, nebulosas, cometas... e enormes espaços vazios. Muitos acham que a música de Webern reflete bem a era de caos, conflituosa, que foi a primeira metade do século XX. Não para mim: quando ouço essa música, acho que ela não é desse mundo...

Parece séria e cerebral demais sua música? Certamente! Mas isso não pode ser considerado ponto negativo, a priori. Se formos considerar seriedade e cerebralismo como necessariamente negativos, muita coisa iria para o baú de inutilidades, a começar pela Divina Comédia – é difícil imaginar  algo mais sério e cerebral que ela (quanto à seriedade, não acho que muita gente vá discordar; quanto ao cerebralismo, o uso da terza rima obviamente pressupõe malabarismos mentais acima do normal para ser mantido por milhares e milhares de tercetos: absolutamente nenhum tipo de aleatoriedade é permitida!).

Aliás, por falar em seriedade, este texto aqui está também sério demais, mas acho impossível adotar qualquer outro tom ao se falar sobre Webern. Ele é sério, a culpa não é minha, e é essa seriedade que faz com que a música de Webern tenha valor para além de um mero exercício cerebral: a “gramática” é estranha, as “palavras” são estranhas, a “língua” é estranha, mas, também estranhamente, a sensação que se tem (que eu tenho) é que Webern tem algo muito importante a dizer! Não consigo me convencer de que eu já entendi a mensagem mas, apesar disso, quanto mais tento, mais gosto da estranheza que ouço.

É necessário muito tempo para se digerir esses 5 minutos, e esse tempo tem que ser exclusivamente dedicado a esse único propósito, pois é impossível tentar entender Webern enquanto se dirige, lava-se louça, toma-se banho. Para você realmente ver o céu, à noite, não dá para ocupar seus olhos com mais nada, e o mesmo ocorre com Webern: ou você presta atenção, ou desiste e vai fazer qualquer outra coisa!


Para quem quiser a partitura, ela está aqui, numa edição cujo copyright já expirou. Pode usá-la à vontade! 

terça-feira, 11 de junho de 2013

Benjamin Britten


Tadinho do Britten (1913-1976)... Pacifista (durante a Segunda Guerra Mundial), homossexual (na Inglaterra da primeira metade do século XX), esquerdista (mas nunca filiado a nenhum partido), sexualmente reprimido (e parceiro, até a morte, de Peter Pears, que era promíscuo), além de um tanto quanto "michael-jacksoniano": sempre atraído por garotos novos (e, segundo aqueles que se dedicaram a estudar sua vida, sempre mantendo relações totalmente platônicas com seus "amiguinhos").
Além disso, musicalmente Britten era considerado por muitos, à época, como a encarnação de tudo de ruim do modernismo (pelos "tradicionalistas-passadistas"), e de tudo de ruim do passadismo (pela avant-garde musical parisiense), apesar de estimado e reverenciado por grandes nomes da música, como Shostakovich, Mstislav Rostropovich, Sviatoslav Richter, entre muitos outros.


(Britten - ao piano - e Pears)

Era também católico-agnóstico (tá, isso não existe, mas eu acho que ele era isso mesmo!), sempre mantendo distância da religião formal e seus dogmas, e ao mesmo tempo escrevendo grande quantidade de música religiosa. Quando de sua morte, o governo inglês até ofereceu para que ele fosse sepultado na Abadia de Westminster, onde os próprios reis (e Handel) estão sepultados - o que foi recusado por sua família, pois Britten queria ser sepultado perto do mar, onde nasceu. A própria rainha Elizabeth, inclusive, esteve presente em seus funerais, e a Família Real também enviou carta de condolências a seu companheiro Peter Pears, apesar de ambos terem sido “investigados” na década de cinquenta, quando houve um recrudescimento na aplicação das leis que criminalizavam a homossexualidade.

Enfim, uma criatura e uma vida cheias de contradições, psicologicamente complexa. Pelo menos é isso que eu ouço em várias de suas obras, como na Ceremony of Carols, um ciclo de canções corais para sopranos, solistas e harpa, escrito sobre poemas religiosos antigos, onde tradição e modernidade, culpa e certeza de perdão, angústia e tranquilidade, parecem se alternar constantemente:


Texto da Ceremony:


1. Procession

Hodie Christus natus est:
hodie Salvator apparuit:
hodie in terra canunt angeli:
laetantur archangeli:
hodie exsultant justi dicentes:
Gloria in excelsis Deo.
Alleluia! Alleluia! Alleluia! 

2. Wolcum Yole!

Wolcum, Wolcum, Wolcum be thou hevenè king,
Wolcum Yole! Wolcum, born in one morning,
Wolcum for whom we sall sing!
Wolcum be ye, Stevene and Jon,
Wolcum, Innocentes every one,
Wolcum, Thomas marter one,
Wolcum be ye, good Newe Yere,
Wolcum, Twelfthe Day both in fere,
Wolcum, seintes lefe and dere,
Wolcum Yole, Wolcum Yole, Wolcum!
Candelmesse, Quene of bliss,
Wolcum bothe to more and lesse.
Wolcum, Wolcum, Wolcum be ye that are here,
Wolcum Yole, Wolcum alle and make good cheer,
Wolcum alle another yere, Wolcum Yole, Wolcum!

3. There is no Rose

There is no rose of such vertu as is the rose that bare Jesu.
Alleluia, alleluia.
For in this rose conteinèd was heaven and earth in litel space,
Res miranda, res miranda.
By that rose we may well see there be one God in persons three,
Pares forma, pares forma,
The aungels sungen the shepherds to:
Gloria in excelsis, gloria in excelsis Deo.
Gaudeamus, gaudeamus.
Leave we all this werldly mirth, and follow we this joyful birth.
Transeamus, transeamus, transeamus.
Alleluia, res miranda, pares forma, gaudeamus,
Transeamus, transeamus, transeamus.

4. That yongë childe and Bulalow

That yonge child when it gan weep with song she lulled him asleep:
That was so sweet a melody it passèd alle minstrelsy.
The nightingalë sang also: Her song is hoarse . . and nought thereto:
Whoso attendeth to her song and leaveth the first. . then doth he wrong.
. . . 

O my deare hert, young Jesu sweit, Prepare thy creddil in my spreit,
And I sall rock thee to my hert, And never mair from thee depart.
But I sall praise thee evermoir With sanges sweit unto thy gloir;
The knees of my hert sall I bow, And sing that richt Balulalow.

5. As dew in Aprille

I sing of a maiden that is makèles:
King of all kings to her son she ches
He came also stille there his moder was,
As dew in Aprille that falleth on the grass.
He came also stille to his moder's bour,
As dew in Aprille that falleth on the flour.
He came also stille there his moder lay,
As dew in Aprille that falleth on the spray.
Moder and mayden was never none but she:
Well may such a lady Goddes moder be.

6. This little Babe

This little Babe so few days old, is come to rifle Satan's fold;
All hell doth at his presence quake, though he himself for cold do shake;
For in this weak unarmed wise the gates of hell he will surprise.
With tears he fights and wins the field, His naked breast stands for a shield;
His battering shot are babish cries, His arrows looks of weeping eyes,
His martial ensigns Cold and Need, and feeble Flesh his warrior's steed.
His camp is pitched in a stall, His bulwark but a broken wall;
The crib his trench, haystalks his stakes; of shepherds he his muster makes;
And thus, as sure his foe to wound, the angels' trumps alarum sound.
My soul, with Christ join thou in fight; stick to the tents that he hath pight.
Within his crib is surest ward; this little Babe will be thy guard.
If thou wilt foil thy foes with joy, then flit not from this heavenly Boy.

7. Interlude (harp solo)

8. In Freezing Winter Night

Behold, a silly tender babe, in freezing winter night,
In homely manger trembling lies. Alas, a piteous sight!
The inns are full; no man will yield This little pilgrim bed.
But forced he is with silly beasts in crib to shroud his head.
This stable is a Prince's court, this crib his chair of State;
The beasts are parcel of his pomp, the wooden dish his plate.
The persons in that poor attire His royal liveries wear;
The Prince himself is come from heaven; This pomp is prized there.
With joy approach, O Christian wight, Do homage to thy King, 
And highly praise his humble pomp, wich he from Heaven doth bring.

9. Spring Carol

Pleasure it is to hear iwis, the Birdes sing,
The deer in the dale, the sheep in the vale, the corn springing.
God's purveyance for sustenance, It is for man, it is for man.
Then we always to give him praise, And thank him than.

10. Deo Gracias

Deo gracias! Deo gracias!
Adam lay ibounden, bounden in a bond;
Four thousand winter thought he not to long.
Deo gracias! Deo gracias!
And all was for an appil, an appil that he tok,
As clerkes finden written in their book.
Deo gracias! Deo gracias!
Ne had the appil take ben, the appil take ben,
Ne hadde never our lady a ben hevene quene.
Blessed be the time that appil take was.
Therefore we moun singen.
Deo gracias! Deo gracias! Deo gracias! Deo gracias!

11. Recessional

Hodie Christus natus est:
hodie Salvator apparuit:
hodie in terra canunt angeli:
laetantur archangeli:
hodie exsultant justi dicentes:
Gloria in excelsis Deo.
Alleluia! Alleluia! Alleluia! 


Ele é, para mim, o maior compositor inglês de todos os tempos, e poderia ser chamado de Benjamin Britain. (Trocadilho besta, mas vai ficar!)

Grande parte de suas as obras mais importantes, assim como a Ceremony, parece depender totalmente de sua biografia. Mesmo a parte “michael-jacksoniana” de sua vida é refletida em grandes obras, tanto no aspecto atração/culpa/punição (como nas óperas Morte em Veneza, cuja história todo mundo conhece, e em Peter Grimes, na qual um pescador é julgado pela morte de um jovem aprendiz, em circunstâncias um tanto quanto "venezianas"), quanto no aspecto Britten-como-mentor-de-jovens (como em uma de suas obras mais conhecidas, o Guia de Orquestra para Jovens, construído sobre um tema de Purcell, onde ele apresenta cada um dos naipes da orquestra, e depois junta todos numa grande fuga final):


Seu pacifismo, também, é evidente no War Requiem, onde o texto tradicional é intercalado com poemas facifistas de Wilfred Owen, morto em combate durante a Primeira Guerra Mundial. Essa obra estreou na reconsagração da catedral de Coventry, destruída num bombardeio em 1940, e é dedicada a alguns amigos do próprio Britten, entre eles os já então falecidos Roger Burney e Michael Halliday, mortos durante a Segunda Guerra:


Esse amálgama de referências pessoais e externas é uma constante em sua obra e, pelo menos para mim, é praticamente impossível escutar qualquer uma delas sem pensar na personalidade do próprio compositor. Como costuma acontecer com muitos outros grandes compositores (Chopin me vem logo à mente), acho impossível ouvir apenas sua música; eu sempre sinto que estou ouvindo o músico, o próprio Britten. É o contrário (novamente: na minha opinião) da "arte pela arte".

Para uma outra interpretação (muito mais profunda, obviamente) do compositor-como-personalidade, ouça o Cantus in memoriam Benjamin Britten, do Arvo Pärt, onde me parece evidente essa mistura de obsessão/angústia/redenção - uma elegia não só à morte, mas também à vida do compositor. Aliás, não apenas ouça! Veja o vídeo, onde os últimos segundos são uma das mais lindas demonstrações de que a música só acaba quando ela termina (ainda bem que ninguém tossiu na platéia!!!)!