domingo, 24 de novembro de 2013

De cadência

Pediram-me para falar um pouquinho de cadências, e graças aos céus me disseram que tipo tinham em mente pois, como todo mundo já sabe, música é uma bagunça, e essa palavra serve para designar várias coisas diferentes. O que me pediram para explicar foi isso aqui: aquela hora em que a orquestra toda para e o solista mostra o que é que ele sabe fazer com seu instrumento (ou com a boca, no caso de cantores); é o momento mais solo de um solista!

Esse nome esquisitinho, cadência, vem de um procedimento harmônico super-hiper-ultra comum que chama-se (adivinha só!) cadência, que é a "resolução" harmônica de um trecho musical. Está é um exemplo básico, conhecida como cadência autêncica perfeita:


(Essa é a partitura do arquivo midi daí de cima)

Durante uma música (tonal ou modal - algum dia eu explico a diferença - ou não, sei lá) ocorrem várias cadências harmônicas, para "avisar" que algo terminou (uma frase musical, um período, etc), e uma coisa nova vai começar. Algumas das mais importante são aquelas que marcam o final de grandes trechos distintos da música: depois dessa cadência harmônica daí de cima, por exemplo, vem um trecho completamente diferente.

Mas vamos falar do outro tipo de cadência. Da próxima vez que você assistir a uma ópera barroca, preste atenção: quase todo personagem, ao final de sua ária, sai do palco, o que era um pretexto para a platéia aplaudir e o cantor voltar rapidinho para colher os louros devidos (e interromper o andamento da ópera, infelizmente). Para provar que eu não estou mentindo, ouça a ária "Piangeró la sorte mia", da ópera Giulio Cesare, do Handel:


Os finais das árias costumavam ser mais ornamentados (os cantores é que geralmente "inventavam" os ornamentos durante a interpretação) e, com o tempo, tornou-se comum fazer uma pequena improvisação, um showzinho extra, durante a cadência harmônica final de seu solo, o que dava azo (adoro coisas que dão azo!) a mais aplausos.

Ó só essa ária "Qui l'augel da pianta in pianta", da cantata Aci, Galatea e Polifemo, do Handel:


- 4:18-4:25 - cadência harmônica que marca o final da primeira parte do solo;
- 4:39 - início da segunda parte da ária;
- 5:30-5:47 - cadência harmônica que marca o final da segunda parte, já muito ornamentada (já é uma cadência de solista);
- 5:48 - início da repetição da primeira parte da ária - note que a melodia agora está mais ornamentada;
- 10:15-10:40 - cadência (a mesma que você já ouviu em 4:18, só que agora mais longa, mais ornamentada, mais virtuosística.

Na verdade a cadência do solista adia a resolução do trecho musical - a cadência "de verdade" - e essa parte enxertada acabou ficando conhecida pelo nome do lugar que ela ocupa dentro do processo harmônico. A partir desse momento, a palavra cadência, que significava apenas um procedimento harmônico, passou também a ser usada para designar esse trecho em que a resolução propriamente dita é suspensa e o solista se exibe mais um pouco. 

Viu? Ficou fácil agora, espero!

Foi, então, o festival de cadência. Todo mundo interrompia a cadência e enfiava sua cadência no meio da cadência. Esse  enxerto podia ser improvisado, podia ser composto pelo próprio compositor, ou ainda podia ser previamente composta pelo intérprete, ao invés de improvisada na hora. O sucesso desse dessa empreitada dependia, obviamente, da competência do intérprete-compositor, e aposto que a maioria devia ser muito chatinha, apenas uma demonstração de pirotecnia e malabarismo vocal (ou instrumental). Tenho certeza que foi isso que levou os próprios compositores, cada vez mais, a escreverem as cadências que achavam mais apropriadas para a música em questão.

Mesmo assim, em se tratando do repertório até o Romantismo, é comum os intérpretes apresentarem suas próprias criações, inclusive no caso de já haver uma escrita pelo próprio compositor. Mozart, por exemplo, às vezes escrevia cadências para seus concertos, e às vezes não escrevia, mas o intérprete tinha (e ainda tem) total liberdade de botar de lado a cadência do Mozart e criar sua própria.

Um dos meus concertos favoritos, o Concerto para piano nº 20, em ré menor, do Mozart, é um caso célebre em que Mozart não escreveu a cadência, sendo que, geralmente, apresenta-se aquela escrita pelo Beethoven! Viu? Era também muito comum compositores escreverem cadências para obras alheias.

Aqui está a cadência do Beetho para o primeiro movimento desse concerto do Mozart:


Para quem quiser ouvir 26 minutos de exemplos, alguém teve a paciência de criar um vídeo com um monte de cadências diferentes para esse mesmo concerto. Interessantíssimo! Mas o primeiro exemplo do vídeo é a do Beethoven, e não do George Solti, como o dono do vídeo diz:

1. Georg Solti
2. Eric Heidsieck (2:26)
3. Edwin Fischer (3:46)
4. Robert Casadesus (6:06)
5. Frank Pelleg (7:10)
6. Keith Jarrett (9:08)
7. Helmut Roloff (10:53)
8. Guiomar Novaes (13:25)
9. Bruno Walter (14:09)
9. Yvonne Lefébure (16:19)
11. Arturo Benedetti Michelangeli (17:36)
12. Wilhelm Kempff (19:20)
13. Géza Anda (20:40)
14. Clara Haskil (21:57)
15. Karl Engel (23:55)


Algumas vezes a cadência pelo próprio compositor é tão fantasticamente maravilhosa que qualquer tentativa de substituí-la por outra costuma não dar certo. A cadência do 1º movimento do Concerto Brandenburguês nº 5, em ré maior, do Jotaésse Bach é um exemplo "imexível". Se alguém tentar tirar a original e inventar outra é capaz de ser atacado por uma horda de espectadores raivosos (mas eu adoraria ver alguém tentando!):

Cadência do 1º movimento:

(Dá medo! Parece que a música vai sair do instrumento e correr atrás de você para te morder!)

E o concerto inteiro, numa versão maravilhosa:


O Concerto para Piano nº 4, em sol maior, do Beethoven, é um caso levemente mais complicado, pois o Beetho escreveu duas cadências muito diferentes para o 1º movimento. Uma delas não é muito executada, pois é muito bombástica demais (na minha opinião, ao menos; mas deve ser a opinião comum, já que quase ninguém a toca). A mais conhecida é essa, seguida pelo final do movimento, quando a orquestra retorna, durante o trinado final da cadência. Maravilhosamente poético! Espetacularmente maravilhoso!:



Aqui, o 1º movimento inteiro:


Os mais corajosos podem enfrentar o concerto todo e aproveitar para identificar as cadências todas; cada movimento tem a sua. Vale a pena ouvi-lo inteiro! É uma das coisas mais impressionantemente lindas em matéria de concertos para piano, e quem assistir inteiro ainda ganha de brinde um "bachzinho":


Esse é outro daqueles casos impossíveis de serem alterados: se você quiser tocar outra cadência, pode, mas não vale a pena correr o risco. Vários tentaram escrever outras cadências para o 1º movimento (até Brahms experimentou), mas ninguém conseguiu inventar algo que chegasse perto do original.

O Beetho, por falar nisso, com seu jeito meio "não estou nem aí se isso é certo ou não; eu quero fazer e pronto!" um dia acordou particularmente intratável, xingando todo mundo, brigando com a humanidade inteira porque todo mundo colocava cadências sempre lá pelo final dos movimentos, e resolveu que "chega, cansei, a cadência é minha e eu ponho no lugar que eu quiser", e inventou de começar um concerto logo pela cadência.

Eis aqui, portanto, o Concerto para Piano nº 5, em mi bemol maior, op. 73, "Imperador", na interpretação de um dos meus "monstrinhos" favoritos, Arturo Benedetti Michelangeli. Preste atenção ao vídeo, pois não é sempre na vida que você vai "ouver" algo assim. Além de tocar divinamente bem, ter uma interpretação estupenda, um som maravilhoso, ele ainda é uma maquininha de fazer trinado; chega a ser irritante de tão bom:


Mas vamos às cadências deste concerto: já começa, de cara, com uma (pontuada por dois acordes da orquestra), antes de ter acontecido qualquer outra coisa na música, antes mesmo do primeiro tema, que só aparece quando ela acaba. Essa cadência "fora do lugar" volta aos 12:00, mais curta, para dar início à repetição da primeira parte do movimento. E ainda temos mais uma outra, pequena, no lugar "normal" (16:42), onde o Beetho escreve na partitura: "Não é pra acrescentar mais nada, é só prá tocar isso mesmo que tá escrito. E se inventar qualquer outra coisa eu volto pra te assombrar!". Essa cadência não chega a terminar direito, pois a orquestra entra "antes da hora", e o pianista a termina acompanhado. 

Aliás, não procure por cadências no segundo movimento, pois não tem, para compensar os "excessos" do 1º. Mas no terceiro movimento temos uma, pequena, aos 36:02. O Beetho é f... Ele sempre consegue, de algum maneira, chegar a um equilíbrio. Já que o 1º movimento tem várias, não tem nenhuma no 2º. Mas como o do 1º veio acompanhada pela orquestra (os acordes no meio das cadências 1 e 2), a do 3º movimento também vem acompanhada, dessa vez apenas pelos tímpanos e, ao invés de acordes bombásticos, temos apenas os tímpanos marcando o ritmo! É mais uma prova de que tudo vale, na música, se for bem feito!


Só mesmo o Beetho pra pensar nisso! Na verdade ele tirou a ideia - tenho certeza - de seu próprio Concerto para Violino, em ré maior, onde os tímpanos são importantíssimos. Esse concerto começa com um solo dos tímpanos, marcando o ritmo, e essa simples marcação vai gerar o movimento inteiro. É o único concerto para violino do Beetho, mas é o mais lindo que alguém já escreveu:


A primeira entrada do violino já é uma pequena cadência também. Detalhe importante: as espetaculares cadências deste concerto não são do Beetho; geralmente toca-se, como nesse vídeo, aquelas compostas por Fritz Kreisler, apesar de existem inúmeras diferentes, por inúmeros compositores/intérpretes. E, credo!, essa orquestra é assustadoramente boa! Depois de ouvir este concerto, com essa orquestra, não dá vontade de ouvir mais nada, nunca mais...

Então vamos descansar um pouco, conversando sobre blogs:






Já descansou? Voltemos, pois!

Resumindo: cadências podem aparecer em qualquer lugar em que haja uma cadência harmônica importante; podem ser curtas, podem ser longas, mas nunca deixaram de exercer o papel de realçar esses pontos importantes na estrutura da música.

Espero que eu tenha conseguido explicar direito! Mas não se preocupe se você nem sempre conseguir reconhecer uma cadência: há casos em que é muito difícil mesmo, e até os "especialistas" se estapeiam para chegar a uma conclusão sobre se é ou não é, onde começa, onde acaba, etc, etc, etc.

Ó só esse 1º movimento do Concerto para Piano nº 2, do Prokofiev. Quase metade do movimento é reservado para a cadência, uma das maiores, mas espetaculares, e mais difíceis que conheço:


E, para terminar, mais alguns exemplos de tipos diferentes de cadências:

Cadência acompanhada, no final do 3º mov. do Concerto para Violino em si menor, do Edward Elgar (0:44-7:22). Isso é só a cadência! O concerto inteiro dura uns 45 minutos!:


Cadência numa peça solo, do 3º mov. da Sonata para Piano em si bemol maior, K. 333, do Mozart (4:11-5:14):


Cadência para o 1º mov. do Concerto para Piano nº 22, em mi bemol maior, também do Mozart, composta pelo próprio pianista (Andrew von Oeyen). Óyen só com é bonita (o):


Rapsódia Húngara nº2, para piano, em dó sustenido menor, do Liszt, com a cadência composta por Rachmaninoff (8:28-10:36) - como se a Rapsódia já não fosse difícil o suficiente...:


E a cadência acompanhada (por uma flauta), da ária "Ardon gl'incensi", da ópera Lucia di Lammermoor, do Bellini:


Aqui, a ária inteira





domingo, 17 de novembro de 2013

Post-It: Têje preso!

Ó só essa notícia aqui:

Spanish pianist faces jail over noise pollution claims


Pianist Laia Martin in court in Girona, Spain (15 Nov. 2013)



Spanish prosecutors are seeking a 20-month prison sentence for a professional pianist whose former neighbour is suing over alleged noise pollution. Musician Laia Martin is on trial in Girona after her family's downstairs neighbour, Sonia Bosom, accused her of causing psychological harm.

Prosecutors are also demanding that the 27-year-old be banned from professional piano playing for six months. A verdict is expected within two weeks. Ms Martin's parents are also being sued and face a fine if found guilty.
Ms Bosom alleges that the pianist - a conservatoire student at the time - practised her piano for eight hours, five days a week from 2003-2007.
'Piano horror'

The alleged victim said she now has such a horror of pianos, she cannot stand even seeing them in films, reports say. Ms Bosom's lawyer said she had endured "four years of suffering," the Associated Press news agency reports.
In their defence, the Martin family said they had tried to soundproof the room, and that the practice had not been as constant as claimed. The public prosecutor had initially sought a jail term of over seven years for Ms Martin.

E eis aqui o resultado de milhões de horas infernizando a vizinha do andar de baixo:


Se a moda pega, era uma vez músicos. Ou será que o Estado vai pagar 8 horas de estúdio por dia para que possam praticar? Pior ainda: já pensou se ela estudasse trombone? Prisão perpétua!!!!!

sábado, 16 de novembro de 2013

Post-It: 3 x (1 x 4) = 1

Hoje estou com preguiça de escrever, então vai só 1 concertinho para 4 instrumentinhos em 3 versões diferentes. Mas pode confiar, é tudo a mesma coisa!

4 pianos: Kissin, Argerich, Levine, Pletnev (Concerto para 4 Pianos, em lá menor, BWV 1065, do Jotaésse Bach):


4 cravos: Pinnock, Gilbert, Mortensen, Kraemer (o mesmo Concerto para 4 Cravos, em lá menor, BWV 1065) - os três movimentos estão em vídeos separados:




E se alguém reclamou que a versão para 4 pianos não é a "original", aqui está o "original de verdade", para 4 violinos (Concerto para 4 Violinos em si menor, Op. 3, nº 10, do Antonio Vivaldi!):


E outra execução (para 4 violinos de novo), mais "tradicional":


Quem descobrir qual versão é a mais bonita ganha um prêmio!


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Schuchubert

Meudêus...

Fui hoje à noite a um concerto de nossa Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro, com o regente chileno Pedro Sierra, numa apresentação da série Concertos Internacionais. Vamos ver se o próximo presta.

Das peças chilenas apresentadas não vou falar, por dois motivos: A primeira peça, Andante para Cordas, de Alfonso Leng Haygus, pelo menos foi bem tocada; nisso, ao menos, parece que o regente se esmerou. Como me pareceu ser considerada um monumento da música chilena, acho melhor eu ficar quieto sobre seus méritos (segundo minha particularíssima opinião) para não mexer com os brios alheios. A segunda peça chilena, Tatio, de Sergio Berchenko, nem cheguei a ouvir, pois foi apresentada após o Schubert.

E a Sinfonia nº 3, em ré maior, D. 200, do Schubert (doravante conhecido como Schuchubert), meudêus... estava tão, mas tão ruim, que estragou a vontade de continuar a assistir ao concerto. Já não é uma grande sinfonia (mas ele tinha 18 aninhos e não é nem um pouco justo a compararmos com as sinfonias do Beethoven, seu contemporâneo bem mais velho); apesar disso, é uma música cheia de vigor rítmico, cheia de energia de gente jovem, e bem divertida, ingênua, gostosa de se ouvir. 

Quer dizer... deveria ser assim. O que nos foi servido, hoje, parecia uma massa mal cozida de ritmos molengos. O que era para ser ebulição de juventude virou um chá de schuschu, feito com água morna, bem longe do ponto de fervura.

O primeiro movimento me pareceu o mais palatável. Daí para a frente o jantar (que já não estava muito quente), foi perdendo cada vez mais energia e virou uma grande e morna sopa de notinhas. O segundo movimento, um lindo Allegretto, com sabor de dança antiga e cortesões educados fazendo mesuras, parecia uma carroça puxada por bois; não que estivesse lento, mas perdeu completamente a leveza característica da dança. Foi como se tivessem arrancado as asas de Pégaso e as tivessem grudado num hipopótamo: ele voou, mas o efeito não convenceu!

O terceiro movimento, meudêumeudêus... o pior de todos. Acentos agógicos (preguiça de explicar o que é isso; então nem vou tentar) fora de lugar, articulações inexistentes, respirações inexistentes. O regente passou do Minueto para o Trio (parte central do Minueto) como se ele tivesse tropeçado no batente da porta da sala e caído de cara  no banheiro; não passou de um trecho para o outro: ele deu a nítida sensação de que tinha tropeçado. Tropeçou tanto, mas tanto, que metade da orquestra se perdeu.

E, para terminar (para "acabar"), o 4º movimento: Presto. Não, não é do verbo prestar: eu presto, tu prestas ele presta; estava longe disso. Talvez não tenha sido tão ruim quanto o 3º movimento, mas, mesmo assim, não prestou. Novamente: ritmos pesados, fraseados inexistentes, respirações inexistentes, equilíbrio inexistente (e andamento arrastado)...

Tadinho do Schubert...

A orquestra também não ajudou, mas ponho grande parte da culpa no maestro, que me pareceu não estar prestando muita atenção no que fazia, ou não teve tempo de ensaiar, ou tinha acabado de descer do avião, ou sei lá o quê. De qualquer forma, a orquestra também não ajudou. Não sei se também faltou ensaio, se faltou tempo, ou se não levaram o serviço muito a sério por ser uma sinfonia de um "moleque" de 18 anos. Nunca foi uma orquestra lá muito precisa nos ritmos, e nesta noite estava pior que nunca. Em cada trecho de música com figurações mais rápidas parecia que haviam soltado no palco um "enxame" de vaga-lumes: cada um piscava na hora que bem entendia. Ou uma panela de pipoca, com seu matraquear rápido e aleatório, totalmente desencontrado. Triste...

Salvou-se, por comparação, a segunda peça do programa, o Concerto para Piano nº 27, em si bemol maior, do Mozart, com a pianista Lígia Moreno. Após um início meio traumático (parecia um Concerto para Contrabaixos e Violas, acompanhado por Orquestra e Piano - novamente, culpa do José, perdão, Pedro Sierra), foi entrando mais nos eixos (relativamente), e acabou sendo o mais divertido da noite, principalmente seu segundo movimento, Larghetto, com seus belos pequenos duetos de piano e flauta. Aliás, os melhores momentos da noite.

Um beijo para a flautista, que mereceu o "Prêmio Melhor da Noite". Pena que eu não possa dizer o mesmo de seu colega clarinetista, que parece ter errado todas as entradas de todos os solos.

Bom, acho que já fiz inimigos bastantes por hoje. Então, tchau!, e espero trazer melhores notícias numa próxima oportunidade.


domingo, 10 de novembro de 2013

Fetiches musicais 2: Estilistas

Não, não são costureiros, apesar de não faltarem fetiches no reino da moda, claro:



Os Fetichistas Estilistas, na música, como o nome já indica, são aqueles que só gostam de um estilo (ou período), e acham que todos os outros são "nhém-nhém": "Barroco é que é bom!!!". Também tem aqueles que acham que determinado período não presta: "Não tem nada que preste no século XX". Ou aqueles que acham, por exemplo, que Beethoven é o melhor (ou o pior) de todos, e que absolutamente tudo do Beetho é lindo (ou horroroso).

Enfim...

Eu também às vezes me pego "fetichizando". Acho Rachmaninoff, por exemplo, boring no úrtimo... Mas até eu consigo descobrir maravilhas em sua música (não toda), quando ela é extremamente bem executada, como todo mundo que leu meu post sobre "monstros do piano" sabe. Mesmo não sendo fã nº 1 do Rach, não acho que todo mundo que goste dele esteja errado!

O pior, em se tratando de fetichistas, é que eles são capazes de brigar com você se por um acaso você não partilhar de suas preferências. Isso serve para todos os fetichistas, de qualquer tipo, de qualquer arte. Quantas vezes você não se pegou discutindo com outra pessoa sobre, por exemplo, cinema? Vá dizer a um "fetichista hitchcockiano" que você não gostou de Os 39 Degraus. Sente-se perto da saída de emergência, pois a discussão pode sair do controle!

Existem, pelas minhas contas, 1.895.754 sub-gêneros de "fetichistas estilistas", e fico em dúvida sobre qual deles é mais interessante (alguns sub-gêneros são hilários!). É comum, depois de anos e anos convivendo com músicos (ou apreciadores de música), de repente você se descobrir cara-a-cara com um deles. Você até então achava que ele/ela era "normal como você" (pressupondo que você seja "normal", claro!), e então ouvir ele/ela dizer: "O melhor compositor para música de câmara é o Joseph Bodin de Boismortier!"

Para os que não são "fetichistas boismortierianos", aqui vai a Trio-sonata para Oboé, Fagote e Baixo contínuo, em mi menor, op. 37, nº 2, nessa encarnação representada por oboé, cello (no lugar do fagote), cravo e viola da gamba:


É lindo (eu acho), mas daí a dizer que é o melhor do mundo...

Também já me aconteceu de ouvir pianista dizendo que odeia Beethoven. Quem sou eu para dizer que ele/ela deveria gostar do Beethoven? Mas confesso que acho estranho alguém passar 20 anos estudando piano e não conseguir reconhecer a beleza disto aqui, por exemplo:


Mas essas duas sub-categorias (e algumas outras) de "fetichistas estilistas" são, a meu ver, apenas a maneira que eles adotaram para tentarem se diferenciar daqueles que gostam das coisas mais "comuns". É engraçadinho mas meio inócuo, pois todo mundo descobre a tática na hora!

Mais problemático, na (adivinha de quem?) minha opinião, é o "fetichista estilista de carteirinha", do tipo que só gosta de Classicismo ou qualquer outro(s) período(s) e automaticamente despreza tudo o mais que existe no universo. Não é muito diferente das pessoas que dizem "Não suporto música clássica", ou "Não suporto música popular", numa mistura de elitismo com ignorância (no sentido verdadeiro de não conhecer) que beira o preconceito (estou sendo eufemista!), e que me dá uma tristeeeeeza...

Porque as pessoas acabam gostando, sim, de muita coisa, se forem apresentadas devidamente a elas. Nada é mais comum do que alguém dizer que não gosta de música clássica e depois de 5 minutos você escutar o celular dela tocando Bach! Ela não sabe que aquilo é música clássica, e muito menos que aquilo é o Jotaésse. Quando você diz a ela que é música clássica ela toma um susto, e logo vem perguntar se você tem uma gravação da música inteira para ela ouvir! Fato verídico! Já aconteceu comigo! E o Bachzinho que ela adorou era esse aqui:


Claro que só a conhecia tocada naquele sonzinho irritante de celular. Mas já gostava! 

E, por falar em sonzinho irritante, descobri um vídeo no IúTúbi  dessa fuga tocada em taças de cristal. Adorei!:


Mas, voltando ao assunto: quem não gosta de música clássica e também não gosta dessa fuga do Bach, provavelmente gosta disso aqui:


Se não gosta nem do Bach, nem do Vivaldi, deve gostar disso:


Se não gosta do Bach, nem do Vivaldi, nem do Ravel, deve gostar disso aqui:


Se não gosta de Bach, nem de Vivaldi, nem de Ravel, nem de Satie, desisto, e dou meus parabéns a essa pessoa: ela conhece tudo mesmo e realmente não gosta de música clássica. Ou é muito teimosa para admitir que gosta.

Mas eu sou chato (surpresa!!!!), e mais teimoso do que ela, e vou tentar de novo:


Se não gostar nem mesmo do Gershwin, já começa a parecer fundamentalismo. Para lutar com fundamentalistas, só mesmo apelando para isso aqui:


Doze entre dez noivos que não gostam de música clássica escolhem isso para tocar no casamento, parece. E daí são os fundamentalistas da música clássica que vão torcer a boca, revirar os olhos, e fazer cara de pouco caso. Os dois estão errado, acho:

- Quem não gosta de música clássica e gosta da Ave Maria do Bach/Gounod acabou de confessar que gosta sim!, nem que seja só dessa música e de poucas outras;

- Quem gosta de música clássica e não gosta disso é porque, a meu ver, deixa seu preconceito tomar a dianteira, e confessa sem querer que não entende de música clássica.

Obviamente nem todo mundo que gosta de música clássica é obrigado a gostar da Ave Maria, porém o mais comum é tentarem racionalizar/explicar o porquê, e dizerem que não gostam por ser uma "deturpação" da música do Bach, sem saberem (ou se esquecerem) que o próprio Bach adorava fazer isso, como é mais do que claro ao se ouvir (quase) qualquer uma das cantatas do Jotaésse, onde ele pega uma melodia que não é dele e a usa como base para sua música, como no coral do vídeo abaixo, uma das obras mais conhecidas por todo mundo que não gosta de música clássica. E não, não é necessário se acreditar em nada (nem em Shakespeare) para se gostar desse coral:


O procedimento de se pegar música alheia e jogar mais música por cima é uma das coisas mais comuns e antigas da música clássica, e acredito que, se não fosse isso, estaríamos condenados a ouvir cantochão pelo resto da eternidade. Não quer gostar da Ave Maria, não goste, mas não venha me dizer que o motivo é esse! Tadinho do Gounod... Ele só estava fazendo o que era comum se fazer desde o século IX, pelo menos, e que não deixou de acontecer desde então. É como alguém dizer que não gosta de "Renascer", cantada pela Zizi Possi, porque ela é uma "deturpação" do original "O Cisne", do Saint-Saëns:




É possível gostar das duas coisas ao mesmo tempo, creio... E se não gostar, também não tem problema, fique à vontade. Mas não diga que não gosta porque não é a versão "de verdade", pois você gosta de um monte de coisas que não são "de verdade", aposto!

Por falar em "O Cisne"/"Renascer" e Prelúdio em dó maior/Ave Maria, me lembrei de uma versão espetacular (para mim), da Ave Maria:


Como sempre, eu vou emendando uma ideia na outra e acabo me perdendo... Eu já tinha avisado neste post que eu caminho em círculos; eu juro que eu tento ser straight (pelo menos aqui no Blog), mas sempre acabo entrando pelo cano né? Falei , falei, falei, e acabei não chegando aonde eu queria, que era mostrar que em todo e qualquer período tem coisas boas, coisas ruins, coisas excelentes, coisas medíocres (medianas). Teremos que dar uma volta de mil anos pela música clássica se quisermos descobrir ao menos 1 ou dois exemplos excelentes de cada período, e isso vai levar um certo tempo (menos que 1.000 anos, espero), então vamos deixar para uma outra vez, ok?

Portanto, está na hora de terminarmos, ouvindo mais uma exemplo de "apropriação indébita" de música alheia. O coral Deum verum, de Étienne de Liège, do final do século IX, em que ele pega o canto gregoriano original e simplesmente adiciona outras vozes, em certos trechos, exatamente como o tadinho do Gounod fez:


Duvido que alguém dirá que é uma "deturpação"!

sábado, 9 de novembro de 2013

A 2 é bom!

Você agora já sabe COM CERTEZA o que é música de câmara, certo? Parabéns pra você!, porque eu ainda tenho dúvidas! Mas vamos fazer de conta que a definição de "música de câmara" é simples e sem problemas e, já que é a primeira vez que iremos juntos para a câmara, comecemos só a 2 mesmo, e depois chamaremos outros para participar. Mas a 2 é bom, pode confiar!

Pode parecer que música de câmara para dois instrumentistas é a mais simples de todas, não é? Porém, devido justamente ao reduzido número de executantes, é também uma das mais complicadas. Explico-me (espero que consiga): 

Existe, na música, uma coisa chamada registro, que significa o intervalo de notas que um instrumento (ou voz) é capaz de produzir. As vozes soprano, tenor, etc, cantam em registros diferentes (mais graves, mais agudos, mais "médios", etc). Com os instrumentos também acontece a mesma coisa, e cada família de instrumentos também tem, geralmente, membros de vários registros. As cordas têm, do mais grave para o mais agudo, contrabaixo, violoncelo, viola, violino. Por falar nisso, as antigas (atualmente ressuscitadas) violas da gamba também vinham em famílias, como nessa linda foto da família Gamba passando um domingo no parque. Faltou só a toalhinha xadrez!:


Até instrumentos que acreditávamos viver sozinhos (o saxofone, por exemplo), na verdade possuem famílias muitas vezes numerosas, mas pouco conhecidas, que não saem muito de casa:


São lindas as famílias de instrumentos! Eu queria ter todos! De todas as famílias! Mas como não posso, vou voltar para o assunto original, pois arranjar um mísero instrumentinho que esteja disposto a dividir a câmara com o meu próprio instrumento já anda difícil...

Eniuêis... Se apenas dois instrumentos vão para a câmara, há apenas duas possibilidades: ou os instrumentos são diferentes, ou são iguais (dãããã). Se são instrumentos de registros iguais, vai ficar lindo, mas tudo muito parecido, sem muitas opções para se variar; são tão parecido, mas tão parecidos, que as possibilidades vão logo se esgotar. Se são de registros diferentes, vai ficar lindo também, mas são tão diferentes, tão diferentes, que corre-se o risco de um estar tocando em Vênus e o outro estar tocando em Marte, com um monte de espaço vazio entre eles.

Para se resolver esse problema, adivinha o que usavam? O nosso já velho conhecido baixo contínuo, que não só preenchia os espaços vazios como também trazia variedade à sonoridade do grupo. Esse é um dos motivos pelos quais a música de câmara do Barroco para solo ou para duo geralmente não é nem solo nem duo, e vem acompanhada do B.C. 

Porém, ai porém, no final do Classicismo o basso continuo estava desaparecendo, desaparecendo, até que desapareceu, e o repertório de música de câmara para dois instrumentos melódicos (iguais ou diferentes) praticamente desapareceu também.

Abre parênteses: instrumento melódico é aquele que, a principio, só consegue tocar uma nota de cada vez (quase todos os instrumentos), e harmônico é o instrumento capaz de tocar várias notas simultaneamente (os de teclado, os alaúdes, guitarras, violões, etc). Fecha parênteses.

Música de câmara apenas para dois instrumentos melódicos não é lá muito comum. Como estou com preguiça de procurar exemplo, nem vou tentar, e colocarei apenas 2 dos poucos de que me lembro, de época muuuuuuuito mais recente que o Classicismo. As Bachianas nº 6, para Flauta e Fagote, do Villa-Lobos (1º movimento, "Ária-choro"), para instrumentos diferentes (claro):


E o 2º movimento da Sonata para 2 Violinos, op. 56, do Prokofiev, para dois instrumentos iguais (claro de novo):

(Lindo!!!!!)

Mas agora vamos à combinação melódico+harmônico. Para a felicidade de todos os pianistas, naquela época (século XVIII) o pianoforte e o fortepiano começaram a fazer muito sucesso (para a infelicidade dos cravistas e dos demais instrumentistas, que até hoje são revoltados com o piano), e começaram a assumir a função do baixo contínuo. Mais ou menos isso, na verdade, pois o som do pianoforte e do fortepiano era mais potente e mais versátil que o do cravo e outros instrumentos de teclado antigos (à exceção do órgão, mas este estava confinado nas igrejas e teatros, e nunca foi considerado de câmara), e ele, o "pianofortista", começou a dominar a música de câmara, deixou de ser "enchimento" musical, e passou a ser protagonista.

Dessa maneira, a maior parte do repertório a 2 é para a combinação piano (ou seus ancestrais) + algum instrumento melódico. Como o piano era tão versátil e completo, os compositores o adoravam, e muitas vezes o instrumento melódico era parte dispensável da composição. Uma sonata para piano e violino do início do Classicismo podia muito bem ser tocada (e era) apenas ao piano, pois a parte do violino costumava ser apenas uma duplicação da melodia tocada pelo piano. O mesmo podia acontecer com um trio para piano, violino e violoncelo, onde o violino duplicava a melodia do piano, e o violoncelo, a linha do baixo (simplificando: aquela tocada pela mão esquerda do pianista). Claro que a sonoridade acabava prejudicada pela exclusão das cordas, mas nenhuma nota da música deixaria de ser tocada.

Como já vimos neste post, um dos fatores para tamanha versatilidade/indefinição/bagunça era o fato de se tentar apelar ao maior número possível de compradores de partituras. Os cubículos já não eram apenas aristocráticos; todo burguês que se prezasse também queria fazer música em sua própria casa, e a música de câmara dessa época, mais que todas as outras épocas, talvez, era dirigida principalmente a amadores. Os compositores faziam o possível para que suas músicas pudessem chegar ao maior número de lares, que não necessariamente tinham um cravo (ou outro instrumento de teclado) e mais um violino (ou flauta ou obóe, ou etc.), e mais um violoncelo (ou viola da gamba, ou fagote, etc, etc.). Escrevia-se música que posse passível de ser interpretada de várias diferentes maneiras, e cada câmara (ou salão aristocrático, ou tavernas, ou etc.) usava os instrumentos que tinha: "Se só tem tu, vai tu mesmo".

Os compositores conseguiram, pela primeira e última vez na história, levar música clássica ao vivo para todo mundo. A música "clássica" era tão "popular" que revistas semanais chegavam a publicar partituras como se fossem capítulos de novelas. Ó só que maravilha: toda semana você comprava uma edição de Caras e, ao invés de ganhar uma faca para churrasco, ganhava um movimento de música. No final do mês você tinha uma sonata inteirinha para tocar, além de ficar bem informado de todas as fofocas da cidade!


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Uma câmara para 2, ou 3, ou 4, ou 5, ou 6, ou 7...

Música de câmara, como a entendemos hoje, se refere àquela executada por um número reduzido de intérpretes, cada um deles executando uma "parte" da música (partitura vem daí: a parte que você toca). Pode ter, sei lá, nove músicos, mas cada um tem uma parte diferente, e ninguém toca a mesma coisa. Digamos que seja um sexteto de cordas, para 2 violinos, 2 violas e 2 violoncelos: apesar de os instrumentos estarem em duplas, cada um deles terá sua própria parte, diferente das demais (6 partes diferentes).

Mas nem sempre foi assim... Música de câmara, no princípio, era denominada musica cubicularis, e significava simplesmente que era para ser executada em recintos privados. As outras categorias eram musica ecclesiastica e musica theatralis

Se a música era feita para ser apresentada em locais privados, era de câmara. Podia ser instrumental, podia ser vocal. Podia ser qualquer coisa, desde que fosse executada no cubículo de alguém. Também podia ter qualquer número de intérprete, dependendo apenas do tamanho do cubículo em questão. Como os recintos privados costumavam ser menores que igrejas e teatros, geralmente os grupos também eram menores, claro, pois menos volume de som era necessário para se encher o espaço.

De acordo com esta definição os Concertos Brandenburgueses, do nosso amigo Jotaésse Bach, são música de câmara, apesar de não mais entendermos concertos como de câmara. Além do mais, cada uma das partes desses Concertos pode ser executada por mais de um músico (à exceção de algumas partes para solistas). Talvez pudéssemos chegar a um meio-termo, e dar o nome de concertos de câmara a essas criaturas. Muita gente chegou a essa mesma conclusão (saco... eu não sou único em nada...), e é comum vermos rótulos como Concerto de câmara, Sinfonia de câmaraOrquestra de câmaraCantata de câmara, para designar a música composta para pequenos grupos onde pode haver uma ou mais partes executadas por mais de um músico. O adjetivo pequenos também é relativo, claro, pois existem orquestras de câmara com 50 - ou mais - músicos).

Com essa nova definição, porém, jogamos fora o sentido original de música "de câmara", e nada me impede, atualmente, de escrever uma ópera de câmara (existem algumas, por falar nisso): ela vai ser como uma ópera "de verdade", só que para menos instrumentos, talvez com menos cantores, um coro menor (se tiver coro, claro), ou duração menor que o padrão (que não existe). Vai ser theatralis, mas vai ser cubicularis.

Da mesma maneira, as antigas sonatas da chiesa, que são para pequenos grupos, deixaram de ser de igreja e passaram a ser consideradas de câmara, atualmente.

Mais uma complicação: se uma música necessita de dois ou mais músicos para ser executada, a consideramos (me recuso a escrever consideramo-la) de câmara, mas se tem um só, já a colocamos em outro compartimento, reservado aos solos e, ao invés de irmos à um recital de música de câmara, iremos, nesse último caso, a um recital de 'instrumento X'.

Portanto, surpresa!, chegamos mais uma vez à conclusão de sempre: música é uma bagunça!

Então, antes de falarmos de música de câmara (incrível!, o assunto nem começou ainda!), façamos um trato: vamos usar a definição mais comum, e chamemos "de câmara" aquela música para 2 ou mais instrumentistas, onde há apenas um músico para cada uma das partes. Deixemos de fora, portanto, toda a música vocal e toda a música em que há parte(s) executada(s) por mais de um instrumentista.

Agora ficou fácil, não ficou?

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Socorro! Tem um monstro no piano!

A inveja é uma m...., eu sei. Mas, fazer o quê? Confesso que tenho inveja de alguns "monstros do piano", e adoraria ser tão bom quanto eles; porém dá tanto trabalho, tanto trabalho, mas TANTO trabalho, que compensa deixar que eles pratiquem 12 horas por dia, e depois eu vou lá no YouTube e me aproveito do esforço alheio. 

Como eu sei um pouquinho só de piano, e menos ainda de qualquer outro instrumento, só consigo reconhecer "monstrinhos ao piano". Dos outros - demais instrumentistas, cantores, regentes - eu gosto ou não gosto (apesar de geralmente saber o porquê), mas não conheço tantos assim para poder dizer quais meus preferidos. Na verdade até tenho alguns favoritos, mas será assunto para outro dia!

Saber um pouco de piano já me causa alguns problemas, pois minha opinião não necessariamente combina com a opinião generalizada, e às vezes ouço críticas à minha crítica. Por exemplo: eu acho o Maurizzio Pollini um chato, apesar de (quase) todo mundo o considerar um dos "monstros do piano". Já tive oportunidade de ouvi-lo ao vivo (duas vezes), e nas duas vezes achei-o de uma "enfadonhice" tremenda. A técnica é linda, elegantíssima, o som é perfeito, mas é chaaaaaaatooooooo.

Um vez eu disse isso a um conhecido que adora o Pollini e, é claro, logo ouvi de volta: "Se você fosse tão bom quanto ele, estaria viajando pelo mundo, tocando, ao invés de ficar criticando".

É óbvio que ele estava certo, e não sou nem 0,01% tão competente quanto o Pollini! Por outro lado, minha competência infinitamente menor que a do Pollini não me obriga a gostar dele, de forma alguma! Seria o equivalente a eu achar que todos meus conhecidos são obrigados a gostar do Roman Polanski. Já que nunca fizeram um filminho que fosse, pela lógica eles deveriam parar de criticar qualquer cineasta e gostar de todos os que são "consagrados"! Não é isso o que acontece, claro, já que todo mundo tem direito à opinião (eu, inclusive), embasada ou não. Grrrrrrrr-au-au!

Isto posto, vamos conhecer alguns dos meus "monstrinhos" favoritos. MEUS "monstrinhos" favoritos! Não estão por ordem de preferência, competência, nem qualquer outra ordem, aliás! E fiquem à vontade para discordarem, e mais à vontade ainda para me sugerirem outros!

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Fetiches musicais 1: fidelidade ao original

Vou logo avisando: esse post vai ser complicado, e muito técnico! Muito técnico mesmo! Se você quiser algo mais leve, divertido, pode clicar AQUI. Não diga depois que eu não avisei!


O mundo é redondo, mas as pessoas são chatas... (inclusive eu, por falar nisso!). As mais chatas, musicalmente falando, são as "fetichistas musicais", criaturas que têm uma preferência musical (qualquer uma) e que automaticamente desprezam as demais possibilidades. Como qualquer outro tipo de fetiche, várias modalidades são possíveis:

- Fetiche pelo original: "Eu só ouço o original, pois é muito melhor!";
- Fetiche (ou anti-fetiche) por épocas ou estilos: "Depois do Barroco, nada mais presta", "Não ouvi quase nada de música moderna, mas o século XX não tem nada que se aproveite!";
- Fetiches por instrumentos: "Esse cravo é tão ruim que tem som de pianola de criança, mas tudo fica mais bonito tocado nele!";
- Fetiche por número de participantes: "É claro que música de câmara é MUITO melhor que música orquestral";
- Fetichistas Definitivos, os piores de todos: sabem tudo, entendem de tudo, e têm opinião definitiva, única, sobre tudo: "Essa é a única gravação boa que existe dessa música", "Esse é o único compositor que presta", etc, etc, etc. São os Fetichistas mais bonitinhos: tão irritantes que chegam a ser engraçados. Como certo alguém que, há muito muito tempo, sorrindo da falta de cultura de outro alguém, veio me dizer que Mozart NUNCA havia escrito um quinteto de cordas. Mozart escreveu, sim, vários quintetos para cordas, mas isso não é o importante! O importante é que essa pessoa SABIA COM CERTEZA que não existia nenhum quinteto do Mozart: "Eu nunca ouvi, então é óbvio que não existe!"

Os Definitivos são hilários, mas vamos falar dos Fetichistas Fiéis, que também são engraçadinhos!

A princípio, até concordo que os originais são melhores (para mim, ao menos). Não no sentido de serem melhores por algum motivo metafísico - os céus não penduram cartazes nos avisando qual versão eles preferem, claro - mas apenas por representarem melhor a imaginação do compositor em questão. Prefiro, portanto, tentar me ater ao original.

Até aqui estou me incluindo entre os Fetichistas Fiéis, claro. O problema, a meu ver, começa quando não se compreende que o original é, via de regra, uma versão.

Vou tentar me explicar:

Para mim, toda música é uma versão de um original que nunca existiu. A música clássica é uma coisa muito chata, nesse aspecto, pois aquilo que ouvimos é uma execução de uma interpretação de um texto que é um registro (falho) daquilo que o compositor está imaginando. São tantos níveis de transcrição (cérebro - símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura - execução) que o conceito de "original" já começa a ficar meio nebuloso.

O pior é que a cada transcrição o número de possibilidades diferentes aceitáveis vai aumentando. A última (interpretação da leitura - execução) é a mais facilmente "entendível": pegue 10 instrumentistas, tranque todos eles numa sala por um mês, até que cheguem a uma conclusão comum sobre o significado de um texto musical específico. Em seguida, peça para todos tocarem a peça em questão. Todos concordaram com uma única interpretação do texto, nos mínimos detalhes, mas com toda a certeza você ouvirá 10 execuções diferentes, cada uma tão original (no sentido de fiéis) quanto a outra. 

"Mas isso é culpa do intérprete!", responde o fetichista.

Pode até ser! Mas a solução seria abolirmos os coitados dos intérpretes e passarmos a "ouvir" música apenas lendo a partitura. Ao invés de baixar música para seu Ipod você começaria a baixar partituras (que também não são necessariamente "originais") e, ao invés de ouvir, você começaria a ver filminhos de partituras passando na frente de seus olhos. Não seria muito prático, convenhamos, nem daria certo: se música fosse feita para ser apenas vista ela teria nascido pintura ou escultura...

O Stravinsky costumava chamar os intérpretes de "excrecências vãs". Para ele, os intérpretes deveriam tocar suas músicas (do Igor, claro) como se fossem máquinas de costura, sem "interpretação", sem imaginarem nada, sem tentarem expressar coisa alguma. Nada contra sua opinião - cada um tem a sua! - mas o próprio Stravinsky, quando gravava suas obras, não seguia sua própria instrução; há, por exemplo, duas gravações suas da Sagração da Primavera, uma de 1940 e outra de 1960, com diferenças consideráveis entre elas. Talvez ele tenha trocado de máquina de costura, ou a correia da máquina estava ficando já gasta em 1960, ou ele mudou a maneira de pedalar a máquina, ou sei lá o quê... só sei que são diferentes! Eu não encontrei as duas versões no Iútúbi, então não vou colocar nenhuma, mas pode confiar, são diferentes!

E isso porque só estamos falando de "interpretação da leitura - execução". A transcrição seguinte é mais complicada: a "leitura - interpretação da leitura" é um problema muito sério na música clássica. Pra começo de conversa, é muito difícil separar esse nível dos níveis acima; geralmente a sequência "símbolos - escrita - leitura - interpretação da leitura" é uma grande bagunça, onde os níveis se misturam constantemente, e onde a maioria das questões relativas à fidelidade ao original emergem.

Primeiro de tudo, a escrita musical é como qualquer outra escrita: ela evolui. O que significa "y", hoje, pode ter significado "x", anteriormente. Confusões "simbólicas" podem inclusive existir durante um mesmo período histórico. O Haydn e o Mozart, apesar de viverem no mesmo período, na mesma cidade (parte do tempo, ao menos), e escreverem no mesmo estilo, às vezes usavam símbolos diferentes para indicar a mesma coisa.

Segundo: a escrita musical, apesar de muito evoluída e complexa, continua sendo apenas uma representação muito capenga do "objeto" real, o som. Ela não dá conta de todos os parâmetros variáveis da música, e muitas vezes essas variáveis não são escritas pelo compositor. Nosso amigo Jotaésse Bach é um que não costumava, por exemplo, colocar indicação de andamento ("velocidade", digamos), pois todo mundo à época sabia qual era o andamento certo. Eu não acredito que era tão simples assim... Duvido que o mundo inteiro soubesse qual era a velocidade certa e, se soubessem, duvido que todos concordassem. O que eu acho que acontecia é que o Bach estava sempre por perto quando sua música era executada, sendo mais ou menos inútil indicar a velocidade "certa". Também acho que, mesmo com o Jotaésse bem ali do lado, o andamento podia muito bem mudar, dependendo das circunstâncias: uma música poderia muito bem ser tocada com um andamento mais rápido num salão cheio de cortinas que absorvem sons, ou mais lento se executada dentro de uma igreja que tivesse um acústica cheia de reverberações; ou o Bach estava animadinho naquele dia, ou estava mau humorado, ou tinha um compromisso mais tarde, sei lá...

Mas não existem dúvidas apenas a respeito de andamentos. As próprias notas musicais também apresentam inúmeros problemas. Duvida? Dê uma olhada, então, nessa página do manuscrito do Quarteto Op. 95, do Beethoven:


sábado, 26 de outubro de 2013

E o que diria a juventude?

Poizé... Muita gente, quando pensa em música clássica, imagina um bando de senhores vetustos, como estes compositores aqui:

Beethoven 


Wagner


Béla Bartók 


Verdi


Ravel


Monteverdi

Fica parecendo que todo compositor da música clássica nasceu com pelo menos 50 anos, ou que só a partir dessa idade é que decidiram mudar de vida: "Pronto, já tá na hora de começar a escrever música clássica, pois estou ficando velho demais pra tocar rock!"

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Virados pra Lua

Li recentemente um livro onde a "criatura escrevente" falava sobre a visão que o século XX (lembra-se dele?) tinha sobre sexualidade, em comparação com a visão do século XIX. Até aí, nada de novo... Mas era um livro sobre música, e o cara na verdade estava tentando explicar que essa mudança de visão sobre sexualidade havia afetado a maneira de ouvirmos e entendermos o primeiro movimento da "Sonata ao Luar", do nosso amigo Beetho. Foi uma experiência interessante, confesso, fazer "aquilo" com o Beetho! (Minha desculpa é que eu estava meio bêbado, não tinha nada pra fazer no momento, o Beetho era um cara muito interessante, a conversa estava boa, o vinho estava gostoso, a música era excelente... Resumindo: fiquei curioso e não resisti!)

Claro que a experiência daquela noite não saiu mais de minha cabeça. Passei a escutar a "Sonata ao Luar" o tempo todo (deve ser por isso que não existem ex-"lunáticos": a curiosidade só aumenta....), e comecei a futucar outros compositores que também não tinham conseguido resistir à curiosidade de experimentar esse prazer noturno. E quer saber? Muitos se renderam, ao menos uma vez, a seus encantos!

Então, por falta do que fazer, resolvi compilar uma listinha de exemplos "lunático-clássicos" (Compilar... êita verbo feio! Se alguém descobrir uma só conjugação que preste, vai ganhar um prêmio!) :

Compilemos, pois, e comecemos pelo celebérrimo "Clair de Lune", do Debussy (que, aliás, faz parte de uma suíte, a Suite Bergamasque):


Pierrot Lunaire, op. 21, do Schoenberg. Aqui vai apenas a 1ª parte, "Mondenstrucken":


Tem também a "Melodia Sentimental" (que também é parte de outra suíte, A Floresta do Amazonas) do Villa-Lobos, e uma de suas canções mais conhecidas. TODO MUNDO já gravou isso, em todos os estilos (imagináveis ou não). Até as pessoas que "não suportam" música clássica a adoram:

(Ninguém sabe pronunciar o português direito, mas, excetuando esse "problema", é uma gravação linda, a melhor de todas que já ouvi)




O nosso amigo F. Schubert é outro que compôs canções "lunáticas", como a  "Der Wanderer an den Mond", D. 870, uma de suas mais importantes canções:


Tem muitas outras ainda, pois Schubert parece ter sido fascinado por esse astro (também, basta ver sua "cara de Lua" para notarmos que ele não iria nos decepcionar).


Outra de suas canções, "An den Mond", D. 193 (poema de Ludwig Hölty) é, aliás, uma homenagem à Sonata ao Luar, do Beetho:


(Lindo demais!)

Schumann também musicou esse mesmo poema:

(Quase consegue ser ainda mais linda que a versão do Shcubert)

E Brahms, novidade!, também musicou esse mesmo poema! Mas vamos ouvir outra de suas canções, a "Mondnacht":


O Schumann também tem uma "Mondnacht", para o mesmo poema, claro... TODO MUNDO usava os mesmos poemas zilhões de vezes; alguns até usavam o mesmo poema mais de uma vez, como as duas versões do Schubert (D. 259 e D. 296) para o poema "An den Mond", do Goethe (diferente do "An den Mond", D. 193, daí de cima, que é de outro poeta):


(Para quem está deseperado por saber minha opinião: eu gosto mais da segunda versão)

Há outra canção "An den Mond", dessa vez do Hans Pfitzner, para o mesmo poema do Goethe que Schubert usou:


Ou seja: daria para montar um recital inteiro de canções com apenas 2 ou 3 poemas. (Não sei como é que ninguém pensou nisso antes. Pelo menos EU nunca soube de um recital assim, mas adoraria ouvir! Taí a dica, para quem quiser.)

O Debussy era outro com "cara de Lua":


Claro que ele também não nos decepciona, pois compôs uma renca de obras "lunáticas" (além da "famosésima" "Clair de Lune" daí de cima), entre elas:

"La Terrasse des audiencies au clair de lune", o número 7 do Segundo Livro de Prelúdios:


Ou a canção "Clair de lune: votre âme est un paysage choisi" (poema do Verlaine), que também exite em duas versões:

A versão de 1882:


E a versão de 1891:



E ainda tem a versão do Gabriel Fauré, sobre o mesmo poema:


Tem mais outra "Clair de Lune", da Suíte para órgão, Op. 53, do também francês Louis Vierne, um dos bons compositores franceses da segunda metade do século XIX que praticamente sumiram do repertório (Aliás, os franceses do século XIX eram fascinados por música para órgão, e qualquer dia eu vou ter que "postar um post" sobre esses compositores):


Até a NASA (quem diria?) também já se interessou pela Lua, e alguém lá teve o trabalho de também compilar uma lista bem interessante de músicas "lunáticas", porém com ênfase na música popular americana, cráro: http://moon.nasa.gov/moonsongs.cfm.

Então, só para não dizer que eu não falei da Lua brasileira "popular", aqui vai uma das minhas favoritas, "Lua Branca", de Chiquinha Gonzaga:

(Linda demais!!!!!!)

A Lua, porém, não sobrevive apenas em peças pequenas. Para terminarmos em grande estilo, portanto, vamos para Il Mondo della Luna, a ópera doidinha do Haydn na qual um astrônomo tenta convencer um incauto cidadão da existência de vida lá em cima, e o despacha para lá numa viagem regada a ópio, com direito a encontro com o Imperador da Lua. Eu havia colocado um vídeo da ópera inteira, mas ele foi retirado do YouTube, e teremos que nos contentar com um trechinho minúsculo:


Boa viagem!

sábado, 14 de setembro de 2013

WQSZHWVHOB

Eu disse, aqui, que música é uma bagunça! Outra bagunça, maior ainda, é a organização das obras dos compositores...

A maneira mais comum de organizá-las é dar um número de opus (que geralmente aparece abreviado, Op., ou no caso de se citar várias obras, Opp.) a cada uma das publicações publicadas (tá feio, eu sei, não precisa me dizer!) pelo próprio compositor. Tipo assim, ó: "Vou publicar uma pecinha minha. Será minha primeira publicação, então ela será para todo o sempre conhecida como Pecinha, Op. 1. Daí eu publico mais três pecinhas juntas, e o grupinho será para todo o sempre conhecido como Três Pecinhas, Op. 2, nos. 1, 2 e 3. Ou seja, o opus se refere ao número da publicação, e não à numeração das obras individuais ou à ordem de composição das mesmas. O Beethoven era mestre em publicar fora de ordem. Seu Concerto para piano e orquestra nº 1, op. 15, foi composto depois do Concerto para piano e orquestra nº 2, op. 19, mas publicado antes. Outros exemplos existem dessa falta de ordem cronológica nos números de opus de suas obras, assim como em obras de inúmeros outros compositores. 

Por um motivo ou outro, nem tudo era publicado. Mesmo compositores que publicaram quase tudo, só quase tudo foi publicado, como também acontece com Beethoven. Nesse caso, muitas obras aparecem como "WoO x" (de Werke ohne Opuszahl - obra sem número de opus). Nas obras de Brahms, Mendelssohn (entre outros), não é incomum encontrarmos WoOs.

Até aqui, nada de muito complicado. O problema maior começa quando tratamos de compositores cujas obras raramente foram publicadas, como as do Antonio Vivaldi, que só publicou até o opus 12, um total de "apenas" 100 obras dentre as mais de 800! Resultado: tenta-se colocar ordem na bagunça, às vezes colocando as obras divididas em tipo (vocal, instrumental, câmara, orquestral, ópera, ou qualquer outra coisa), ordem cronológica de composição (Quando é possível se saber. Se não for possível, em alguns casos, vai na ordem provável!), ou, como foi feito pelo menos uma vez (por Alessandro Longo, com as sonatas de Domenico Scarlatti), pela ordem que ele achava "mais legal". (Não foi tão simples assim, mas foi quase! Um dia eu falo disso - ou não, sei lá...)

As obras do Beetho, por falar nisso, também foram organizadas em vários catálogos, que quase nunca são utilizados por se referirem não só às "WoO"s mas também às obras inacabadas, das quais só existem rascunhos, anotações, rabiscos. Portanto, (quase) nunca se ouve falar deles e delas (catálogos e "obras" - sobras, na verdade...).

Mas, voltemos ao Tonico. Um dos primeiros que tentaram organizar as obras do Vivaldi foi o Mario Rinaldi, que publicou sua lista em 1944, com as obras numeradas como RN. 1, RN. 2, e "affim fufeffivamente". Mas depois vieram outras listas mais completas, acuradas, e as obras do Vivaldi podiam ser conhecidas por seus números opus, RN, M (de Gian Francesco Malipiero), F (Antonio Fanna), P (Marc Pincherle), até se estabilizarem (por enquanto!), com seus números RV (do catálogo Ryom-Verzeichnis, de Peter Ryom). Atualmente, portanto, suas obras aparecem em dois formatos: "Op. x, RV. y" (no caso de obras que também têm número de opus), ou apenas como "RV. y" (quando não existe versão publicada), e as numerações de catálogos antigos foram abandonadas, no geral.

Mas, para quê facilitarmos, se podemos complicar? Compliquemos, pois:

Outros compositores existem cujas obras também pouco foram publicadas, como o Carl Philipp Emanuel Bach (filho do "nosso amigo" Jotaésse Bach), mas em seu caso mesmo as obras publicadas não são conhecidas atualmente por seus números de opus, e sim pelos números dos catálogos compilados no século XX. No caso do Cepeé Bach, apesar de o catálogo organizado por Alfred Wotquenne (Wq) ter sido suplantado pelo de Eugene Helm (H), ambas as numerações sobreviem lado a lado, e até hoje é comum encontrarmos, por exemplo, Sonata em si bemol maior, H. 2 (Wq 62, nº 1).

O coitado do Domenico Scarlatti, outro dos meus ídolos, está numa situação ligeiramente mais complicada, pois 3 (três!!!!) católogos convivem, alegremente, lado a lado. Temos, em ordem cronológica de feitura dos católogos: o L, de Alessandro Longo (aquele que organizou as sonatas na ordem "legal"), o (também conhecido como Kk), de Ralph Kirkpatrick, e o P, de Giorgio Pestelli. Sua famosa (pra quem conhece) "Fuga de Gato", por exemplo, também é conhecida pelo singelo nome de Sonata K. 30 (L. 499, P. 86), em sol menor. A "ordem fora de ordem" é essa mesma (K, L, P), ao invés de seguir a ordem cronológica (L, K, P ou P, K, L), pois o K, menos recente que o P, ainda é o mais utilizado! 

Adendo: o curioso nome "Fuga de Gato", segundo a lenda, vem do fato de que Scarlatti tinha um gatinho, Pulcinella, que vivia andando sobre o teclado do cravo, e uma das sequências loucas que o gatinho "inventou" foi usada por Scarlatti para construir o início do tema da fuga, uma sequência de notas que é realmente estranha, ainda mais se tocada devagar. Então, aproveitando a oportunidade, vamos "ouvê-la":


E aqui está a versão mais "felina", mas que eu acho musicalmente pior:


Mas voltemos ao assunto em pauta (sem trocadilhos!). Se eu for colocar aqui todos os catálogos existentes de todos os compositores, terei que pedir demissão do meu emprego e nunca mais sair de frente do computador. Como eu tenho (e você também, provavelmente) mais o que fazer, vamos ver apenas alguns catálogos de alguns compositores mais conhecidos, para você poder "fazer bonito" na próxima vez que encontrar algum músico e quiser exibir seus conhecimentos "enciclopédicos" sobre o assunto!

Comecemos, pois,  pelo título deste post, WQSZHWVHOB. Aliás, continuemos, já que o Wq (do Cepeé Bach) está aí em cima!

- Sz se refere ao católogo das obras de Béla Bartók, organizado por András Szöllösy, e que inclui também seus (do Bartók, claro) escritos. Existem dois outros, mais "modernos", mas que nunca caíram nas boas graças de muita gente (DD e BB). Sei lá o que acontecia com o Bartók, mas ele começou três vezes a dar número de opus  às suas obras, até que a bagunça ficou grande demais e ele simplesmente abandonou totalmente qualquer numeração, deixando para a posteridade a incumbência de fazer o trabalho;

- HWV se refere às obras de G. F. Handel, do catálogo Händel-Werke-Verzeichnis. Outros também existiram, mas caíram em desuso;

- Hob. (sempre com ponto, ou às vezes simplesmete H.) são para as obras de Joseph Haydn, organizadas por Anthony von Hoboken.

Algumas outras siglas também importantes são:

- BWV, de Bach-Werke-Verzeichnis, para as obras do nosso amigo Jotaésse;

- S, para as obras de Liszt, organizada por Humphrey Searle;

- K (ou KV), para as obras de W. A. Mozart, a partir do católogo de Ludwig Ritter von Köchel, ou Köchel-Verzeichnis. Há obras publicadas com opus, mas nunca utilizados, pois são pouquíssimas em relação ao total de obras;

- D, para as obras de Franz Schubert, do catálogo de Otto Erich Deutsch. Assim como acontece com Mozart (e Cepeé Bach), há obras publicadas com número de opus, mas, diferentemente de Mozart (e Cepeé Bach), quando há número de opus é comum que os dois números sejam citados, como o Trio nº 2, para piano, violino e violoncelo op. 100, D. 929, em mi bemol maior. Com Schubert ainda há uma complicação extra, no caso de algumas sinfonias suas: eu tenho uma gravação da Sinfonia nº 7 e uma da Sinfonia nº 9 que, estranhamente, são a mesma, pois a numeração das sinfonias depende da fonte utilizada! Ou seja: decore seu número D, para não comprar CD errado: Sinfonia em dó maior, D. 944, conhecida como "A Grande".

E, para terminarmos com uma novidade, vamos de Chopin, cujas obras continuaram recebendo número de opus após sua morte. Em vida, temos as obras dos Opp. 1 a 65. Depois disso, temos os Opp. posth. 66 a 74, publicados a pedido de sua mãe e sua irmã. Além dos opp. posth., outras obras também foram publicadas ainda mais tarde, mas sem número algum, até que decidiram botar ordem na bagunça e surgiram 3 catálogos que competem até hoje pela supremacia:

- B, de Maurice J. E. Brown;
- KK, de Krystyna Kobylanska; e
- O catálogo de Jozef Michal Chominski, que tem a particularidade (execrável, em minha modesta opinião) de ser dividido em 6 partes, A, C, D, E, P e S.

Graças aos céus só são utilizados os números B, KK, A, C, D, E, P ou S caso não existam  números Op. ou Op. posth.